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Tese contesta rótulo de solitárias atribuído
às ‘novas solteiras’ que moram sozinhas e não têm filhos

Mulheres ‘sós’, mas de bem com a vida

LUIZ SUGIMOTO

A educadora Eliane Gonçalves: "A solidão passou a ser algo positivo e até desejado"  (Foto: Divulgação)A mulher que mora sozinha, quando jovem, é aquela que vive lixando as unhas, folheando revistas femininas e olhando o vazio à espera do homem ideal; quando mais velha, é aquela que ficou para tia tricoteira, preterida dentre tantas de melhor sorte. Temos aí dois estereótipos de mulheres sós que estão sendo soterrados com a “explosão das novas solteiras”, assim enaltecidas na mídia, filmes e seriados de televisão neste início de século.

Elas têm mais de 30,
renda
própria e alta escolaridade

A mídia apresenta as “novas solteiras” como mulheres acima dos 30 anos, altamente escolarizadas, com renda própria e caracterizadas predominantemente como brancas, heterossexuais, sem filhos e morando em grandes cidades. Simbolizam um novo estilo de vida, em geral associado ao individualismo moderno”, descreve a educadora Eliane Gonçalves.

Eliane acaba de defender a tese de doutorado Vidas no singular: noções sobre “mulheres sós” no Brasil contemporâneo, no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, com a orientação da antropóloga Adriana Piscitelli. Na tese, ela examina três contextos de produção de idéias: estudos de população, mídia e narrativas de mulheres morando sozinhas.

Segundo a autora, estima-se que o número de domicílios brasileiros ocupados por uma única pessoa subiu de 9% para 11% nos últimos sete anos. “No censo de 2000, o IBGE já confirmava que o Brasil segue a tendência observada em países europeus e da América do Norte, com o crescimento dos chamados domicílios unipessoais”.

Esta tendência, conforme a pesquisadora, sugere também a “explosão de novas solteiras”, considerando a ascensão das mulheres a melhores postos de trabalho e de sua migração para os centros urbanos. No entanto, ela critica a insistência da mídia em vinculá-las à condição de pessoas privadas de vínculos amorosos e sexuais, noticiando o “alto número de mulheres solitárias nas metrópoles”.

“Meu estudo contesta veementemente esta idéia de que as mulheres estão sós porque esperam seu príncipe encantado, foram preteridas em função das mais jovens ou por motivos afins. Há escolhas que elas vão fazendo ao longo da vida, como a de privilegiar a carreira profissional para marcar seu lugar no mundo”, pondera.

 Segundo a autora da tese, "há escolhas que as mulheres vão fazendo ao longo da vida, como a de privilegiar a carreira profissional para marcar seu lugar no mundo" (Foto: Antonio Scarpinetti)Mantendo suas atividades profissionais juntamente com a pesquisa de doutorado, Eliane restringiu as entrevistas à sua cidade, Goiânia. Além de educadora, ela é especialista em saúde pública e co-fundadora do Grupo Transas do Corpo, organização não-governamental feminista voltada a ações educativas e de pesquisa em gênero, saúde e sexualidade.

A pesquisadora ouviu doze mulheres com idades entre 29 e 53 anos, sem filhos e morando sozinhas há mais de dois anos. Elas apresentam certa homogeneidade em termos de classe social e diversidade quanto à raça, origem de nascimento, idade e orientação sexual.

“As entrevistas é que permitiram problematizar aspectos como a sexualidade, o casamento, a necessidade do par, a maternidade e o sentimento negativo de solidão”, informa a autora. (Veja trechos dos depoimentos nesta página)

Pirâmide – Eliane Gonçalves procura problematizar o fenômeno das “mulheres sós” a partir do “mercado matrimonial”, conceito familiar aos demógrafos, segundo os quais, na sociedade brasileira, os homens se casam ou se unem a mulheres mais jovens. A diferença média, que é de 3 anos na primeira união, tende a aumentar conforme a idade deles avança.

“De acordo com este conceito da demografia, até os 30 anos, existe uma proporcionalidade, uma vez que homens e mulheres se encontram disponíveis, ao menos numericamente. Depois dos 30, começa a haver uma situação desproporcional, considerada desvantajosa para as mulheres”, explica a pesquisadora.

A desvantagem se agrava depois dos 50 anos, quando um homem tem trinta vezes mais chances de encontrar uma parceira. É este o quadro do mercado matrimonial que a demógrafa Elza Berquó, do Núcleo de Estudos de População (Nepo) da Unicamp, denominou de “pirâmide da solidão”.

No entanto, a própria Berquó, analisando dados do censo de 1980, observou que as moradias unipessoais eram ocupadas por homens solteiros e mais jovens e por mulheres mais velhas (solteiras, separadas, viúvas) com maior escolaridade. E concluiu que esta inversão seria mais do que um desequilíbrio no mercado, podendo estar relacionada com uma mudança de estilo de vida em curso nas grandes cidades.

Matrimônio – Eliane Gonçalves recorda que a “pirâmide da solidão” foi muito difundida na mídia, que então criou a categoria das “sozinhas”. Na opinião da educadora, a delimitação da idade das mulheres entre 28 e 35 anos, e o conteúdo dos jornais e revistas, mostram que a mídia atribuía a este estilo de vida um caráter transitório.

“Tanto é que as matérias oferecem antídotos contra a solidão ‘enquanto o príncipe não vem’: produtos específicos para quem mora sozinha, endereços para noitadas, roteiros de viagens. E também se esmeram em ensinar como arranjar um marido”, exemplifica.

Eliane concorda que existe tal expectativa ao redor dos 30 anos, mas menos em relação ao casamento e mais à vida amorosa. “A mais jovem que entrevistei saía de uma relação de coabitação. Continua com o mesmo parceiro, mas morando separados, o que causa a inveja dos amigos. Eles podem escolher na casa de quem passar o fim de semana e mantêm outros privilégios típicos das camadas médias altas”.

Frases como “essa casa é o que tenho de mais meu”, “tenho liberdade de ir e vir” e “não dou satisfação a ninguém”, soam aos ouvidos da pesquisadora como oposição ao casamento, visto como opressivo e vinculado a uma imagem bastante tradicional das relações homem-mulher.

Maternidade – Lembrando que morar só, no caso destas mulheres, não significa ficar sem par para relações sexuais (assim como a heterossexualidade não foi a única modalidade encontrada), Eliane também abordou a maternidade. “Duas, entre as mais jovens, manifestaram com convicção o desejo de ter filhos e constituir família no modelo mais tradicional, vivendo com o parceiro”.

Acima dos 40, uma manifestou o desejo de adoção e as outras não mais consideravam a possibilidade da gravidez. Duas homossexuais queriam filhos, mas se preocupavam mais com os obstáculos que em viabilizar o projeto. “Encontrei ainda mulheres com posições mais “radicais”, que nunca cogitaram a maternidade. Todas, no entanto, sofreram uma pressão social ou da família para ter filhos, especialmente ao redor dos 30 anos”.

Feminismo – O feminismo não foi uma questão explicitada nas entrevistas, mas seu ideário (autonomia, igualdade, independência e liberdade) e suas conquistas (emancipação pelo trabalho, voto, educação, liberdade sexual) marcaram as narrativas. Para Eliane, o feminismo, associado a outras mudanças sociais, econômicas e políticas, fez com que o desejo de antes se transformasse na possibilidade concreta de um novo estilo de vida.

“É preciso ressaltar a absoluta novidade histórica deste fenômeno no que se refere a perspectiva de classe, assalariamento e autonomia para regular a própria vida”, afirma. De acordo com a pesquisadora, a maioria das entrevistadas atribui peso muito grande ao trabalho. “Ser independente é ‘ter renda própria, ganhar a vida’. Muitas comparam o prazer trazido pelo trabalho com o gozo sexual”.

A capacidade de criar e manter “um teto todo seu”, segundo Eliane Gonçalves, confere às “novas solteiras” uma singularidade e uma respeitabilidade em comparação com as gerações anteriores: “hoje sou admirada”, é uma comemoração comum. “Elas deram outro significado à solidão, que não é mais de isolamento social devido à ausência do par. A solidão passou a ser algo positivo e até desejado”.

Coisas de mulher

Minha mãe dizia que o primeiro piolho que ela matou na minha cabeça, ela matou num jornal para eu aprender a ler... [risos]. Como eu vivia andando para baixo e para cima com um livro, ela dizia assim: “Ah... tenho grande arrependimento de ter feito isso, porque eu devia ter matado esse primeiro piolho na máquina de costura, assim você seria costureira”. (Helena, 44, morena, professora universitária)

Com homem eu sempre divido conta, não gosto de deixar o sujeito pagar sozinho, assim como não gosto de pagar sozinha, eu acho que tem que ser dividido. Mas, [se eu digo] “ah, vamos pra tal lugar”, e ele diz “eu não posso, lá é muito caro”, falo numa boa, “tranqüilo, tudo bem, pode deixar que fica por minha conta, eu banco”. (Mariah, 42, morena, professora universitária)

Eu sou uma pessoa tipicamente bissexual, mas tô namorando uma pessoa numa relação homossexual. Eu sinto atração tanto por homem quanto por mulher. Sempre fui muito franca assim. A sensação é que eu sou bissexual, acho que eu sou, tô falando que eu acho porque faz muito tempo que tô namorando com mulher. Mas é que eu sinto atração por homem também. (Meire, 34, branca, profissional liberal)

Tem uma coisa que mexe muito, estudar, no caso atender [no consultório], o exercício da minha profissão. Hum, olha, não tem orgasmo melhor [risos]. É muito prazeroso, eu tenho um amor profundo por aquilo que eu faço. Sabe, isso me mobiliza sim, isso mexe comigo assim, de ponta a ponta. (Camila, 43 anos, negra, psicóloga e psicanalista)

Eu já me preocupei, quando tava perto dos 30, eu tive a história da maternidade (...), por causa do jeito meu de cuidar, de ser afetuosa. Esse lado as pessoas associam com o maternal. Eu sempre tive uma história de que eu ia ser mãe, que era uma coisa que eu queria viver, então com 30 anos eu balancei. (Cândida, 36 anos, branca, professora universitária).

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