Edição nº 526

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 14 de maio de 2012 a 20 de maio de 2012 – ANO 2012 – Nº 526

Individualismo permeia hábitos
de morcegos, revela dissertação

Estudo de bióloga demonstra que animais têm suas predileções palatais

Seres escondidos à luz do dia e senhores da noite. Somente por essa característica, os morcegos já instigam mitos, medos ou admiração. Apesar de ter apenas três espécies hematófagas numa lista de 172 distintas no Brasil, são temidos por “se alimentar de sangue”. Ao contrário dos mitos, esses mamíferos são pouco convencionais e, a julgar pela dieta diferenciada, têm hábitos individuais, segundo a bióloga Patrícia Kerches Rogeri, mestre pelo Instituto de Biologia (B) da Unicamp. Ao monitorar, por um sistema denominado radiotelemetria, 13 indivíduos de uma população do morcego frugívoro Sturnia lilium, presente em uma área fragmentada de cerrado em São Carlos (São Paulo), ela constatou que, assim como o ser humano, os animais têm suas predileções palatais, explorando espaços e recursos diversos para garantir sua sobrevivência.

A pesquisa, que norteou a dissertação de mestrado apresentada por Patrícia no IB, teve como objetivo comprovar a existência de variação entre os indivíduos com relação à exploração do ambiente. Segundo Patrícia, a diferença no uso do ambiente por indivíduos de uma mesma espécie pode ter implicações ecológicas significativas, como na dispersão de sementes e na conservação de paisagens fragmentadas.

Ao chegar a noite, os morcegos saíam da posição de repouso (de ponta cabeça), numa mesma área de mata ciliar, para garantir alimento, mas ao contrário do que diria a lenda, não iam em bandos, mas cada um voando individualmente, de acordo com os dados registrados em transmissores acoplados aos 13 indivíduos monitorados por Patrícia. Isso, segundo a pesquisadora, corrobora a hipótese de que os morcegos não saboreiam o mesmo fruto, adotando cada um sua própria dieta. A especialização pode estar relacionada à variedade de oferta de plantas no ambiente onde vivem. As sementes são dispersas durante a noite.  

Outra informação nova e importante é a de que enquanto alguns indivíduos têm um só destino, outros exploram todo o ambiente, alimentando-se de vários recursos. A autora observou que, enquanto dois indivíduos concentraram sua atividade em subáreas com maior ocorrência de Solanaceae (família do tomate), quatro procuravam subáreas ricas em Piperaceae (família da pimenta do reino), e apenas um explorava subáreas com maior densidade de Cecropiaceae (embaúba). “Foi possível observar que na mesma população existe um gradiente de um indivíduo que é mais especialista e de outro que é mais generalista”, informa.

Filhotes

Além de ser o único grupo de mamíferos capazes de voar, de acordo com os registros da radiotelemetria, os morcegos utilizam amplas áreas e sobrevoam grandes distâncias em busca de seu alimento predileto. Outra hipótese, mas esta ainda sem confirmação, é de que os filhos aprendam com a mãe a escolher  determinado trajeto ou recurso, pois é comum que as mães os carreguem, enquanto filhotes, durante a procura pelo alimento.

“Quando estudamos a cadeia alimentar, aprendemos, por exemplo, que todos os grilos comem tal planta, o sapo, por sua vez, come o grilo, a cobra come o sapo. Mas será que todas as cobras comem sapos e todos os sapos comem grilos? Esse é o diferencial do meu trabalho”, sustenta Patrícia. Estudar a dieta é relativamente mais simples, na opinião da bióloga, mas estudar o uso do espaço é mais complexo, pois envolve mapeamento, fixação de transmissor e acompanhamento das atividades. Nesse sentido, uma das contribuições da dissertação, acredita Patrícia, é a motivação de estudos que extrapolem a observação da dieta, considerando o ambiente como um todo. Os resultados, segundo a bióloga, mostram que a diferença na utilização das áreas pelos indivíduos pode estar relacionada à diferença na distribuição das plantas que cada um prefere.

A história de Patrícia com os morcegos teve início na iniciação científica, na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), com o mapeamento de dispersão de sementes. A proposta foi avaliar se os indivíduos da população estudada levavam as sementes para locais bons para aquelas plantas. “As plantas dispersas por animais precisam contar com o serviço deles para que esse transporte seja bem-sucedido”, observa Patrícia.

Por manterem trajetos diferentes, apesar de até dormirem na mesma árvore, eles acabam dispersando sementes em áreas diferentes. “O próximo passo do trabalho é saber se essa diferença implica diferença nas eficiências como dispersores, no nível individual. O que pode acontecer com as plantas? Os morcegos, como um todo, são dispersores eficientes. Mas será que todos os indivíduos são eficientes da mesma forma, isto é, levam sementes para locais bons para as plantas germinarem e se estabelecerem?”, antecipa.

Algumas espécies frutíferas são consideradas pioneiras na sucessão da floresta, segundo Patrícia.  “Quando há distúrbios nas florestas, como clareiras ou desmatamentos, algumas plantas têm condições de se desenvolver em ambientes mais inóspitos e, com isso, propiciar que outras plantas se desenvolvam lá também.  E os morcegos são dispersores dessas plantas, chamadas de primárias Diante disso, eles são muito importantes para a regeneração da floresta”, explica. É preciso e  porém,  saber para onde as sementes são levadas, já que as plantas precisam de elementos ambientais essenciais para sobreviver. “Não adiantaria fazer dispersão de sementes no cimento, por exemplo,” pontua Patrícia.

Fragmentos

Ao mostrar que os indivíduos utilizam diferentes áreas da paisagem, a dissertação questiona a preservação de seus fragmentos em detrimento de outros.  Segundo Patrícia, um indivíduo que explorava um fragmento da paisagem, ora excluído, tende a ser prejudicado com essa prática. “De alguma forma, está sendo tirado um recurso que aquele indivíduo utilizava. A manutenção de um fragmento de uma área e não de outro pode selecionar indivíduos dentro da população e diminuir a variabilidade dentro dela com relação ao uso daquele recurso”, pontua.

Além de frutos e sangue, existem morcegos que se alimentam de insetos, pólen e outros animais. Há muitos mitos a ser quebrados e os estudos permitem que a importância ecológica do morcego seja mais conhecida pelas pessoas. Patrícia lembra que, na cidade, eles têm papel importante no controle de pragas e também na polinização.

De acordo com Patrícia, a radiotelemetria tem sido usada com frequência para determinar áreas de uso de uma espécie e tem se mostrado muito eficiente para isso, mesmo sendo muito trabalhoso. Segundo a pesquisadora, há pesquisas com roedores, aves e outros animais. Por exemplo, uma pesquisa realizada nas Bahamas com monitoramento de espécies de peixes importantes para a atividade pesqueira da região mostrou que, na época da cheia, os indivíduos da população estudada saem de suas piscinas naturais e buscam espaços diferentes para se alimentar.

 

Publicação

Dissertação: “Especialização individual no uso do espaço em morcegos frugívoros”
Autora: Patrícia Kerches Rogeri
Coorientador: Marco Aurelio Ribeiro de Mello
Unidade: Instituto de Biologia (IB)