Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 231 - 29 de setembro a 5 de outubro de 2003
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Artigo - O triunfo da pós
Desafio: informação nutricional
Agricultura familiar
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A hora de cada um
 

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A hora de cada um
Ramo da biologia estuda ritmo dos relógios internos que comandam as funções do corpo humano

MANUEL ALVES FILHO

O jogador Romário, do Fluminense, costuma chegar aos treinamentos muito depois dos seus companheiros de clube. O atleta, que tem dificuldade para acordar cedo, alega render muito mais física e intelectualmente no período da tarde. Mera idiossincrasia do craque? Segundo a Cronobiologia, ramo da Biologia que estuda a organização temporal da matéria viva, a justificativa do atacante não só pode ser verdadeira, como encontra amparo na ciência. O ser humano possui relógios internos que comandam as funções do corpo. Algumas pessoas, por exemplo, são do cronotipo matutino típico (aproximadamente 10% da população). Estas têm maior disposição e desempenham melhor suas atividades pela manhã. Outras, como pode ser o caso de Romário, são do cronotipo vespertino típico (outros 10%), ou seja, têm uma performance superior à tarde e início da noite. Respeitar os ponteiros dos relógios biológicos, conforme os especialistas, é uma medida fundamental para garantir uma vida mais saudável e produtiva, com menor desgaste.

Além dos dois cronotipos já citados, há ainda um terceiro, formado pelas pessoas que são indiferentes ao período do dia. Estas representam os outros 80% da população. De acordo com o professor Edson Delattre, do Departamento de Fisiologia e Biofísica do Instituto de Biologia (IB) da Unicamp, o estudo dos ritmos biológicos é relativamente recente no Brasil – cerca de 25 anos -, mas já tem oferecido contribuições importantes para diversas áreas. Os conhecimentos gerados pela Cronobiologia, afirma, têm aplicações em múltiplos setores, como o social, o econômico e, destacadamente, o da saúde.

Ao analisar os ciclos biológicos humanos, os cronobiologistas procuram identificar, entre outros aspectos, qual é o horário em que um fármaco deve ser administrado, para que tenha maior eficácia. Delattre lembra que o organismo sofre mudanças ao longo das 24 horas. Parâmetros biométricos (peso, altura, espessura de dobra de pele) e funcionais (pressão arterial, produção de hormônios, desempenho motor ou cognitivo, metabolismo e temperatura central, atividades renais, respiratórias e digestivas) variam no decorrer do dia. Até para nascer ou morrer existem horários preferenciais, o mesmo ocorrendo para surtos de asma, acidentes vasculares cerebrais (derrames), infartos etc. Essas mudanças constantes fazem com que o corpo reaja de forma diferente ao medicamento, dependendo da hora em que este é aplicado. “Há uma máxima interessante que diz que a diferença entre o remédio e o veneno está na dose. Para a Cronobiologia, essa diferença, além de estar na dose, também está no tempo, que pode ser entendido como a hora ou até a estação do ano”, diz o docente do IB.

O professor Edson Delattre, do Instituto de Biologia: “Não basta ter ritmos, tem que sincronizá-los”

Para compreender melhor esse conceito, tome-se uma experiência de laboratório feita com camundongos. Ao contrário do homem, esses animais têm hábitos noturnos. Os cientistas administraram a mesma dose de veneno (toxina de E. coli) a seis grupos de camundongos, em seis diferentes horas do dia. Enquanto às 16 horas morreram 85% dos animais, à meia-noite a mortalidade foi de apenas 13%. De acordo com Delattre, experimentos cronofarmacológicos têm servido para aprimorar o combate a vários tipos de câncer. Conhecendo o melhor momento para administrar as drogas anticancerígenas, os médicos podem reduzir as doses das mesmas, o que minimiza os seus efeitos colaterais, otimizando o tratamento. “Isso também tem uma implicação econômica, pois os custos caem à medida que os medicamentos são usados em menor proporção”, esclarece.

Os conhecimentos gerados pela Cronobiologia também podem ser aplicados no campo social. Como já foi dito, as pessoas apresentam maior ou menor disposição conforme o período do dia. Imagine-se, então, uma mulher do cronotipo matutino típico que se casa com um homem do cronotipo vespertino típico. Pela manhã, quando ela demonstra enorme vitalidade, ele está sonolento, um tanto apático. No final da tarde, quando ela está reduzindo o seu ritmo de atividade e apresenta certo cansaço, é ele quem está com a “pilha toda”. Eis uma situação no mínimo favorável para um conflito no relacionamento. “Se essas pessoas tiverem conhecimento prévio dos seus ciclos biológicos, porém, elas poderão definir estratégias que harmonizem a convivência familiar com as características individuais”, afirma Delattre.

No campo econômico, a Cronobiologia também encontra aplicação. O especialista do IB reforça que o homem é um ser tipicamente diurno. Entretanto, em razão das exigências da vida moderna, diversas atividades precisam ser executadas também durante a noite. Com isso, criou-se o trabalho em turnos, o que pode ser prejudicial a homens e mulheres. Vários estudos demonstram que o raciocínio, os reflexos e a acuidade visual e auditiva ficam prejudicados durante a madrugada. A produtividade, portanto, também é afetada de modo negativo. “O recomendável, nesse caso, é que as pessoas que trabalham no regime de turnos alternados tenham folgas mais prolongadas, para que não sofram tanto os efeitos do desrespeito aos seus relógios biológicos”, pondera Delattre.

Não é por acaso, conforme o cronobiologista, que alguns dos maiores acidentes industriais, creditados a falhas humanas, ocorreram de madrugada, justamente no horário em que o organismo apresenta baixo metabolismo e menores recursos para responder com rapidez aos estímulos. Entre estas catástrofes estão Three Miles Island, nos EUA; Bophal, na Índia; e Chernobyl, na ex-União Soviética.
Para quem pensa que o respeito aos relógios internos é algum preciosismo, Delattre lembra que os ritmos biológicos são geneticamente determinados. Não podem, portanto, ser alterados na sua essência, salvo após transplante experimental dos núcleos nervosos, executados em animais. “O que as pessoas fazem é adaptar (deslocar) parcialmente seus ritmos às suas necessidades profissionais e sociais.

Isso é possível, mas tem um alto preço: favorece o surgimento de doenças cardiovasculares, gastrintestinais, psiquiátricas e, no limite, pode até mesmo reduzir a expectativa de vida”, afirma. Mas é possível cumprir o caminho contrário, isto é, adaptar as atividades cotidianas ao nosso ciclo biológico? A resposta é sim, embora não seja uma medida muito simples e freqüente. Experiência nesse sentido foi conduzida por pesquisadores da USP.

Delattre esclarece que, assim que entra na adolescência, a garota ou o garoto enfrenta uma enxurrada de mudanças. Uma delas é denominada tecnicamente de “atraso de fase”. Simplificando, o jovem passa a dormir mais tarde e acordar mais tarde, conseqüentemente. Ao acompanhar os alunos do ensino fundamental da Escola de Aplicação da USP, como parte de sua tese, uma pesquisadora observou que justamente quando atingiam esse estágio da vida, os alunos eram transferidos, paradoxalmente, do período vespertino para o matutino. Resultado: acompanhavam as aulas sonolentos, bocejando, espreguiçando-se, prestavam menos atenção ao que estava sendo ensinado e, obviamente, tinham o desempenho prejudicado. “Com base nas conclusões da pesquisa, a direção da escola decidiu promover um remanejamento de horários, de modo a respeitar o relógio biológico dos estudantes”, conta o professor do IB.

 

Estudos tiveram início no século 18

Embora seja uma ciência relativamente recente, as primeiras observações ligadas à Cronobiologia surgiram no século 18, graças ao astrônomo francês J. J. De Mairan. Ao observar uma planta sensitiva, provavelmente a Mimosa pudica, que mantinha ao lado da luneta, na janela de sua casa, ele verificou que as folhas da planta se moviam, abrindo e fechando, de acordo com a posição do sol. O cientista percebeu, então, que aquele ser vivo mantinha relação com o ambiente geofísico. A partir daí, ele começou a formular algumas hipóteses e partiu para os experimentos.

Um deles consistiu em colocar o vaso da planta dentro de um baú, que foi armazenado no porão. Depois de algum tempo, De Mairan observou que a planta mantinha o ritmo biológico coincidindo com o ciclo dia/noite, a despeito da ausência de luz no baú. O astrônomo concluiu que a atividade de abrir e fechar as folhas era inerente à espécie e independente do ciclo de luz. Até então, acreditava-se que as alterações rítmicas eram resultado exclusivo das ações externas, como o dia, a noite, o frio e o calor. Um amigo botânico levou seus resultados à Academia Real de Ciências de Paris, em 1729, que o rejeitaram solenemente. Os membros da entidade acreditavam que pelo menos algum raio de luz, ou outra pista ambiental, chegara à planta. “Naquela época, e ainda hoje, era difícil aceitar o novo”, diz Delattre.

O professor do IB ressalva, entretanto, que o ser humano vive em um mundo real e não no meramente cronobiológico. “As pessoas sofrem outros tipos de influências, além da temporal. É claro que variação de pressão arterial ao longo do dia também tem a ver com estresse, atividade física, posição corporal no espaço etc. Para a Cronobiologia, essas outras variáveis são denominadas de ‘agentes mascaradores’”, explica. Delattre acrescenta, ainda, que embora os ritmos biológicos sejam inerentes a todas as espécies vivas, eles são sincronizados pela natureza. Os dias e as estações do ano têm grande relevância para o bom andamento das funções orgânicas e, por isso, precisam ser respeitados, como sincronizadores que são. Para os humanos, a convivência social é o outro poderoso agente sincronizador dos ritmos endógenos. “Parodiando aquela frase de um antigo comercial de televisão: não basta ter ritmos, tem que sincronizá-los”, enfatiza o cronobiologista.

 

 

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