Edição nº 526

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 14 de maio de 2012 a 20 de maio de 2012 – ANO 2012 – Nº 526

Hilda furacão?



Uma série de entrevistas concedidas pela escritora Hilda Hilst (1930-2004) foi objeto de análise do pesquisador Cristiano Diniz para fundamentar sua dissertação de mestrado apresentada ao Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp.

O estudo mostra que a imagem de uma Hilda excêntrica e despreocupada com etiquetas sociais reflete justamente o momento de uma escritora cansada. Foram quase cinco décadas de produção poética e três de prosa ficcional, além de oito peças teatrais e um conjunto de crônicas publicadas no jornal Correio Popular, de Campinas, entre 1992 e 1995. Hilda Hilst tornou-se reconhecida pela crítica literária como uma das mais importantes escritoras contemporâneas do país.

A partir da investigação de mais de uma dúzia de entrevistas concedidas pela escritora entre 1950 e 2003, o pesquisador Cristiano Diniz sustenta que Hilda esteve desde sempre interessada em provocar, mas no sentido de despertar a sensibilidade do leitor por meio da sua poesia e literatura. É no final dos anos de 1990 que a obra da escritora se volta à produção tida por alguns críticos como pornográfica ou erótica. Essa produção, explica o estudioso, é associada a um suposto comportamento obsceno e agressivo da escritora, formando uma imagem oposta à da Hilda dos anos 1960 e 1970.

“A década de 1990 é justamente o momento das entrevistas em que Hilst não está mais a fim de conversar. Ela é muito evasiva, os entrevistadores perguntam, ela muda de assunto, faz brincadeira, conta uma piada, fala um palavrão para desconcertar. É uma imagem muito diferente da cultivada nas décadas de 1960 e 1970, em que Hilda tem a preocupação de tentar dizer para o público leitor a sua intenção de passar uma mensagem com a literatura. Ela estava querendo provocar, mas não nesse sentido de provocar que ficou conhecida no final de sua vida – uma provocação ‘pornográfica’, vamos dizer assim. Mas uma provocação o tempo todo chamando a atenção de que a sua literatura está interessada em abrir um canal para a sensibilidade, que na visão dela estava completamente perdida”, opina o pesquisador.

Hilda Hilst demonstra também em suas entrevistas a luta contra o que chama de “banalização da vida humana”, amplia Diniz. “A Segunda Guerra foi deflagrada na sua adolescência. Depois, percebe-se, nos seus escritos, que ela está atenta e preocupada com a Guerra do Vietnã e outros conflitos e violências na sociedade. Ela também está atenta à agressividade do homem com os animais, vendo estes como seres indefesos em meio à crueldade humana. O núcleo central da sua literatura é justamente desenvolver uma sensibilidade poética para que os leitores observassem a vida e a relação humana de uma maneira mais sensível, não tão banal e automática. Só que esta não é a imagem que ficou de Hilda”, lamenta.

Para o seu estudo, o cientista selecionou 17 entrevistas representativas de cada período da vida de Hilda, entre cerca de cem concedidas pela escritora. O interesse foi mapear o discurso sobre ela mesma e sua obra, compondo as construções imagéticas em torno de sua figura. Nesse sentido, ressalta Diniz, sua pesquisa traz elementos inéditos porque não se deteve na análise da obra hilstiana como a maioria dos trabalhos acadêmicos. “A escritora tem um percurso longo dentro da literatura. Ela começa em 1950 e vai até o final dos anos 1990 escrevendo. E, desde cedo, já em 1952, ela começa a dar entrevistas. Ao ler uma sequência dessas entrevistas percebe-se que ela soube criar um discurso sobre si e sobre sua obra”, justifica.

O pesquisador foi orientado pelo docente do IEL Eric Mitchell Sabinson, que pontua sobre a importância da obra de Hilst. “Ela vai além do modernismo brasileiro, com métodos de fluxo de consciência extremamente avançados e uma temática mais abrangente e audaz. Questões de estilo e de temática presentes em sua obra tornam Hilda Hilst, a meu ver, o autor brasileiro mais significativo e interessante, sem rivais a partir dos anos 1970”.

Reconhecimento tardio

Os trabalhos acadêmicos sobre Hilda Hilst tiveram um crescimento, sobretudo após a morte da escritora, em abril de 2004. Mas somente em 1989 tem-se a primeira publicação acadêmica sobre a sua obra, assegura Cristiano Diniz. “Para uma escritora atuante desde os anos 1950, isso já é muito tardio. Desde o incremento das pesquisas até agora, foram mais de 80 trabalhos acadêmicos sobre Hilda. Pelo levantamento que fiz junto à Plataforma Lattes, da Capes, existem muitos trabalhos em andamento, tanto de mestrado como de doutorado. Academicamente, pode-se dizer que obra e trajetória tiveram reconhecimento”, analisa.

Já em relação ao mercado editorial e de leitores, o pesquisador afirma que o reconhecimento ainda está longe, embora o relançamento das Obras reunidas de Hilda Hilst (Editora Globo) seja merecedor de destaque. O trabalho foi coordenado pelo crítico e docente do IEL Alcir Pécora, referência em estudos sobre a escritora. “O professor Pécora foi membro da minha banca, fazendo sugestões valiosas à pesquisa. Além disso, ele me colocou em contato com a Editora Globo, me convidando a trabalhar no final do projeto de reedição. Fiz o estabelecimento do Teatro completo de Hilda Hilst, partindo das versões manuscritas que temos na Unicamp. Depois, escrevi junto com duas de suas orientandas – as pesquisadoras Luisa Destri e Sonia Purceno – para o livro Por que ler Hilda Hilst, que ele organizou para a Globo”, revela.

Provocação

“Paris era bom quando eu @§#!$...”, o título utilizado por Cristiano Diniz em sua dissertação, foi uma das pérolas extraídas de uma entrevista dada por Hilda Hilst para a revista Cult em 1998. O elemento gráfico usado no título para ocultar uma palavra que “não poderia ser dita” é, segundo o autor, uma provocação à crítica literária. “O título tem ‘o que não se pode dizer’, que é uma tentativa de sintetizar também o pensar de Hilda dentro da academia. É uma provocação à crítica literária. Quando, por exemplo, os críticos vão analisar um trecho obsceno da obra da Hilda, eles fazem todo um rodeio para não usarem os termos que a escritora usou. Há, implícita, a carga de pudor. A própria Hilda narra em algumas entrevistas a relação dela com a academia, de momentos em que ela falava o que vinha à cabeça e chamavam a sua atenção, dizendo: ‘Hilda, aqui você não pode dizer isso, aqui você está dentro da academia’”, conta.

Além disso, segundo Diniz, o título também expressa a relação de algo que passou e não foi aproveitado. São uma constante nas entrevistas de Hilda Hilst suas queixas por não ter sido reconhecida enquanto jovem. “Mesmo quando a Editora Globo faz a reedição de toda a sua obra, tem entrevistadores que falam: ‘Bom, enfim, né Hilda, agora você vai ser totalmente publicada, agora sim chegou o reconhecimento, você está feliz?’ E ela respondia: ‘Mas chegou tarde.’ Tem a ver justamente com esse cansaço de brigar, de escrever poesia, de escrever teatro, de escrever prosa de ficção, de escrever crônicas e ter esta certa mágoa de nem mesmo a crítica se posicionar”, lembra.

Onde tudo começou

Em 2004, o profissional de arquivos Cristiano Diniz era um dos responsáveis na Unicamp pela organização do acervo documental de apenas mais uma escritora importante para ele. Agora, o que era uma escritora importante, tornou-se Hilda Hilst.

 Foi naquele ano, durante uma rotina de trabalho no Centro de Documentação Alexandre Eulálio (Cedae) do IEL, que Diniz teve contato, pela primeira vez, com a obra e a história da escritora. O fato despertou o interesse do cientista social formado pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH). “A pesquisa começou com este contato com a massa documental. Eu não conhecia a obra de Hilda até então. Comecei a trabalhar com a documentação justamente no ano de falecimento da Hilda”, lembra. “Considero-me privilegiadíssimo porque fui o responsável pela organização do acervo da escritora no Cedae”, reconhece.

O Cedae detém o “Fundo Hilda Hilst”, um arquivo pessoal da escritora que está disponível a pesquisadores de todo o mundo. “É uma documentação riquíssima em correspondências, manuscritos, agendas em formato de diários e anotações de leitura. Foi esse material que despertou o meu interesse pela Hilda”, evoca Diniz. No momento, ele trabalha na inserção dos materiais da escritora na base de dados arquivística da Unicamp (Sahu), que fornece acesso eletrônico ao patrimônio documental da Universidade.

A partir de 1982, Hilda Hilst, que morava em Campinas, integrou o Programa Artista Residente, do Núcleo de Desenvolvimento Cultural (Nudecri) da Unicamp. Entre os anos de 1986 e 1988, ela foi responsável na Unicamp pelo Laboratório de Textos do Departamento de Artes Cênicas do Instituto de Artes (IA).

O pesquisador também utilizou para sua dissertação materiais abrigados na biblioteca do IEL, no Arquivo Edgard Leuenroth (AEL), do IFCH, na biblioteca da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP), e no Arquivo Público do Estado de São Paulo.

 

Publicação

Dissertação: “Paris era bom quando eu @§#!$...”
Autor: Cristiano Diniz
Orientador: Eric Mitchell Sabinson
Unidade: Instituto de Estudos da Linguagem (IEL)

Comentários

Comentário: 

Convivi durante 20 anos com a Hilda Hilst e realmente fico feliz por um estudioso perceber o quanto a escritora sofreu com o reconhecimento tardio de sua obra, especialmente pelo mercado editorial (leia-se grandes editoras). Parabéns pela tomada de posição. E obrigada!

leusa.araujo@terra.com.br