| Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 306 - 17 a 23 de outubro de 2005
Leia nesta edição
Capa
Artigo
CT&I
HC: 20 anos
Nas bancas
Clima: O tempo esquenta
Vitrine virtual
Jornada estudantil
Painel da semana
Teses
Livro da semana
Unicamp na midia
Portal Unicamp
Michel Plon
Tragédias cariocas
 

12

Mestranda faz uma leitura social das peças
de Nelson Rodrigues consideradas ‘literariamente menores’

Tragédias cariocas

LUIZ SUGIMOTO

Elen de Medeiros, autora da dissertação: "Trágico com um viés moderno" (Foto: Antoninho Perri)Nelson Rodrigues só fala em sexo, esta era a visão que se consolidava conforme suas peças iam estreando no palco. E, no julgamento dos críticos de então, ele seria capaz de criações ainda mais “escandalosas e fúteis”. Em Teatro Completo de Nelson Rodrigues, de 1984, o crítico Sábato Magaldi, organizador desta coletânea, divide as 17 peças escritas pelo autor em três ciclos: peças psicológicas, peças míticas e as Tragédias cariocas. As oito tragédias estão agrupadas nos volumes 3 e 4: A falecida (1953), Perdoa-me por me traíres (1957), Os sete gatinhos (1958), Boca de ouro (1959), O beijo no asfalto (1961), Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas ordinária (1962), Toda nudez será castigada (1965) e A serpente (1978).

“A crítica da época se debruçou primordialmente sobre as peças míticas e psicológicas. As Tragédias cariocas eram abordadas sem ênfase, sendo muito comparadas a melodramas. Vi várias menções de que se tratavam de peças literariamente inferiores. Daí, meu interesse: inferiores só por seu caráter melodramático?”, questiona Elen de Medeiros, que na última sexta-feira (14) apresentou dissertação de mestrado com este enfoque, orientada pelo professor Antonio Arnoni Prado, junto ao Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp. “Lendo o conjunto de suas peças percebi nas Tragédias cariocas um olhar mais voltado para os aspectos urbanos. Delas surgiram vários filmes e adaptações, inclusive da Rede Globo, justamente porque trazem este caráter mais popular. Mas isso não significa que sejam menores”, acrescenta.

O dramaturgo Nelson Rodrigues: peças analisadas na pesquisa têm caráter mais popular (Foto: M. Pires/Folha Imagem)Elen de Medeiros ressalva que seu estudo é sobre literatura dramática, sem a pretensão de analisar os elementos cênicos do teatro de Nelson Rodrigues ou o processo de construção da personagem pelo ator. “Eu me prendo às personagens porque, dentro da dramaturgia, elas são o principal elemento de formação do texto dramático. Se num romance há a voz do narrador, nas peças teatrais são as personagens que vão articulando toda a ação”, observa. Segundo ela, é a leitura social que conduz a dissertação, partindo do princípio de que as personagens do dramaturgo são regidas por impulsos, que se sobrepõem aos ditames morais do meio social. “Ele construiu suas personagens, repletas de desejos, a partir do exemplo da vida urbana do Rio de Janeiro das décadas de 50 a 70. Enfoca a repressão sexual sofrida pelas várias camadas sociais e que é gerada justamente por códigos de ética e moral vigentes em uma sociedade fundamentalmente cristã”, afirma.

Impulso – Do ponto de vista antropológico, a mestranda procura entender a repressão sexual sofrida pelas personagens e os mecanismos utilizados pela sociedade para que esta repressão se torne efetiva. Um ponto patente que percorre todo o teatro rodrigueano, em sua opinião, é o ato sexual, e quase sempre como um fator de destruição das personagens. “Por causa do sexo, elas corrompem e são corrompidas. Há sempre o contraste entre o rico e o pobre. O pobre, em geral, vive em ambiente onde ainda predomina certa pureza de caráter, que o rico vem e corrompe, deturpando o pobre moralmente. É esta ambivalência que gera a tensão, que gera o trágico, que vai levar à destruição de alguém”, raciocina.

Acontece que, quando o impulso sexual é muito forte, explode. Com Nelson Rodrigues, esta liberação do impulso, dos desejos reprimidos, do grotesco, funciona como gatilho para uma reviravolta no enredo da peça, submetendo as personagens a uma série de desdobramentos que acabam por levá-las a um fim trágico. “Este fim trágico é muito ligado à estética expressionista, em que o herói é aniquilado depois de todo um processo de prostração da sua vida. É um processo característico das oito Tragédias cariocas”, compara.

Elen de Medeiros, na dissertação, recorre a conceitos de Schiller e Nietzsche, por exemplo, para discorrer sobre o sentido do trágico e a estética do trágico, assunto que pretende aprofundar num trabalho de doutorado. “Em Nelson Rodrigues, devemos pensar a formação do trágico com um viés extremamente moderno. Ele não usa o trágico enquanto gênero puro, mas mesclando melodrama, tragicomédica, comédia e comédita de costumes, a ponto de algumas peças serem classificadas como tragédias de costume”, ressalta. A pesquisadora ocupa cerca de 70 páginas também para detalhar a estrutura dramática das Tragédias cariocas, apontando no autor um dos poucos do século 20 que abusam das rubricas (indicações sobre cenário, vestuário, postura no palco, entonação de voz, etc), elementos que ajudam a compor a personagem literária em um texto dramático. Mas Nelson Rodrigues vai além do recurso habitual da didascália, pois usa recursos altamente literários em suas rubricas, favorecendo a leitura do texto dramático.

Execração – Na Biblioteca Nacional, no Rio, Elen de Medeiros pesquisou jornais do período como Correio da Manhã e Última Hora, encontrando muitos artigos sobre as peças de Nelson Rodrigues. “Sobre Perdoa-me por me traíres, de 1957, os críticos fazem uma grande publicidade nas duas semanas antes da estréia, comentando montagem, cenários e ensaios, criando boa expectativa junto ao público. Dois dias depois da estréia, descia uma crítica pesada, que execrava a peça”, conta. O crítico Henrique Oscar passou a negar o próprio valor artístico da obra do autor, conquistado com Vestido de Noiva, escrevendo que o valor estético do teatro rodrigueano ficava submerso pela “avalanche de morbidez e grotescos gratuitos”, enquanto Paulo Salgado acrescentava que tratava-se de um dramaturgo de grande força e talento, mas que os desperdiçava em troca de elementos mórbidos para sua peça.

Toda nudez será castigada (1965) foi uma encomenda de Fernanda Montenegro, já uma atriz de renome, que queria uma comédia e se indignou com uma história em que a personagem principal acredita que vai morrer de câncer no seio e trai o marido com o próprio filho dele. Ela foi uma das seis atrizes que recusaram o papel de Geni “por altíssimos motivos éticos”. A mestranda acredita, porém, que Nelson Rodrigues, ao invés de combater, alimentava a faceta de tarado e reacionário: “Ora ele se defendia, escrevendo em sua coluna que não pretendia ser moralista, ora ia à televisão para afirmar que ‘só as mulheres normais gostam de apanhas, as histéricas reagem’. Ele se intitulava um ‘tarado de suspensórios’”, relembra. (Veja nesta página crônica escrita por ele em 1970 e publicada em O reacionário, organizado por Ruy Castro e editado pela Companhia das Letras).

Canonização – A acusação de reacionário se deve ao não engajamento político de Nelson Rodrigues, contrariamente a outros dramaturgos da época. “Ele não fez apologia política em seus textos, como Oswald de Andrade, nem foi tão fortemente ligado a questões da aristocracia, como aconteceu com Jorge Andrade, tampouco desceu às camadas mais renegadas da sociedade, como no teatro de Plínio Marcos, e não lutou em defesa dos proletários, como no caso de Gianfrancesco Guarnieri. Ainda assim, ele se manteve como um grande leitor da sociedade, a seu modo, e foi um ferrenho crítico social”, escreve Elen de Medeiros.

Um aspecto interessante, ressaltado pela pesquisadora, é que a partir de sua morte, em 1980, a corrente se inverteu rapidamente e Nelson Rodrigues passou a ser consagrado como o maior autor dramático nacional, sem maiores ressalvas. No período que coincide com o de abertura democrática, as peças do dramaturgo – sete delas foram interditadas pela censura – passaram a ser lidas como de reflexão sobre questões hierárquicas, problemas sociais e repressão sexual. “Já a partir do lançamento de Teatro Completo, em 1984, Nelson Rodrigues aparece canonizado”, finaliza Elen de Medeiros.

Tarado de suspensórios

Em que consiste o “Paredão” de Manchete? É uma enquete. A revista escolhe uma vítima e chama uma série de personalidades. Faz-se o julgamento ou, melhor do que isso, a execução. As perguntas devem ser mortíferas como balas.

Quando o Zevi fez o convite, a minha modéstia entrebuchou. Aleguei que o “Paredão” exige os méritos especialíssimos que me faltam. Quem se lembraria de fuzilar um homem secundário como eu? Retrucou o Zevi: – “Você é muito discutido”. Retifiquei: – “Fui discutido”. E, de fato, eu era um ser polêmico. Imaginem vocês um centauro que fosse a metade cavalo e a outra metade também. Era esta a minha imagem para gregos e troianos. Detestado por uns, tarado para outros, mal-amado por todos.

Dirão vocês que exagero. Mas creiam que, durante vinte anos, fui eu o único autor obsceno do teatro brasileiro. Na estréia da minha peça Anjo Negro, o Diário de Notícias me chamou de tarado no alto da página, em oito colunas. Nunca me esqueço de uma piedosa dama que, num sarau de grã-finos, disse, esbugalhada: – “Nelson Rodrigues é um necrófilo!”. Houve, em derredor, um suspense pânico. Alguém perguntou: – “A senhora tem certeza?”. Chamou o marido e fez-lhe a pergunta: – “O Nelson Rodrigues é o quê?”. Veio a resposta: – “Necrófilo!”.

Mas há pior e, repito, pior. Em outro sarau, um sujeito explica que “Nelson Rodrigues fazia a sesta num caixão de defunto”. Pensando bem, eu não era bem um autor controvertido. Havia em torno de minha pessoa, textos e atos, uma sólida e crudelíssima unanimidade.

Topo

SALA DE IMPRENSA - © 1994-2005 Universidade Estadual de Campinas / Assessoria de Imprensa
E-mail: imprensa@unicamp.br - Cidade Universitária "Zeferino Vaz" Barão Geraldo - Campinas - SP