Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 231 - 29 de setembro a 5 de outubro de 2003
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Artigo - O triunfo da pós
Desafio: informação nutricional
Agricultura familiar
Software: textos em braile
Pequenos movimentos
Linha Branca: setor em alta
Pós além dos 20 mil
`Banco de gelo´: economia
O prêmio de um romance
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Pesquisa aponta erros e desvios do financiamento da agricultura familiar
Dos R$ 4 bilhões liberados por ano, somente a metade chega aos agricultores

LUIZ SUGIMOTO

O agrônomo Gilson Bittencourt: decompondo números que eram públicos, mas ignorados por autoridades da área de agricultura

Em tese, o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) criado em 1995, no início do governo Fernando Henrique, deveria corrigir um erro histórico do Brasil, que poucos incentivos ofereceu aos agricultores familiares , embora estes formem mais de 80% das propriedades rurais. A agricultura familiar representa mais de 4 milhões de estabelecimentos (ou famílias) que produzem sobretudo itens destinados à cesta básica como arroz, feijão, milho, mandioca, leite e aves.

Entretanto, uma tese defendida na Unicamp demonstra que esta iniciativa inédita e originariamente nobre pode ir para a vala dos programas agrícolas cujos recursos se esvaíram no caminho até a população necessitada, como água que nunca chega ao sertão. Abrindo a Caixa Preta: O financiamento da agricultura familiar no Brasil é a dissertação de mestrado do agrônomo Gilson Alceu Bittencourt, apresentada em agosto no Instituto de Economia (IE), sob orientação do professor Antônio Márcio Buainain. E já está dando o que falar.

Entre as questões levantadas, as que se sobressaem são: em números redondos, por que o governo disponibiliza R$ 4 bilhões por ano ao Pronaf, mas somente R$ 2 bilhões são tomados pelos agricultores familiares?; por que os custos da intermediação bancária, especialmente dos bancos públicos federais, são tão elevados?. Representantes do Tribunal de Contas da União, por exemplo, já solicitaram ao pesquisador sua análise sobre o tema.

O envolvimento de Gilson Bittencourt com a terra vai bem além da agronomia. Com 36 anos de idade, ele traz na bagagem uma experiência de dez anos assessorando movimentos sociais rurais no Sul do país, tendo participado de várias negociações com o governo. De abril de 2001 a setembro de 2002, geriu os recursos do próprio Pronaf, enquanto secretário de Agricultura Familiar do Ministério do Desenvolvimento Agrário. Tendo conhecido os dois lados da moeda, o especialista volta nesta quarta-feira a Brasília, agora para assumir postos de intermediação, na Secretaria Executiva para a Área Rural do Ministério da Fazenda e no Conselho do Banco Popular do Brasil, um braço do Banco do Brasil voltado ao microcrédito. “O convite foi anterior à dissertação, mas vou trabalhar justamente na área de financiamento da agricultura familiar, mantendo relações com os bancos e o próprio governo para repensar toda essa lógica”, explica Bittencourt.

Dos R$ 4 bilhões anuais destinados ao crédito para agricultura familiar anunciados nos últimos anos, apenas 50% têm sido efetivamente aplicados. Entre os motivos apontados por Gilson Bittencourt, destacam-se a existência de poucos agentes financeiros que atuam com agricultores mais pobres, escassez de recursos para cobrir os custos dos financiamentos, a falta de garantias reais entre os agricultores familiares e o anúncio de recursos acima dos efetivamente disponíveis pelos três Fundos Constitucionais de Financiamento.

Dados públicos – Os dados necessários para qualquer uma destas análises, inclusive em relação aos elevados custos de intermediação são públicos. “Eles estão na Internet e no Diário Oficial. Tratei apenas de sistematizar as informações, aplicando as fórmulas para vincular os valores disponibilizados pelo governo e depois chegar aos gastos. Creio que ninguém, além do próprio Tesouro Nacional, tinha feito estas contas antes”, afirma o pesquisador.

Bittencourt começou analisando o crédito sob dois aspectos. Primeiramente, a relação entre governo e agricultores, que se dá por meio dos bancos. Ele explica que, como o Pronaf utiliza recursos públicos na quase totalidade de suas fontes (Fundo de Amparo ao Trabalhador - FAT, Orçamento Geral da União e de Fundos Constitucionais de Financiamento Regional), o dinheiro é necessariamente administrado por instituições financeiras federais. O Banco do Brasil assume a gerência de perto de 74% das verbas. “É praticamente um monopólio”, observa. O segundo aspecto é que o Pronaf vem firmando em torno 900 mil contratos por ano (atendendo cerca de 750 mil famílias), quando existem 4,2 milhões de famílias de pequenos agricultores. “Nem todos querem crédito, mas o atendimento ainda é muito menor do que a demanda”, ressalva.

Aplicadas as fórmulas, Bittencourt exibe os resultados. Todo dinheiro tem um custo e para dar sua parte o FAT – que responde por mais de 70% dos recursos do Pronaf – cobra uma taxa de juros que está em 12% ao ano (TJLP). Os agricultores, porém, recebem o empréstimo a juros de 4%. Quem banca a diferença de 8% é o governo. Além disso, em algumas linhas de financiamento destinados às famílias mais pobres, era concedido um desconto (subsídio) de R$ 200, caso pagassem as prestações em dia. O governo precisa pagar também este rebate”, soma Bittencourt.

Caixa preta – Mas é um terceiro aspecto analisado pelo pesquisador que abre a caixa preta: o ganho dos bancos para intermediar os recursos, denominado spread, que chega a 17% no caso dos segmentos mais pobres. Um ganho aviltante, considerando-se que o risco é mínimo: o índice de inadimplência no Pronaf é de menos de 1%, reafirmando a máxima de que “pobre paga suas dívidas”; o dinheiro captado é público; o governo garante a diferença dos juros e o rebate; a clientela é antiga e de confiança; e a média anual é de 900 mil contratos, que apesar dos valores pequenos garantem uma escala que atinge cifras compensadoras.

“O que se questiona é o spread tão alto apenas para pegar o dinheiro do governo e emprestá-lo a um agricultor que sabidamente cumpre com seus compromissos. Feitas as contas, para conceder um financiamento de R$ 1.200, o governo gasta mais R$ 473, somando a diferença da taxa de juros, o subsídio e um spread de 17% ao banco”, exemplifica Bittencourt.

No crédito de investimento (para construção de um estábulo, compra de uma ordenhadeira), é maior o prazo de pagamento, variando de 3 a 8 anos, e menor o spread cobrado pelo banco, entre 4% e 6,6% ao ano. No entanto, o prejuízo do governo aumenta: “Um agricultor que toma R$ 3.200 por 6 anos, terá um desconto de R$ 700 se pagar em dia. Somando o spread de 6,6% que vai se somando ano a ano, o Tesouro gastará no período mais R$ 2.100, ou 66% do valor que financiou”, exemplifica o agrônomo.

Soma geral – Sendo grave o quadro envolvendo os pobres que demandam apenas créditos de custeio (sementes, adubos, preparo do solo), Bittencourt, ao analisar o crédito rural no Brasil como um todo, constatou que a equação se repete para os médios e grandes produtores. No setor patronal, para emprestar R$ 42 mil, o governo gasta quase R$ 4 mil só para pagar o agente financeiro. O fato é que o Tesouro, ao pagar os bancos por operações destinadas aos grandes produtores, acaba subsidiando também o empréstimo do setor patronal”, observa. Feita a soma geral, o pesquisador apresenta os totais arredondados: “O governo gasta com equalização, somente no Pronaf, em torno de R$ 600 milhões por ano. Adicionando a equalização dos patronais, que chega a R$ 400 milhões, temos R$ 1 bilhão. Subtraindo os juros das fontes como o FAT e o desconto concedido para parte dos produtores, os bancos ficam com mais de 60% do total”, conclui.

 

Dentro do governo para combater as distorções

Gilson Bittencourt chega ao Ministério da Fazenda trazendo sua dissertação de mestrado com cerca de 20 propostas para embasar a discussão sobre uma revisão profunda do sistema de financiamento da agricultura familiar no Brasil. Em linhas gerais, ele vai propor a mudança na gestão das fontes dos recursos oficiais para o crédito rural, a ampliação do número de instituições financeiras atuantes, alterações nas condições de crédito, além de apresentar mecanismos para ampliar o acesso de agricultores.

As propostas são muito detalhadas. Para ficar apenas na questão dos agentes financeiros, Bittencourt defende a redução do spread para níveis razoáveis, de 3% a 6% ao ano, dependendo do público atingido e da modalidade de crédito ofertada. Sugere ainda o aumento do número de instituições e a realização de leilões públicos dos recursos e dos subsídios. “Hoje são os bancos que definem a região ou município onde empregar o dinheiro e com qual público irão operar. No leilão, o governo poderá determinar limites de taxa, públicos e regiões a serem contemplados, e quanto será cobrado do beneficiado”, simplifica.

Um exemplo de distorção é a grande concentração do crédito rural no Centro-Sul. “Em termos percentuais, o Nordeste recebe menos crédito quando comparado com a participação de sua produção agropecuária no total do Brasil. Em número de famílias, o Nordeste abriga 50% delas, produz 15% do valor da produção nacional e recebe apenas 6% do crédito rural. Equilibrar este quadro é uma decisão política”, afirma. Para disseminar o atendimento, Bittencourt propõe maior diversidade de agentes financeiros, como as cooperativas de crédito e agências locais de crédito.

Gilson Bittencourt espera que aA divulgação dos dados da dissertação promova uma cobrança dentro do próprio governo e uma pressão sobre os bancos. “Creio que a maior contribuição deste trabalho é levar as informações a público, pois nem os ministérios afins, como da Agricultura e do Desenvolvimento Agrário, participavam da gerência dos recursos destinados ao meio rural. Eles eram apenas informados sobre o valor da conta que seria debitada em seus orçamentos”, finaliza.

 

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