Edição nº 538

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 03 de setembro de 2012 a 16 de setembro de 2012 – ANO 2012 – Nº 538

Duas visões antagônicas sobre a produção atual


 

 

‘O cinema está

mais preocupado

com as colunas

sociais’

 

 

 

O atual momento e as perspectivas do cinema nacional, entre outros temas, são analisados a seguir pelo crítico e escritor Inácio Araújo e por Fernão Ramos, docente do Instituto de Artes (IA) e coordenador do Centro de Pesquisas de Cinema Documentário da Unicamp (Cepecidoc). Ambos integram o Grupo de Estudos do Contemporâneo, do Centro de Estudos Avançados da Unicamp (CEAv).

 

 

Jornal da Unicamp - Que avaliação o sr.  faz do atual momento do cinema nacional?

Inácio Araújo – Me parece um momento muito equivocado, do ponto de vista de política cultural, embora haja talentos trabalhando, sobretudo os de Pernambuco, mas também uma Anna Muylaert. A questão é que o cinema está mais preocupado com as colunas sociais do que com os filmes, mais com a bilheteria do que com o que se vai mostrar, com o espetáculo mais do que com a arte.

Fernão Ramos – Faço uma avaliação positiva. O cinema brasileiro contemporâneo está bem sedimentado. A produção de longas-metragens está beirando a centena, ainda que a exibição enfrente certo afunilamento. É um número bastante significativo, mesmo em termos internacionais. Está no patamar de nossas melhores médias históricas e deve ser analisado na comparação com o que tínhamos há 15, 20 anos. 

Cinema é uma arte que custa dinheiro e, por isso, uma questão central na produção cinematográfica é viabilizar a feitura dos filmes. As leis de incentivos fiscais municipais, a Lei do Audiovisual e a Lei Rouanet, mal ou bem, com todos os problemas que possam ter, estão viabilizando essa produção significativa em termos quantitativos. Ao mesmo tempo, sinto um interesse forte dos jovens pelo campo do cinema e do audiovisual, seja na área da pesquisa, seja na área da realização. Exemplo disso são nossos cursos em cinema e audiovisual aqui na Unicamp, que estão entre os mais disputados da Universidade, tanto na graduação como na pós-graduação. Devemos também destacar os investimentos recentes da Unicamp em ensino e pesquisa em cinema e audiovisual, com compra de equipamentos e novas instalações físicas.

 

JU – Após a extinção da Embrafilme, o cinema brasileiro viveu o período da “Retomada”, e mais recentemente de pós-retomada, sendo que muitas das produções contaram com financiamento público por meio de renúncia fiscal. Como o sr. vê o papel do Estado na produção cinematográfica? Ele é imprescindível ou dispensável? 

Fernão Ramos – Vejo como indispensável na nossa realidade, já que o cinema é uma arte cara. Um filme nacional padrão tem um orçamento de dois, três milhões de reais. Não é qualquer pessoa que consegue levantar esse dinheiro ou mesmo obter recursos para um orçamento baixo, na faixa de 600 mil, 700 mil reais. Com exceção dos EUA e de alguns países asiáticos, não se tem cinema sem a participação do Estado. 

A Embrafilme foi uma experiência histórica que funcionou muito bem, constituindo-se em grande distribuidora e produtora. Mas o modelo histórico se esgotou, veio o liberalismo da era Collor, e o cinema brasileiro parou durante dois ou três anos, no início dos anos 1990. Depois houve a chamada Retomada [1995], e agora vivemos um momento de consolidação. 

O atual esquema de participação do Estado, que não é exclusividade do Brasil, é gerido a partir da isenção fiscal. Creio ser muito difícil pensar o cinema brasileiro sem esse tipo de auxílio. Acho inclusive que esse auxílio deveria ser expandido, como um foco maior nas áreas de exibição e distribuição. Em relação ao interesse do público pelo cinema nacional, Tropa de Elite 2 bateu, em 2010, o recorde de maior bilheteria de todos os tempos, o que é, sem dúvida, significativo desse bom momento a que me refiro. 

Conseguimos substituir o esquema Xuxa/Trapalhões, achamos equivalentes. A avaliação qualitativa é outra questão, deve ser debatida em termos diferenciados.  Mas a produção propriamente de cinema no Brasil está estabilizada. Produzimos cinema em um volume bastante significativo. Brasil, Argentina e México são os três grandes polos produtores cinematográficos na América Latina.

Inácio Araújo – A presença do Estado é imprescindível. O cinema do mundo inteiro funciona assim. Mas as leis de proteção são péssimas. Induzem a gastos excessivos e frequentemente inúteis. A Argentina, para ficar num exemplo aqui ao lado, gasta muito menos para obter resultados bem mais interessantes. 

 

JU – Existe hoje, de fato, um movimento independente de produção cinematográfica no Brasil que se sustenta à sua maneira? Como o sr. avalia os circuitos alternativos de produção e distribuição? O que esses filmes e esse mercado sinalizam?

Inácio Araújo – Não há alternativos, que eu conheça, a não ser os do “cinema de bordas”. O que há é uma produção fundada sobre o que se pode chamar estética da Rede Globo, que se serve do hábito dos espectadores com o tipo de dramaturgia, luz e até mesmo atores. Como isso parece familiar (e é aceito) por uma parte grande do público na TV, termina funcionando como referência. O que resulta em coisas quase sempre muito precárias, para não dizer indigentes, mas que angariam plateias formidáveis. O cinema acaba sendo refém desses filmes de grandes bilheterias, porque são eles que permitem à Ancine chegar no ministro da Cultura, e este (ou esta) no presidente e dizer: “Está vendo? Temos cada vez mais espectadores etc. É preciso continuar com os subsídios”. 

Mas esses subsídios (renúncia fiscal ou que nome se prefira) acabam servindo para a perpetuação de uma relação servil do cinema em relação à TV. Certo, sempre se pode alegar que os críticos se enganam. Que, com o tempo, a chanchada, Mazzaropi, a pornochanchada mostraram-se significativas etc. Nem vou discutir o que o futuro dirá de certas coisas que nos é dado ver. A questão da subserviência a uma estética de TV é que é fundamental. Por vezes saímos dela, em geral em benefício de temas referentes à segurança e à honestidade dos agentes públicos – Tropa de Elite é o exemplo mais claro. 

Mas esses momentos de catarse coletiva não servem para caracterizar a construção de um cinema com imagem própria. Já quando se faz algo como Xingu (Cao Hamburguer) é certo que estamos diante de algo que vale a pena observar com cuidado, porque pode ser um filme tradicional, em certo sentido, mas educa o público, procura comunicar algo que vai além da sensação imediata ou epidérmica. Xingu pode não ser radical como Serras da Desordem, do Andrea Tonacci, e ainda bem que nem todos os filmes são Serras da Desordem: é preciso haver diversificação. Por isso não acredito muito em “independentes”, nem em circuitos alternativos. 

A distribuição no estilo blockbuster, com 600, 700, 800 cópias, é coisa de uma violência absurda. Ninguém consegue encontrar um público com uma concorrência dessa ordem. A Argentina fez uma boa lei a esse respeito. A partir de 25 cópias, o filme começa a pagar um tributo, que se torna maior quanto mais cópias houver. O governo justificou a medida dizendo que a distribuição, tal como se apresentava, induzia o público a considerar que só havia um tipo de cinema. Esse monopólio estético, seja de Hollywood, seja da Globo, seja de quem for, é muito ruim, muito limitativo.

 

Fernão Ramos – Há, sim, formas independentes: exibição na internet, venda direta de DVDs, há gente que faz sua distribuição com os filmes nas costas, como fez Carla Camuratti com Carlota Joaquina, mas cinema é cinema e as estruturas do circuito de exibição comercial contam muito. Cineclubes também compõem uma rede paralela de distribuição interessante. Temos as centenas de festivais de cinema, espalhados pelo Brasil afora, que exibem os mais diversos tipos de filmes. Esses festivais, promovidos por muitas cidades, não deixam de ser um circuito de exibição alternativo, envolvendo recursos até excessivos, no meu ponto de vista. Parte do dinheiro gasto poderia ser investido em salas de cinema propriamente. 

Mas creio que o que faz falta é, principalmente, uma estrutura de exibição mais centralizada, amparada por um escudo de distribuição, para concorrer com o circuito das majors norte-americanas. Um circuito que deveria ter a presença forte do Estado, ou que fosse incentivado pesadamente por ele. A história da Embrafilme é muitas vezes analisada somente a partir de seu viés de produtora cinematográfica estatal. Mas sua principal contribuição para o cinema brasileiro foi o amadurecimento de uma dinâmica empresa distribuidora nacional que, em seu melhor momento, chegou a desafiar a presença das majors norte-americanos no mercado latino-americano. 

 

 


‘O cinema brasileiro

contemporâneo

está  bem

sedimentado’

 

 

 

JU – Em que medida a linguagem televisa contamina a produção cinematográfica nacional? Em sua opinião, ela seria um indicador da prevalência de uma estética da facilidade, da preferência à continuidade e ao gosto pelo que o público está acostumado a ver em casa? 

Fernão Ramos – O cinema brasileiro é muito autoral. É lógico que, nesse espaço, haja filmes de maior bilheteria, Daniel Filho, José Padilha, as comédias, que estão retomando com presença equivalente ao período da chanchada, a produção que gira em torno de Guel Arraes, dos artistas globais. Mas existe o cinema autoral que passa ao largo da linguagem televisiva, e quem acompanha cinema brasileiro sabe muito bem que o cinema brasileiro, de maneira geral, é difícil de assistir, pesado, com cenas de exasperação muito fortes, com um nível de experimentação narrativa grande. 

Para generalizar, poderíamos dizer que o cinema, como forma narrativa, abre espaço para um trabalho autoral, que suporta com facilidade um nível de experimentação forte. O cinema é uma grande arte, a grande arte do século XX. A televisão é basicamente um meio de comunicação, mas existe uma forma narrativa que lhe é particular, as mini-séries ou novelas, que abre espaço para uma intervenção mais densa estilisticamente. É um pouco como a relação entre reportagem e documentário. 

Apesar de estruturas narrativas e imagéticas semelhantes, no documentário você pode experimentar bem mais. Alguns autores cinematográficos são, no entanto, voltados para o grande público. Grandes autores cinematográficos, dotados de densa elaboração estética da imagem, podem atingir o grande público. Não há pecado nisso. Outros não atingem, fazem também grande cinema, mas não um cinema para o grande público. É um cinema mais ousado formalmente, de dimensão reflexiva, debruçando-se sobre o próprio movimento de enunciação. 

O que você está chamando de “linguagem televisiva” é linguagem cinematográfica pura. Suas bases se consolidaram no trabalho do cineasta norte-americano David Griffith, na segunda década do século XX. É o que chamamos de “narrativa clássica”. Há arte, trabalho autoral, dentro dos parâmetros da narrativa clássica, como também há arte fora dela. No cinema, há produções exclusivamente feitas para atingir o maior público possível e arrecadar capital. Mas há também o bom cinema autoral que atinge o grande público. Tropa de Elite e Cidade de Deus estão nesse setor.

Inácio Araújo – Acho que respondi a essa questão na pergunta anterior. 

 

JU – Como podem ser avaliadas as tentativas de se fazer cinema no Brasil nos moldes de uma Vera Cruz, que até hoje se fala em reativar, ou mesmo o modelo mais recente de Paulínia, que também resistiu por poucos anos?

Inácio Araújo – Primeiro, penso que há uma diferença entre Paulínia e a Vera Cruz. Paulínia foi obra de um prefeito. Isso já aconteceu muito com times de futebol: um prefeito bota dinheiro no time da cidade e tal, mas aí vem o prefeito seguinte e a fonte seca. A Vera Cruz, ao contrário, partiu de um desejo forte de construção de uma cinematografia. Não discuto que tenha havido equívocos. Mas houve, de todo modo, uma herança. Os técnicos de cinema paulistas, ao longo de 40 ou 50 anos, foram formados pela Vera Cruz ou pela Maristela ou pela Multifilmes. Hoje existe tendência de uma “volta aos estúdios”, de uma reentronização da técnica que até me parece exagerada, mas não é descabida. É assim que as coisas se colocam, e nisso não há o que discutir. 

O que é lamentável é que o governo de São Paulo, faz uns anos, desenvolveu um belíssimo projeto para a Vera Cruz, que reativaria os estúdios, criaria uma escola de técnica e pesquisa lá dentro. São Bernardo também se entusiasmava com isso, porque afinal a Vera Cruz deixou alguma coisa lá. Mas, como se sabe, cineastas são chatos, reclamam muito, querem verba para fazer seu filme, não se preocupam muito com o que possa acontecer em longo prazo. Então o governo resolveu investir tudo na Osesp, [Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo] que dá prestígio e pouco aborrecimento. É uma pena. 

Tenho a impressão de que reativar a Vera Cruz seria uma atitude fértil. Mesmo que eu prefira, pessoalmente, de um modo geral, os filmes feitos na rua, ou em locações, eles me parecem quase sempre mais verdadeiros.

Fernão Ramos – É o jeito errado de se fazer não só cinema, mas outras coisas na vida. A Vera Cruz foi o momento em que uma parcela da burguesia paulista — na maior parte imigrantes italianos, novos ricos —, quiseram fazer cinema para dar um verniz cultural a seu novo status econômico. Quanto a Paulínia, não vejo com otimismo, infelizmente, a continuidade do polo cinematográfico nos moldes em que foi colocado. 

No caso da Vera Cruz havia o dinheiro do pós-guerra e uma crise forte na Europa, possibilitando a migração de mão de obra especializada para o Brasil. Em Paulínia, apesar da PPP [Parcerias Público-Privadas], não é dinheiro privado, é dinheiro de IPTU, de imposto municipal, de royalties de petróleo. Os investimentos públicos foram grandes, diversos filmes foram patrocinados, e a questão que se coloca agora parece ser a mesma da comédia Saneamento Básico, o Filme, longa de Jorge Furtado. Você vai fazer saneamento básico ou vai fazer filmes? Acho que é um dilema colocado fora de seu eixo e não rende uma boa discussão. 

Não se cria um polo cinematográfico com facilidade, e Paulínia conseguiu levantar prestígio, viabilizar um festival, uma produção, todo um entorno que exigiu investimentos muito grandes. Não houve, no entanto, a preocupação em se manter, em pensar no longo prazo. Vejo sim pontos em comum entre os dois projetos. Há um certo deslumbramento com a forte dimensão financeira do cinema, com o aspecto “grana”. Em ambos os casos, há uma falta de responsabilidade no modo de se pensar a atividade cinematográfica de maneira continuada, mais orgânica com a sociedade, levando em consideração as diversas etapas (produção, distribuição, exibição, etc) necessárias para levar a bom termo a realização do alto valor da mercadoria cinematográfica.

 

JU – O Brasil vive hoje, nos campos econômico e geopolítico, um momento tido por muitos como virtuoso. Em que medida o cinema pode se beneficiar dessa condição? Ou mesmo, em última instância, ser crítico em relação a ela?

Fernão Ramos – O Brasil, vivendo um momento econômico bom, vai repercutir diretamente no cinema. Para o cinema existir, o Estado precisa poder gastar no cinema, deixar de receber imposto para aplicar no cinema, ou então ter uma estatal para investir em filmes. Em termos gerais, o cinema brasileiro é bem crítico em relação à sociedade brasileira. Acho que seria exagero dizer que o cinema brasileiro é alienado. Dizer isso é não conhecer cinema brasileiro. A maior parte dos filmes que fez sucesso nos últimos anos aborda a realidade nacional de maneira bastante crítica. Todos os grandes autores brasileiros, de Tata Amaral a Walter Salles, de Fernando Meirelles a José Padilha, de Eduardo Coutinho a Sérgio Bianchi, de Beto Brant a Cacá Diegues, possuem essa visão ácida da sociedade brasileira e de sua divisão social. Filmes que têm repercussão internacional são os que mostram a sociedade violenta, a miséria, a tensão social, as tradições populares, seja no morro, seja no Nordeste. 

Inácio Araújo – Não entendo de economia, mas lembro que nos tempos de estudante dávamos muita importância às ideias de Celso Furtado, que comparava o desenvolvimento dos EUA, baseado no mercado interno, e o do Brasil, que seguia um modelo exportador. A grande mudança nos últimos anos, que a Globo News, por exemplo, parece que jamais entenderá, é o investimento na criação de um mercado interno. Todo o resto é muito relativo. Os estrangeiros com dinheiro adoram o Brasil porque aqui a remuneração do capital é indecorosa – quando se baixam os juros parece que alguém praticou um crime, a julgar por certas vozes. 

Essas considerações, repito, são puramente amadoras. Mas se conectam a algumas outras coisas que dizem respeito à cultura. Aqui a cultura é considerada uma espécie de penduricalho. Você vê algum pai brasileiro preocupado com a formação de seu filho? Não, ele se preocupa em garantir os meios para que ele tenha uma boa renda no futuro. Se possível manda a pessoa para o exterior, para os EUA. Mas não se preocupa muito em ensinar-lhe regras elementares de convivência – por exemplo: não falar alto no cinema, respeitar os outros etc. E também não está nem aí para a vivência cultural. No fundo, as autoridades também pouco se lixam para isso. 

Só quando o país cresce um pouco e que se sente o peso do analfabetismo funcional é que se diz “ah, é preciso investir muito na educação, que nem os coreanos”. Quer dizer, a cultura não é um valor. Ela é, normalmente, vista como um trambolho: é preciso soltar o dinheiro para uns artistas chatos, senão eles fazem barulho, essas coisas. Mas tenho a impressão de que se a cultura fosse mais bem avaliada as ruas seriam melhores, 7as pontes seriam mais bem construídas. 

Então, temos esse cinema que está muito preocupado com o high society do que com o cinema, uma literatura muito mais preocupada com as feiras de livros do que com livros. E por aí vai. A mercantilização da cultura é tão evidente quanto, penso eu, degradante. 


 JU – Diretores brasileiros são chamados a filmar em Hollywood ou em outros países. Fernando Meirelles, Walter Salles e José Padilha são alguns exemplos. O que isso representa para o cinema nacional?

Inácio Araújo – O importante nisso tudo é que a noção de "cinema nacional" que se cultivou no passado hoje já não existe, ou se existe não tem força. O sistema é internacional. Hollywood já não trabalha contra o cinema brasileiro como no passado. Hoje, se o filme tem potencial para ser sucesso internacional, eles embarcam, distribuem e tudo mais. Quanto aos diretores, tornaram-se "grifes". Não são autores, são apenas uma marca. Se vender bem no mercado internacional, ele fica por lá. Se não vender, volta. Então, tudo isso representa muito pouco para o cinema nacional no que ele pode significar uma elaboração de autoconhecimento nosso, do povo brasileiro, sei lá.

Ramos – Os três autores citados se colocam de uma maneira ativa no mercado internacional. Isso mostra o dinamismo e o amadurecimento da produção contemporânea brasileira. A Argentina, por exemplo, não tem três diretores inseridos com tal intensidade na produção internacional. Tanto Salles como Meirelles estão constantemente filmando fora do Brasil e ambos mantêm também uma produção com vínculos nacionais. Padilha, mesmo antes de Tropa Elite, construiu sua produtora com fortes relações internacionais. E não são só os três, podemos citar outros exemplos.

Considero indispensável que uma cinematografia forte como a do Brasil tenha inserção internacional e dialogue com o grande cinema, com o cinema de grande produção que gira no circuito internacional de exibição, atingindo depois o circuito audiovisual de DVD, televisão, internet. Não vejo esse aspecto de modo negativo.

JU – Temos hoje ficção e não-ficção, documentários que se parecem com a ficção e narrativas ficcionais que se parecem cada vez mais com o real. Essas fronteiras estão desaparecendo ou já desapareceram?

Fernão Ramos – Documentário é uma coisa, ficção é outra. Não é difícil separar os dois campos, à parte propostas específicas de sobreposição de linguagens ou de trapaça com o espectador (os chamados 'mockumentaries'). Quando você vai assistir a um filme, ele já está indexado como documentário ou ficção. Você frui o filme de determinada maneira. É isso que interessa em termos de uma metodologia de análise. A produção do documentário hoje está forte. Creio que, em 2010, cerca de 30% dos lançamentos de filmes brasileiros foram documentários, ou seja, um número muito alto.

Estilisticamente, documentário e ficção são duas coisas distintas. Alguns filmes se denominam “ensaios”, que chamamos também de documentários poéticos, flexibilizando a dimensão propriamente assertiva do documentário. A ficção lida com a diegese, com o universo ficcional, o documentário faz asserções, afirmações, sobre o mundo. Ele tem essa dimensão de falar sobre o mundo e, evidentemente, isso pode ser feito de uma maneira poética.

Outra falácia é definir o documentário a partir de parâmetros como “verdade” ou “realidade”. Podemos imaginar facilmente um documentário sobre mulas sem cabeça, ou um documentário que defenda a existência de mulas sem cabeça e nem por isso deixará de ser documentário. O fato de existir um documentário em relação ao qual você discorda de suas asserções não fará que, por isso, ele deixe de ser um documentário.

Vamos tomar, por exemplo, O Triunfo da Vontade, documentário sobre a Alemanha dos anos 30 e o Partido Nacional Socialista, dirigido pela diretora simpatizante Leni Riefenstahl. Podemos considerá-lo um documentário com afirmações falsas sobre o nazismo alemão, ou um documentário nefasto, perigoso, do ponto de vista ideológico, mas nem por isso a forma de o filme O Triunfo da Vontade enunciar deixará de estar fortemente vinculada à tradição narrativa do cinema documentário.

Inácio Araújo – Hoje o real não é algo dado. É sempre algo que indagamos. O que garante que um documentário esteja retratando fielmente a realidade? Existe muito artifício para construir o real. Então hoje me parece importante que os filmes consigam formular uma verdade. Mas também não sei definir o que seja a verdade da imagem. Cada filme tem a sua, independentemente do gênero.

JU – Os documentários nacionais estão aproveitando todas as potencialidades do gênero? O que ainda não foi explorado e o que poderia ser?

Inácio Araújo – Não sei dizer se aproveitam todas as potencialidades. Me parece que o fim do marxismo como pensamento dominante, por um lado, e da ditadura militar, por outro, abriram um campo enorme de busca. Para historiadores, cientistas sociais, autores de cinema também. Tenho a impressão de que não nos resolvemos muito bem em termos de ficção há um bom tempo. Mesmo quando fazemos boa ficção, o público tem dificuldade de acompanhar. Já o documentário tem se aproveitado bem não só desse momento de revisão do conhecimento como também da introdução das técnicas digitais, que podem ser muito econômicas. O Eduardo Coutinho, talvez mais do que ninguém, percebeu isso muito bem.

Fernão Ramos – Os documentários musicais sobre cantores, compositores e personalidades da música, assim como os documentários sobre eventos históricos, trabalhando com material de arquivo, estão muito fortes hoje. Também se faz presente a corrente do documentário poético, do documentário em primeira pessoa, que aparece no Brasil na última década do século XX e parece haver se firmado no setor – Sandra Kogut, Kiko Goifman, Cao Guimarães, Joel Pizzini, Lucas Bambozzi, Marília Rocha são exemplos.

O documentário é um campo bem amplo e atualmente se vive um momento bom. Há que se destacar também o DOC TV (Programa de Fomento à Produção e Teledifusão do Documentário Brasileiro), com a produção de centenas de filmes documentários (curtas e longas), brasileiros e latino-americanos, financiados diretamente pelo estado brasileiro. Uma produção no volume do DOC TV faz girar o meio profissional, cria habilidades e competências, move o setor. O público para o documentário é sempre menor do que para o filme de ficção, mas o documentário está ocupando um espaço significativo no circuito exibidor, para não falar na televisão. E temos um diretor que é o Eduardo Coutinho, um verdadeiro autor com “a” maiúsculo, com obra pessoal formada numa sequência de filmes, algo que costuma ser mais raro no campo do documentário. Isso precisa ser valorizado.

JU – O cineclubismo tem renascido como estratégia para a formação de um público de cinema que se contrapõe a ideia de cinema ‘industrial’ no Brasil, ou ele atende a um público marginalizado nas salas de cinema?

Fernão Ramos – É muito importante existir espaço para um cinema que não seja o do blockbuster, dominado pela lógica da realização do valor da mercadoria filme. Mas o cineclube hoje é um espaço limitado, sem a dinâmica cultural que havia nos anos 1950 e 1960. Ao mesmo tempo, a dimensão da sala de cinema, como instituição social e econômica, continua forte, contrariando frontalmente a ideia que o cinema ia acabar. É uma delícia você assistir filme em uma tela grande, é uma outra experiência sensorial. Isso é que é cinema. É também muito bom ver filmes na tela da televisão ou na tela do computador, mas a arte cinematográfica propriamente é feita para ser vista em salas de cinema, na tela grande que, até os dias de hoje, infelizmente, não se consegue ter em casa.

Mas não devemos confundir cinema, enquanto forma narrativa, com seu modo de exibição. A narrativa cinematográfica pode ser exibida em televisões, telas de computadores, telas de celulares ou telas de cinema. Varia o modo de fruição da imagem. Pensar o cinema como meio tecnológico (película, projetores 35mm, moviolas) levou à falácia, muito comum nos anos 1990, que foi opor forma cinematográfica e mídias digitais. É o discurso que o cinema ia acabar, revolucionado pelo aparecimento das novas mídias digitais.

A forma narrativa cinematográfica, e o modo de se fazer cinema, incorporaram de modo bastante dinâmico as novas tecnologias digitais, sem grandes acidentes de percurso. Nem mesmo a fruição cinematográfica das salas de cinema sofreu solução de continuidade como instituição social. Os circuitos exibidores estão em nítida expansão, embora certamente com dimensão menor que na época histórica em que detinham o monopólio de exibição da imagem em movimento.

Inácio Araújo – O cineclubismo renasceu? Bem, hoje qualquer pessoa tem acesso a uma quantidade absurda de filmes clássicos. Basta saber baixar na internet. Antigamente a gente ficava décadas à espera de uma oportunidade para ver Vertigo [Alfred Hitchcock]. Hoje o filme está em DVD, passa na televisão, só falta bater na porta da gente e pedir para entrar. As cinematecas tornam-se obsoletas, quando se pretendem meros órgãos de preservação. Elas preservam para o futuro. Mas, como perguntou certa vez o Henri Langlois, "o futuro começa quando?"

Promover a aproximação entre as pessoas me parece o papel principal dos cineclubes, das cinematecas e dos centros culturais movidos a renúncia fiscal. O CCBB (Centro Cultural Banco do Brasil), em particular, tem promovido ciclos de cinema que são acompanhados de catálogos, alguns muito bons. Isso é necessário, desenvolver a percepção de que não é só ver o filme. Que pensar sobre o assunto depois pode tornar o prazer do filme maior. Tenho a impressão de que um movimento cineclubista hoje será interessante se criar lugares de conversa, de convivência, de troca de experiências – e que isso possa ser visto como um prazer, porque a pior coisa que pode acontecer com a arte, e com a cultura em geral, é ela ser percebida como obrigação.