Edição nº 538

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 03 de setembro de 2012 a 16 de setembro de 2012 – ANO 2012 – Nº 538

A caravana passa.
E a tevê vai atrás

Pesquisa mostra a herança e a importância
dos trabalhos produzidos por Thomaz Farkas

 

Um dos principais legados da Caravana Farkas, conjunto de documentários brasileiros produzidos nas décadas de 1960 e 1970 por Thomaz Farkas, empresário e referência na fotografia moderna no país, foi que a partir dela se formou um grupo de realizadores da maior importância na cinematografia brasileira.

A constatação é do professor Gilberto Alexandre Sobrinho, do Departamento de Multimeios, Mídia e Comunicação do Instituto de Artes (IA), que estudou o tema e que agora finaliza análise desses documentários, além de também desenvolver uma investigação sobre os programas Globo Shell Especial e Globo Repórter, relacionando cinema e televisão.

Segundo o docente, Farkas (1924-2011) – húngaro naturalizado brasileiro – foi de fato um sujeito aglutinador de jovens talentos que trouxeram contribuições em um período sobremodo fértil. Sua pesquisa reuniu um relicário de 38 filmes-documentários realizados a partir do desenvolvimento da produção independente, do filme-documentário autoral e das temáticas socioculturais.

Para situar, Sobrinho explica que a produção independente pode ser entendida de diferentes formas. No Brasil, representou um desdobramento da ideia do cinema independente que começava a ser articulado na década de 1950 por nomes como Nelson Pereira dos Santos e Alex Viany.

“Essa ideia era muito ligada à experiência do Cinema Novo, cujo maior articulador foi Glauber Rocha. O movimento acabou mobilizando para o cinema as questões sociais e políticas no país, mediante uma estética com forte influência neo-realista”, comenta o docente.

A produção independente não se ligava às esferas pública ou privada, expõe ele. Por conta disso, esclarece, havia liberdade na escolha de temas, na abordagem e no tratamento das informações. 

A Caravana Farkas pode ser ainda concebida como uma resposta paulista para as demandas cinemanovistas que iniciaram na Bahia e tiveram o Rio de Janeiro como núcleo principal, mesmo com a participação dos baianos Geraldo Sarno e Paulo Gil Soares e dos argentinos Manuel Horácio Gimenez e Edgardo Pallero.

Farkas foi o seu maior financiador, auxiliado pela Saruê Filmes Ltda. e pela Embrafilme. De acordo com Sobrinho, nem por isso ele interferia no tratamento final dos trabalhos, garante. Os seus diretores tinham total liberdade de expressão.

Esses documentários assumiam estilos diferentes. Geraldo Sarno, Paulo Gil Soares e Sérgio Muniz são um exemplo disso, e foram as figuras que mais dirigiram filmes, testemunha Sobrinho. Talvez o segredo esteja na prática sistemática de dirigir, que muito pode ter colaborado para o aperfeiçoamento do artista, opina.

Posteriormente, cada um deles seguiu o próprio caminho enveredando pelo audiovisual brasileiro, conta o professor. Paulo Gil Soares foi um dos realizadores da primeira e da segunda das três fases da Caravana Farkas. Ele, em seguida, esteve à frente da produção de documentários e reportagens para a televisão.

Por esse motivo, Sobrinho se interessou por se debruçar também sobre o Globo Shell Especial e o Globo Repórter, por criar uma interface entre a televisão e o cinema, tema de forte interesse para o audiovisual brasileiro.

A primeira fase da Caravana, informa ele, envolveu documentários que estão no longa-metragem Brasil verdade. Sobrinho destaca dois: Viramundo (1964-1965), dirigido por Geraldo Sarno; e Memórias do cangaço (1964-1965), por Paulo Gil Soares.

Sobrinho assinala como uma conquista o uso da câmera de 16 milímetros, com som sincronizado, e a maneira como os cineastas, de posse desse dispositivo, se aproximaram dos sujeitos e suas experiências particulares.

Mas o que se tinha no campo do documentário à época? Havia os cinejornais de Primo Carbonari e de Jean Manson, que eram filmes que atendiam a uma outra demanda: os filmes de propaganda e os institucionais, contextualiza o professor. 

Além disso, havia uma série de documentários produzidos pelo Instituto Nacional de Cinema Educativo (Ince), tendo à frente a figura do Humberto Mauro, um dos pioneiros no cinema brasileiro.

Subjetividade

Na segunda fase da Caravana Farkas, situada entre 1967 e 1970, os diretores primeiramente se aproximaram do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP e, depois de obterem apoio institucional, realizaram duas viagens a alguns Estados do Nordeste. O trabalho resultou em 19 filmes.

Farkas pretendia levá-los para a televisão, o que não veio a se concretizar. A alegação era que o seu tom não se enquadrava ao que se entendia como programação televisiva. Não houve negociação.

A terceira fase da produção dos documentários, compreendida entre 1971 e 1980, foi mais dispersiva e não teve a força das fases anteriores. Foi fruto de parcerias, coproduções e prêmios de editais.

Os documentários da Caravana Farkas não atendiam a uma demanda institucionalizada. Eram feitos com equipes reduzidíssimas, com autores e estilos diferenciados e realçavam, nas suas produções, o homem brasileiro, as formas de trabalho, a religião e a cultura popular.

Nesse momento, entrou em cena a Embrafilme, e ainda insistiu-se na tentativa de levar os documentários para a televisão, por meio de editais para pilotos. Apesar disso, mesmo os documentários finalizados, eles não foram exibidos. Foi o caso de Andiamo in’merica, de Sérgio Muniz (1980). 

A Caravana Farkas, lembra Sobrinho, não conseguiu cumprir a cadeia produtiva à época de seu lançamento, já que o cinema, além da produção, implica a distribuição e a exibição. Hoje, com o lançamento dos documentários em DVD e a exibição finalmente na televisão, esse mecanismo foi cumprido. 

Artesãos na indústria

Uma face da relação entre cinema e televisão no Brasil tornou-se realidade quando Walter Clark, da Rede Globo, viabilizou a produção de documentários dirigidos por cineastas, primeiramente para o Globo Shell Especial, uma espécie de piloto do Globo Repórter. Foi um momento fecundo, em princípios da década de 1970, ocasião em que a Rede Globo firmou sua hegemonia, sobre a qual ainda se assenta.

A produção de documentários e reportagens para a televisão então chamou a atenção de Sobrinho, sobretudo pelo fato de Paulo Gil Soares, egresso da Caravana Farkas, estar à frente dessas produções.

O Globo Shell Especial (1971 a 1973), no caso, foi estruturado num momento em que o patrocinador ainda possuía uma determinada faixa de horário. Foram contratados nomes vinculados ao Cinema Novo. Assim, os diretores que já tinham prestígio de crítica e prêmios de festivais agora teriam a oportunidade de se comunicar com o grande público.

Ao esmiuçar o Globo Shell Especial e o Globo Repórter, Sobrinho refletiu sobre qual seria o tipo de produto gerado quando um cineasta dirige um documentário para a TV. Para ele, foi curioso verificar o impacto nessa elaboração formal que vem de alguém com uma trajetória na produção independente e dentro do Cinema Novo.

Percebeu que documentários e reportagens comandados por esses diretores tinham um formato mais próximo do experimental. Ao contrário de documentários do tipo reportagem, dirigidos por jornalistas, que cumpriam mais um script da emissora, sinalizavam um olhar subjetivo e conduziram a experiências singulares.

Os filmes de Walter Lima Júnior, por exemplo, enfatizavam a montagem e o uso de metáforas visuais para falar da industrialização apressada no Brasil e do desenvolvimento urbano, que também foi apressado, com consequências inesperadas à vida das pessoas.

Para falar desses temas urgentes na ressaca do milagre brasileiro, o cineasta escolheu um modo curioso de dizer isso, posto que havia sido instaurada no país a ditadura militar e  uma pressão da censura de amplo alcance sobre os diretores e filmes. “A saída foi denunciar pela via indireta”, acentua Sobrinho.

Outro diretor, Eduardo Coutinho, que tem algumas das obras de maior expressão contemporaneamente, desenvolveu um modo de olhar especial no Globo Repórter: de lidar com o outro e de ouvi-lo por meio de entrevistas e depoimentos. O seu ponto de virada veio com a direção de Seis dias em Ouricuri (1976) e Theodorico, imperador do sertão (1978).

João Batista de Andrade foi outro diretor que teve uma passagem marcante pelo Globo Repórter, com documentários como o Caso norte e Wilsinho da Galileia, nos quais desenvolveu técnicas de ficção para abordar a violência urbana. Ele recuperou os procedimentos de distanciamento do dramaturgo Bertold Brecht para emoldurar o trabalho de intervenção sobre o real, relata o docente.

Com essas contribuições, Sobrinho realça que, “se fosse aberto mais espaço à produção independente (a produção autoral), haveria um repertório mais variado e emergiriam novas alternativas para articular a ficção e a não ficção”, completa.

Não obstante, imagina o professor, algumas ações poderão caminhar nessa direção, co-mo a Lei 12.485 (PLC 116), que obriga as TVs a cabo a destinarem uma certa porcentagem de sua programação à produção independente brasileira. Isso será um acréscimo, acredita ele. 

Por outro lado, para a produção independente, ainda não existe essa obrigação na TV aberta, que veicula programação própria ou vende espaço. “Além disso, são muitas resistências enfrentadas com as grandes corporações americanas (as majors) para barrar a indústria do audiovisual nacional, na TV e no cinema.”

Mais pesquisas serão necessárias, sugere Sobrinho, que leciona História da Televisão e do Vídeo para a graduação e a pós-graduação. No momento, ele também demonstra interesse pela teledramaturgia nacional, como as produções dirigidas por Luiz Fernando de Carvalho e Daniel Filho.

O próximo passo será analisar a produção independente da não ficção [cinema, televisão e vídeo] entre os anos de 1980 e 1990”, revela Sobrinho. Olhar o conjunto dessa produção representará enxergar a riqueza de estilos e abordagens nessas interações. Quando os realizadores ocuparam esse espaço na década de 1970, menciona o docente, a televisão ofereceu um novo campo de diversidade.

Isso continuou na década seguinte, quando parte dos diretores preencheu espaço na TV. “Essa presença incrementou muito em inovação e criatividade para continuar apostando que a produção independente autoral é fundamental à renovação da linguagem e das mensagens televisivas”, pontifica Sobrinho.