Edição nº 538

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 03 de setembro de 2012 a 16 de setembro de 2012 – ANO 2012 – Nº 538

Maduro
e produtivo

Professor destaca a elevada qualidade
técnica e artística do cinema brasileiro atual

 

O cinema brasileiro apresenta atualmente uma produção em ritmo constante e um bom grau de maturidade tanto no aspecto técnico quanto no artístico. A opinião é do professor Fernando Passos, do Departamento de Cinema (Decine) do Instituto de Artes (IA) da Unicamp. De acordo com ele, que durante 20 anos trabalhou no mercado, a política de incentivos, que tomou força com Gilberto Gil e Juca Ferreira à frente do Ministério da Cultura (Minc), criou a abertura de espaços para jovens roteiristas, diretores e produtores, que lançaram no mercado brasileiro obras interessantes, com baixo orçamento e ótima qualidade técnica e artística, muitas com repercussão em festivais e mercados estrangeiros. “Não diria que a política dos editais dá dinheiro para todo mundo, mas está bem claro que o número de jovens profissionais do audiovisual aumentou em qualidade e quantidade, o que é uma boa perspectiva para nossos alunos de graduação”, analisa.

Orientando trabalhos na linha de pesquisa “Processos Criativos no Cinema Ficcional “Cinema e Literatura”na pós-graduação e ministrando a disciplina de Roteiro na graduação, Fernando Passos considera que, no campo da teledramaturgia, o cinema brasileiro vive uma fase muito positiva, situação também experimentada em outros países latino-americanos, notadamente Argentina e Chile. Segundo ele, parte dos excelentes filmes produzidos nesses países traz a força de uma dramaturgia enraizada em situações do cotidiano. “É o que chamo de cinema testemunhal, ou seja, os roteiros estão sendo criados com base naquilo que acontece nas ruas, nos fatos do cotidiano, nos temas presentes nos noticiários dos jornais e na reverberação de tudo isso nas pessoas”.

De acordo com o docente, a originalidade, fundamental para a criação artística, parte de cada pessoa. “É uma energia gerada no âmbito do singular, do único que constitui cada indivíduo. Essa liberdade não se confunde com individualismo ou egocentrismo, mas é individuação, autonomia daquele que fala através de qualquer linguagem, daquele que assume sua voz pessoal diante dos outros e da sociedade. E é testemunho porque é a voz presentificada, a voz ligada ao tempo presente, à vida em seu transcorrer”, defende. No campo da criação artística, prossegue Fernando Passos, não se pode estabelecer leis gerais ou normas restritivas porque a arte, como demarcou o filósofo da ciência Karl Popper, é a verdade que pertence ao seu criador, e não à comunidade científica, daí sua irrefutabilidade.  “Não por outra razão, as formas de negar a arte sempre foram a censura e a violência, e não o debate lógico-científico”, lembra. 

No IA, conforme o professor, o que se procura ensinar em relação à arte são os procedimentos. Ou seja, o “como” e não “o que” fazer. “Este ‘que’ às vezes se confunde com o conteúdo, o enredo, o tema etc. Este, porém, não é matéria de ensino, pois pertence ao indivíduo. Por isso no IA não formamos artistas, mas pessoas que dominam os procedimentos dos diferentes fazeres artísticos. Os procedimentos dizem respeito à qualidade técnica ou ao domínio da técnica, seja na paleta de cores, seja na qualidade de som e imagem”, pormenoriza.  Segundo ele, a Universidade é um local privilegiado para exercitar essa originalidade, dado que o espaço de aprendizagem permite a experimentação livre.

Todo fazer artístico, sustenta ele, é uma forma de conhecimento que se desenvolve através dessa experimentação. A arte, e dentro dela o cinema, tem o seu amadurecimento no autoconhecimento do artista sobre as características de seu procedimento criativo.”Fazer cinema implica em estudar os procedimentos técnicos e fazer filmes, duas ações que se completam e se realimentam. Se não há essa prática do fazer, não haverá arte, mas apenas a teoria empobrecida por seu desligamento da prática, sempre um risco para o ensino acadêmico”.

O movimento em direção a um cinema ficcional, apoiado na vida comum, enobrece as ações humanas revestidas de uma aparente normalidade, dando-lhes dimensões épicas, líricas ou dramáticas, segundo Fernando Passos. Essa expressão tem seu grande momento, como já mencionado, principalmente no cinema argentino, seguido pelo brasileiro e chileno, embora em toda a América Latina esta nova cinematografia já venha há mais de uma década se afirmando.  “Seguindo esse caminho, temos orientado pesquisas sobre novos cineastas. Um exemplo é o estudo de Natália Barrenha sobre o som no cinema da argentina Lucrecia Martel, já encerrada e que hoje aguarda publicação. Também dirigimos nossas oficinas de roteiro no sentido de explorar o entorno dos estudantes como inspiração aos roteiros em criação”.

  No Brasil, considera Fernando Passos, esse movimento cinematográfico, anteriormente chamado cinema da retomada, mas que hoje alçou voos maiores, tem início com o filme Central do Brasil, de Valter Salles, que explora um tema épico e apresenta um inovador tratamento de som. “Isto representou, na época, um forte avanço na expressão cinematográfica nacional. Daí seguiu-se um grande número de produções, cada uma com suas características, mas que reafirmaram essa maturidade a que me referi anteriormente”. O professor destaca, ainda, dois outros filmes nacionais, Tropa de Elite e Tropa de Elite 2, tidos por ele como excepcionais do ponto de vista dos roteiros da dramaturgia.

As duas produções contam a ação de um personagem, o capitão Nascimento, interpretado por Wagner Moura, um dos grandes atores brasileiros da atualidade. “É este personagem que, à maneira de um herói do drama clássico, carrega dentro de si uma série de conflitos que dá o tom dos enredos que nos falam de temas presentes em nosso dia a dia, como a violência associada à corrupção dentro das instituições do Estado. A história cresce com as atitudes de Nascimento para vencer esses conflitos, em muitos deles internos. Trata-se de uma luta quase solitária no mundo gelado daqueles que não aderem aos esquemas criminosos e que, ao contrário,  resolvem combatê-los”.

O personagem criado pelos roteiristas Bráulio Mantovani e José Padilha, observa Fernando Passos, vai nessa busca, sofrendo perdas e incompreensões, por ser honesto consigo mesmo, em um mundo de corruptos e de bairros miseráveis dominados pelo narcotráfico e pelas milícias. E chega finalmente ao Eixo Monumental de Brasília, onde estão instalados os poderes centrais da nação. “É um thriller fascinante sobre a miséria econômica e moral que tanto conhecemos. Um cinema de testemunho feito com arte”, define. No que toca às pesquisas focadas nas relações entre cinema e literatura, o docente do IA destaca dois estilos, que sinalizam polos opostos nas dificuldades enfrentadas no processo de criação de filmes a partir de textos literários.

Perspectiva do fracasso

“De início, gostaria de situar o escritor e roteirista Marçal Aquino, cuja prosa tem a propriedade estrutural de ser veloz e objetiva, o que a aproxima muito do thriller, do cinema de suspense. Seus roteiros para o cinema vêm de suas próprias obras (Os Matadores,  Ação entre Amigos, O Invasor, Eu Receberia as Piores Notícias dos Seus Lindos Lábios) e de outros escritores como em Nina (Dostoiévski, Crime e Castigo) e O Cheiro do Ralo [Lourenço Mutareli, mesmo título]. Endossando nossa argumentação sobre a singularidade da criação, Marçal Aquino, em debate com nossos estudantes, respondeu a uma pergunta sobre sua forma de criar e a pressão do mercado: ‘Eu escrevo na perspectiva do fracasso. Não penso em resultados. É um procedimento íntimo, pessoal’.” Outra estrutura enfatizada por ele é a chamada prosa poética, carregada de subjetividade, lacunas e indeterminações.

Grande parte dos textos de Guimarães Rosa e Clarice Lispector, entre outros escritores, diz o docente, apresenta essas propriedades, cuja produção de sentido é em grande medida dependente da sensibilidade de cada leitor. “Clarice desperta um grande interesse nas criações cênicas e cinematográficas de estudantes da graduação e da pós. Creio que isso se deve ao fato de Clarice condensar em sua obra as dimensões psicológicas mais sensíveis do universo feminino. A dificuldade maior para transcriar os textos tanto de Rosa quanto de Clarice para o cinema está na sintaxe aberta, o que obriga a uma leitura de fruição subjetiva, única maneira de participar das flexões de sentido criadas por estes escritores. Ocorre o oposto em relação a Marçal Aquino, dono de uma prosa denotativa, e por isso veloz. Os dois primeiros nos levam, na criação do roteiro, a um tempo cinematográfico mais lento, com menor número de cortes e ações objetivas, privilegiando um cinema de reflexão e contemplação. A ação, como ligação causal no avanço da narrativa, nem sempre é evidente e as tomadas são mais longas, pois a sensação estética despertada pela leitura dilata o tempo interno do filme”.

Algumas transcriações para o cinema de livros considerados “difíceis”, em decorrência dessas propriedades estruturais, deram origem a excelentes filmes, de acordo com Fernando Passos. “Como exemplos eu citaria Mutum, de Sandra Kogut, que teve roteiro dela e de Ana Luiza Martins Costa, da obra Miguilin, de Guimarães Rosa (Corpo de Baile), e o filme Lavoura Arcaica, de Luiz Fernando Carvalho, roteiro dele e de Raduam Nassar, autor do livro de mesmo nome”, elencou.

Comentários

Comentário: 

Fernando, há alguma iniciativa no sentido de, ao exemplo de Tropa de Elite 2, um roteiro ficcional, mas centrado na realidade nacional sobre o "case" mensalão?
Algo que vá da ascenção do grupo político, o aparelhamento dos orgãos estatais, a denúncia e o julgamento?
De qualquer forma parabéns pela entrevista.
Humberto Lago

humlago@uol.com.br

Comentário: 

Muito bom lhe encontrar aqui, Fernando. E depreendo da sua entrevista o esforço que se tem feito para se ter bons roteiristas. Sua entrevista é bastante esclarecedora incluindo a passagem do Gil pelo ministério.
Além do esforço sistemático, organizado da Unicamp para a preparação de roteiristas há outros no Brasil? cursos profissionalizantes etc e tal . Por vezes , procuro algum texto sobre roteiros (como fazê-lo) e encontro poucos, mesmo em inglês que sejam referenciais. Talvez esteja procurando errado. Tenho por hábito consultar "Da Criação ao Roteiro" de Doc Comparato. E ele também parece comungar da ausência da profissionalização e da preparação desse profissional. É isso mesmo? abrs. Nelson Leite

nelsonleite@hotmail.com