Jornal da Unicamp 188 - 2 a 8 de setembro de 2002
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Clarete Paranhos: o resgate de cientistas brasileiros esquecidos pela historiografia.Ilustre desconhecido

Mineralogista José Vieira Couto é personagem de livro que mostra como se fazia ciência no Brasil do século 18

LUIZ SUGIMOTO

Quando a professora Clarete Paranhos da Silva apresentou resultados de sua disserta

Até bem recentemente a historiografia das ciências estudava apenas as atividades que se realizavam nos países europeus ou, no século 20, nos Estados Unidos. A ciência que se praticava fora desses centros é ignorada, tendência seguida pelos historiadores latino-americanos que não conseguiam enxergar a existência de atividades científicas no continente. “A história da ciência no continente permanecia ‘secreta’ e ‘não contada’”, escreve Clarete, cuja pesquisa, financiada pela Fapesp, transformou-se no livro O Desvendar do Grande Livro da Natureza, lançado pela Annablume Editora com co-edição da Fapes e do Faep-Unicamp.

Pesquisadora afirma
que visão "eurocêntrica"
deixou atividade científica
na AL no esquecimento

"Quando estudamos ciência, surge aquela questão de quem são os 'pais da ciência'. No Brasil, em termos de geologia e mineralogia, essa paternidade é atribuída a estrangeiros. Só que naquele período tínhamos vários naturais da colônia que se formavam principalmente na Universidade de Coimbra, e depois voltavam para fazer pesquisas e inventários da natureza, até anteriores aos dos chamados 'pais', e que acabaram esquecidos pela historiografia", explica Clarete. 

José Vieira Couto realizou suas pesquisas entre 1798 e 1805. Começou pela região do Serro Frio, estendeu-se por outras áreas, tendo atingido as Comarcas do Sabará e de Vila Rica, chegando próximo à Capitania de Goiás, subindo e descendo o Rio São Francisco pelos chamados sertões do Abaeté. Além das informações geológicas, Couto anotava impressões sobre moradores, arquitetura dos arraiais e vilas, atividades econômicas, agricultura, criação de animais etc. Opinava ainda quanto ao melhor aproveitamento dos recursos da Capitania de Minas Gerais. 
 

Alunos do Instituto de Geociências em atividade de campoQuê de poeta – Uma particularidade nos textos de Couto é o tom muitas vezes poético, aliás, adotado por outros filósofos naturais. Clarete Paranhos explica que no livro usa o termo “cientista” de forma retrospectiva, visto que no período abordado ele era definido como “filósofo natural”. O filósofo natural ou naturalista era responsável pelo desvendar da natureza seguindo métodos científicos. Daí a metáfora que dá título ao livro. “Couto deixou quatro memórias. Fiz um estudo contextualizado dessas memórias (assim eram chamados os textos de história natural). Levantei a sua trajetória pessoal e enquanto filósofo natural, ao mesmo tempo em que resumi como ocorriam as relações entre Brasil e Portugal (sociais, econômicas, políticas), as idéias científicas, os métodos de trabalho”, afirma. 

Os doze anos de experiência como professora da escola pública, seguramente contribuíram para que Clarete Paranhos escrevesse um livro com linguagem didática e atraente, inclusive para leigos. Mais vale reproduzir abaixo alguns trechos, oferecendo uma idéia da obra, que se arriscar ao exercício de um comentário superficial que empobreça o conteúdo.

Trechos de O Desvendar do Grande Livro da Natureza
- A segunda metade do século 18 português é marcada por profundas reformas, em um grande esforço de recuperação orquestrado pelo Estado [crise decorrente do declínio do colonialismo frente à Revolução Industrial]. A atenção foi dirigida àqueles setores considerados como pilares da economia – comércio, agricultura e indústria.[...] Não escaparam a essa política reformista os setores educacional e universitário. Havia um sentimento geral de que o progresso só chegaria ao pequeno reino se ali fossem institucionalizadas as ciências modernas. Nem poderia ser diferente. Estávamos em pleno século das Luzes, onde a “Razão” e cientificismo estavam na ordem do dia. [A razão] julga, compara, descobre. 

- Pela reforma realizada entre 1758 e 1772, foram introduzidas disciplinas científicas e criados os cursos de Matemática e Filosofia. A Universidade de Coimbra passou a formar naturalistas, sendo que no final do século 18 os cursos de ciências naturais eram os que mais atraíam estudantes. 

- Os textos de Couto seguem a orientação do governo português, que buscava ampliar e diversificar a exploração mineral. O ouro e o diamante não são os únicos objetos de observações, mas também o ferro, chumbo, prata, salitre, cobalto, enxofre, platina e outros. 

- Em 1749 iniciou-se a publicação da História Natural, obra de um dos maiores naturalistas do século 18, Georges-Louis Leclerc, Conde de Buffon. Ele apresenta uma teoria sobre a Terra e faz importantes considerações sobre a América. Para Buffon, o Novo Continente seria muito mais jovem em comparação ao Velho Continente, pois apresentava sinais de que emergira das águas posteriormente. A América possuía uma grande quantidade de rios, lagos e pântanos, além de clima quente e úmido e uma vegetação que impedia a penetração dos raios solares. Um tal ambiente sustentava uma natureza viva inferior, pois era propício ao surgimento de uma grande quantidade de seres inferiores como insetos e répteis. Também em conseqüência do clima, o homem americano era mais fraco e impossibilitado de dominar a natureza. 

- [...] Pensava Couto que o desconhecimento destas diferenças [montanhas primárias (as mais velhas), secundárias e terciárias (as mais novas)] levava os mineiros a minerar os montes da mesma maneira que mineravam os rios, quando nos primeiros a mineração deveria ser feita por meio da construção de minas. [...] O Estado português deveria fazer circular entre os mineiros uma espécie de manual prático em três volumes. O primeiro ensinando sobre construção e funcionamento das minas. O segundo ensinando a extrair pelo fogo os metais das pedras. O terceiro dando conta da arte dos ensaios. 

- Werner construiu um modelo de larga influência no pensamento geológico da época. Segundo sua concepção, a Terra fora completamente coberta por um oceano primordial que continha em solução todos os materiais que em dado tempo precipitaram-se e deram origem à crosta terrestre. Todas as rochas, com exceção das aluviais e vulcânicas, teriam se originado sob as águas deste oceano primordial, daí o nome “netunista” dado ao modelo de Werner.

- Couto desprezava a idéia catastrofista que imputava ao Dilúvio a formação dos montes secundários. Expressava a crença de que a Terra passava por mudanças constantes e graduais, cujas causas seriam naturais. 

- No estágio em que se encontravam as ciências que estudavam a Terra, o desvendar do Grande Livro da Natureza era uma tarefa árdua e cheia de incertezas. 

- Anotação de José Vieira Couto, ao admirar as serras que seguiam em todas as direções desordenadamente, sem explicação aparente: "... decidamos ao depois com timidez, ou deixemos antes taes questões para as vindouras camadas de gente, que com maiores vantagens passarão tanto por cima das nossas poeiras, como das nossas observações e fadigas".