| Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 372 - 17 a 23 de setembro de 2007
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Tese mostra que publicação do século XIX dirigida
ao público feminino não oferecia apenas conteúdo ameno

Um jornal não tão família assim

MANUEL ALVES FILHO

Alexandra Santos Pinheiro, autora da tese: colaboradores esquecidos pela historiografia (Fotos:Reprodução)Ao contrário do que apontam alguns pesquisadores e supõe o senso comum, o Jornal das Famílias, periódico dirigido ao público feminino que circulou entre os anos de 1863 e 1878, não oferecia apenas conteúdo ameno às suas leitoras. Alguns debates importantes travados no século XIX, como a necessidade da consolidação de uma literatura nacional e a condição do escritor brasileiro, também eram abordados com freqüência pelos redatores e colaboradores da publicação. A constatação é de Alexandra Santos Pinheiro, que investigou o jornal em sua tese de doutorado apresentada no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp. A pesquisadora foi orientada pela professora Márcia Azevedo de Abreu.

Além de esmiuçar o conteúdo editorial do Jornal das Famílias,  Alexandra também procurou resgatar a importância de colaboradores da publicação que foram praticamente esquecidos pela historiografia contemporânea. De acordo com ela, muitas pesquisas envolvendo o periódico concentram-se na figura de Machado de Assis, um dos mais importantes literatos brasileiros. A primeira fase da obra do escritor é constituída em grande parte por contos que ele produziu para o jornal, sobretudo para a seção Romance e Novellas. “Ocorre, porém, que outros escritores tidos como menores, como Lucio Mendonça, Augusto Emílio Zaluar, Maria Albuquerque e Luiz Fernandes Pinheiro Júnior, deram valiosa contribuição para o jornal”, afirma.

Victor Hugo, autor de Os Miseráveis, livro recomendado pela publicaçãoDe acordo com a pesquisadora, embora fosse um periódico dirigido ao público feminino e mantivesse seções de economia doméstica, moda, artesanato, poesia, entre outras, o Jornal das Famílias não se atinha somente a esses assuntos. Os autores dos textos, não raro, tratavam também de temas que eram debatidos na Rua do Ouvidor, no Rio de Janeiro, endereço do jornal. Entre eles estavam questões relacionadas à política, aos costumes e à literatura. Uma das narrativas analisadas por Alexandra, por exemplo, falava das características do “bom romance”. Conforme o autor, este poderia ser classificado como o texto que não ofende a moral. Uma referência desse padrão seria Os Miseráveis, clássico escrito em 1862 pelo francês Victor Hugo.

Ouro texto selecionado por Alexandra fazia uma reflexão sobre a necessidade de se construir uma literatura genuinamente nacional, a exemplo do que fizeram outros países. Na mesma linha, alguns redatores convidavam as leitoras a tomar contato com o que ocorria fora da corte. Somente com o conhecimento do que se passava no sertão nordestino ou no Vale do Paraíba, no interior de São Paulo, defendiam esses autores, é que seria possível produzir literatura brasileira. Ainda tendo as mulheres como principais interlocutoras, os colaboradores do Jornal das Famílias aproveitam o espaço de que dispunham para também falar sobre a condição dos escritores tupiniquins, espalhados por todo o país.

Esses temas e a forma como eles eram abordados, conforme Alexandra, demonstram que o conteúdo da publicação ia além das amenidades. “Embora não houvesse uma seção destinada às cartas dos leitores, é possível constatar que havia, por parte dos colaboradores, conhecimento e compreensão acerca dos anseios do público leitor, formado majoritariamente por mulheres”, afirma a pesquisadora. A autora da tese diz que o conteúdo do jornal passou por duas fases distintas durante os seus 16 anos de circulação. A primeira foi caracterizada pela influência do ultra-romantismo, corrente literária da segunda metade do século XIX. “Era a fase dos contos e romances em que o homem ou a mulher morriam por amor”, destaca.

Machado de Assis: "Mil nadas tão necessários ao reino do bom tom"Nos dois últimos anos de circulação do Jornal das Famílias, o ultra-romantismo perdeu espaço para uma literatura mais realista, para a qual morrer de amor não fazia sentido. Um aspecto curioso levantado por Alexandra diz respeito às personagens presentes nos contos e novelas publicados pelo periódico. Dentre os textos analisados pela pesquisadora, apenas três traziam a mulher negra como protagonista da história. Ainda assim, elas apresentavam uma conduta moral diferente daquela esperada das mulheres brancas. “Enquanto às primeiras era consentido fazer sexo fora do casamento, inclusive com os patrões, às segundas tal comportamento era vedado”, explica.

Ainda nesses textos, as mulheres negras apareciam como seres apaixonados por homens brancos. Entretanto, nenhuma delas conseguia concretizar esse amor. “A elas eram reservados finais trágicos. Uma enlouqueceu, outra se matou e a terceira passou a vagar pelo mundo como mãe solteira”, relata a autora da tese. Alexandra revela que não teve dificuldade para acessar as edições do jornal. “Quando do meu mestrado, eu adquiri os microfilmes de todas as edições do Jornal das Famílias, graças a um financiamento da Fapesp [Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo]”, esclarece. O material encontra-se à disposição para consulta pública no Arquivo Edgard Leuenroth (AEL) da Unicamp. Os originais pertencem ao acervo da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro

De acordo com Alexandra, que atualmente é professora da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste), a redação não fez qualquer comunicado oficial sobre o encerramento das atividades do periódico. No entender da pesquisadora, em 1878, ano em que deixou de circular, a publicação já não gozava do mesmo prestígio de anos anteriores. “Creio que o Jornal das Famílias deixou de existir por acompanhar uma tendência da época”, cogita.

Circulação internacional – O Jornal das Famílias foi uma iniciativa do editor francês Baptista Louis Garnier, considerado um dos responsáveis pelo desenvolvimento editorial no Brasil. O periódico circulou durante 16 anos (1863-1878) por diversas províncias brasileiras, mais Portugal e França. O público do jornal era constituído predominantemente por mulheres, mas não apenas por elas. A periodicidade era mensal e as edições eram rodadas em Paris. Tal procedimento mereceu uma reação negativa por parte dos tipógrafos brasileiros. Sobre a publicação, Machado de Assis, o seu colaborar mais assíduo, fez o seguinte registro:

“Melhorando de dia para dia, as edições da Casa Garnier são hoje as melhores que aparecem entre nós. Não deixarei de recomendar aos leitores fluminenses a publicação mensal da mesma casa, o Jornal das Famílias, verdadeiro jornal para senhoras, pela escolha do gênero de escritos originais que publica e pelas novidades de modas, músicas, desenhos, bordados, esses mil nadas tão necessários ao reino do bom tom”.

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