196 - ANO XVII - 28 de outubro a 3 de novembro de 2002
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Do cuco ao relógio atômico óptico

Oscilações da luz em átomos de cálcio permitem subdividir o segundo em medidas de até 17 algarismos

LUIZ SUGIMOTO

Relógio construído por  Harrison entre 1730 e 1735, no Museu Marítimo de LondresDe dentro do relógio saía o cuco, mas faz muito tempo. O passarinho que chamava a atenção para as horas virou apenas um personagem simpático da fascinante história dos relógios, história que vem do início das navegações, quando o pêndulo, de movimentos regulares em terra, ficava instável ao balanço do mar e deixava perdidos os aventureiros, sem que soubessem a quanto se encontravam do porto de partida.

"Longitude", aliás, é um livro sobre John Harrison, nascido em 1693 e falecido em 1776. Ele resolveu um dos principais problemas do século 18, construindo um relógio que permitiu a determinação precisa da longitude dos barcos, evitando muitos naufrágios. A latitude não preocupava, pois era obtida por meio das estrelas.

Se fosse a intenção, o professor Flávio Caldas da Cruz poderia assegurar a validade dessa entrevista abordando somente os fatos pitorescos por trás da evolução do relógio e descrevendo as faces do tempo. Mas, como integrante do Grupo de Lasers e Aplicações, do Departamento de Eletrônica Quântica do Instituto de Física Gleb Wataghin (IFGW) da Unicamp, Cruz está à frente de uma pesquisa que deixa o pêndulo, sem exageros, a séculos-luz de distância.

O objeto da pesquisa é um relógio óptico baseado em átomos de cálcio. Até o final do próximo ano ele deverá permitir medições que, para leigos (mesmo os afeitos aos milésimos de segundo), soam fantásticas: "Algo como 1 parte em 10 elevado a 17", diz Flávio Cruz, calculando esta potência para o leitor em 17 algarismos ou 100 quatrilhões de partes de segundo.

Os relógios ópticos terão forte impacto na área tecnológica. Dentre muitas, o professor cita três exemplos de aplicações: na navegação aérea e marítima, hoje dependente de sinais de satélites para determinar a posição de aeronaves e embarcações; nas telecomunicações ópticas, onde a taxa de transferência de dados é altíssima, exigindo equipamentos precisos para direciona-mento de fluxos e sincronização de redes; e no gerenciamento da energia elétrica, onde relógios atômicos já são utilizados para medir oscilações e detectar falhas na transmissão de uma estação a outra.

"Pode ser, também, que se mexa em teorias fundamentais da física. O relógio óptico permitiria, por exemplo, medir possíveis variações no que chamamos de constante de estrutura fina, que é uma combinação de outras constantes: a carga do elétron, a velocidade da luz e a constante de Planck. Sendo constantes, elas não poderiam variar. Mas existe a suspeita, surgida a partir de observação astronômica há dois anos, que essa constante de estrutura fina esteja variando com o tempo", diz o pesquisador.

Marcando o tempo - Uma melhor compreensão do funcionamento do relógio atômico óptico pede um histórico adicional. No início do século 20 surgiu o relógio de quartzo. Se, no cuco da parede, o objeto que oscilava em movimentos regulares era o pêndulo, o oscilador passou a ser o cristal de quartzo: submetido a uma voltagem (tensão), o cristal oscila com uma freqüência bem definida. Contando-se o número de oscilações, marca-se o tempo. Ainda assim, a medida continuou sendo astronômica, tanto que os observatórios respondiam pela medição oficial.

Na década de 1950 teve início o domínio do relógio atômico. Constatou-se que os átomos ou moléculas podem absorver luz ou outra radiação, e que essa radiação também é bastante regular, podendo-se usá-la para medir o tempo de forma muito mais precisa que o método astronômico. Mesmo porque já se sabia que a rotação da Terra não era tão estável, que havia certa desaceleração exigindo uma correção de um segundo de tempos em tempos.

Dentro deste relógio existe um átomo, excitado por um oscilador. Um mecanismo de correção faz com que a freqüência do oscilador esteja sempre em ressonância com a freqüência do átomo. Um dispositivo contador registra o número de oscilações, ou seja: um segundo é o período em que ocorrem tantas oscilações. Esta técnica evoluiu a ponto de mudar a definição do segundo, que se baseia hoje numa transição específica do átomo de césio. O oscilador, no caso, é uma fonte de microondas (eletrônica), e a transição do césio é imutável, igual em qualquer parte do planeta.

A grandeza da luz - A pesquisa desenvolvida pelo grupo de Flávio Cruz na Unicamp ainda utiliza átomos, mas não os de césio ou de rubídio (cujos relógios, embora caros, são difundidos até comercialmente). "Substituímos por átomos de cálcio, que estão absorvendo a luz. No caso do césio, a oscilação se dá em microondas (do tipo de antenas), que a gente não vê e cuja precisão é limitada. Na transição óptica, as oscilações, por se tratarem de luz, são muito mais rápidas, de centenas de trilhões por segundo. Conseguimos, então, subdividir o tempo em intervalos bem menores, garantindo maior precisão que a dos relógios atômicos atuais", explica o professor.

Não precisamos de tamanha precisão no nosso dia-a-dia, admite Flávio Cruz. "Mas importa bem menos o fato de se tratar de um relógio que marca o tempo, e muito mais o fato de possuir um oscilador extremamente estável que atende a muitas necessidades da física e engenharia. Mesmo baseado em um laser, um relógio atômico óptico fornece também sinais na faixa de microondas, mas com estabilidades mil vezes maiores do que a microonda gerada em um relógio de césio, por exemplo", observa. E acrescenta: "Aí está a grande vantagem: uma enorme economia do tempo necessário para atingir uma determinada precisão numa medida. Por exemplo, a variação da constante de estrutura fina poderia ser detectada em semanas ou dias com um relógio óptico, em vez de anos com o uso da tecnologia atual".

O relógio óptico em desenvolvimento na Unicamp, além de ser um padrão de tempo e freqüência, também será um padrão de comprimento para a medição de objetos ou distâncias. Há muito que se aboliu a régua de platina para reproduzir o "metro", as definições modernas utilizam lasers. Apenas dois outros grupos no mundo estão trabalhando com o relógio atômico óptico de cálcio: no NIST (National Institute of Standards and Technology), dos Estados Unidos, e no Instituto de Metrologia da Alemanha, ambos em cooperação estreita com os pesquisadores do IFGW.

A hora incerta

O professor Flávio Cruz, do IFGW, prevê que os relógios ópticos em desenvolvimento nos dois últimos anos, ao mesmo tempo em que permitirão a verificação de grandezas com uma precisão antes inimaginável, também significarão um intrigante problema. "Eles são tão precisos que vai ficar muito difícil sincronizar um com o outro. Uma diferença de 10 centímetros de altura causará diferença nas taxas", explica.

O pesquisador da Unicamp lembra a Teoria da Relatividade, de Einstein, que aponta dois aspectos que afetam a passagem do tempo: o movimento e a gravidade. Se um relógio se mover mais rápido que o outro, ou se estiver sob campo gravitacional maior, o tempo correrá mais devagar. "Existe uma diferença na passagem de tempo aqui na sala, onde estamos conversando, e em cima de um morro, por causa da variação de altitude", ilustra.

Não teríamos, então, um relógio que marque a hora certa?. "Um relógio para a finalidade que a grande maioria das pessoas precisa, sem dúvida que sim. Mas se o grau de exigência chegar à precisão dos relógios ópticos, vai ser complicado definir a hora correta", responde Flávio Cruz, ressalvando que está se falando no nível do fantástico.