Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 238 - de 17 a 30 de novembro de 2003
Leia nessa edição
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Diário de Lisboa
Radiografia: C&T no Brasil
Água: fungos e bactérias
Estudo: efeitos contra gotas
Mais velho e mais urbano
Demógrafos: o fio da navalha
Capacitação de professores
Comunicações opticas
Brasil: capitalismo tardio
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Oportunidades
Teses da semana
Vaca mecânica: 2° geração
Genômica: mapeando células
 

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Deus e o diabo na terra
do capitalismo tardio
Como se fosse filme, pesquisadora conta porque
o Brasil brilha pouco no cenário capitalista mundial

LUIZ SUGIMOTO

Brasil montou o parque industrial mais integrado da América Latina, mas não conquistou melhor inserção na estrutura capitalista mundial, como fizeram outros países de capitalismo tardio, caso da Coréia do Sul. Por que? Angelita Matos Souza, cientista social e cinéfila, apresenta respostas em sua tese de doutorado em Economia Aplicada, sob o sugestivo título de Deus e o diabo na terra do sol (leitura política de um capitalismo tardio). A paixão pelo cinema levou a autora a atenuar o tom obrigatoriamente acadêmico também no decorrer dos capítulos, relacionando episódios do processo de desenvolvimento do país com filmes de sucesso, como será visto a seguir.
Para compreender porque o processo de industrialização brasileiro não tirou o país da lista das nações periféricas e dependentes, Angelita Souza voltou a fita até o início do processo de industrialização com Getúlio Vargas, nos anos 1930, revendo-a até a parte protagonizada pelos presidentes militares, com ênfase no governo Geisel. Em foco, o Estado e seu papel no sonho da modernização, completando-se o tripé com o capital nacional e o capital estrangeiro. “O Estado brasileiro foi ao mesmo tempo deus e diabo. Deus, porque sempre foi visto como onipotente, dotado de força transformadora, capaz de induzir e conduzir o processo de desenvolvimento. Diabo, porque sua presença acentuada na economia bloqueou a formação de uma burguesia empreendedora, dando lugar a um empresariado avesso ao risco e dependente dos governos”, afirma.
Angelita Souza observa que esse Estado forte, contraditoriamente, mostrou-se fraco no enfrentamento dos interesses das forças economicamente dominantes (atrasadas ou modernas), sendo incapaz de cobrar resultados e impor perdas ao grande capital privado, nacional ou estrangeiro. “O caráter conservador da transição, optando-se sempre pelos caminhos de menor resistência, levou ao desperdício de oportunidades para a efetivação de reformas necessárias à democratização do capitalismo brasileiro, condição básica para o progresso social”, critica.

A cientista social Angelita Matos Souza: “No Brasil, não vemos a fusão do capital financeiro com o capital produtivo”

Esse obscuro
objeto do desejo

A pesquisadora vê o Estado capitalista como um obscuro objeto do desejo. Segundo ela, as análises sobre o Estado no capitalismo ainda são obscuras, não resultando em consenso dentro das ciências sociais, sobretudo em se tratando do capitalismo tardio. “Este capítulo traz também uma reflexão sobre a globalização e o futuro dos Estados nacionais. Minha tese é de que estes continuam sendo muito importantes. É difícil imaginar uma estrutura capitalista mundial sem Estados nacionais como centros decisórios”, opina.

Sem destino
Neste capítulo em que avalia o papel do Estado nos processos de industrialização latino-americanos, Angelita Souza detecta como principal deficiência no capitalismo do continente a não conformação de um capital nacional capaz ou disposto a financiar o desenvolvimento interno. “No Brasil, não se viu a fusão do capital financeiro com o capital produtivo, que no primeiro mundo permitiu formar as grandes corporações”, observa a pesquisadora.
Tomando a era Vagas, o governo JK e o governo Geisel como três momentos privilegiados da história econômica brasileira, a autora procura identificar os limites políticos (conferidos pela luta política no interior da formação social do país) com o processo de industrialização nacional. Ela se atém especialmente nos entraves políticos para a concretização do sonho de “Brasil-potência” idealizado pelos governos militares, fundamentalmente pelo governo Geisel.

Os melhores anos de nossas vidas
Dos anos 1930 até a década de 1970, o Brasil cresceu de forma extraordinária, mas perdeu uma oportunidade histórica de desenvolver um capitalismo voltado para o fortalecimento da estrutura produtiva nacional, articulado ao capital estrangeiro de forma realmente associada. Angelita Souza recorda que, no pós-guerra, a conjuntura externa era altamente favorável, em função da concorrência intercapitalista, com europeus e asiáticos tentando ganhar mercado na periferia dominada pelos Estados Unidos. “Podíamos ter jogado melhor e perdemos”, lamenta.
Juscelino Kubitschek até que se esforçou em campo. Sem recursos internos para seu projeto de progresso acelerado, ele atraiu primeiramente empresas européias, obrigando os norte-americanos a também virem, e instalou uma indústria de bens duráveis sem endividamento externo. Mas JK sustentou seu projeto com emissão de moeda, o que levou ao descontrole total da economia mais à frente, vitimando João Goulart.

Áta-me
Os militares saíram da caserna para acabar com os movimentos populares e também para resolver a pendenga em torno do modelo de desenvolvimento, em favor do grande capital monopolista, nacional e transnacional. Roberto Campos e Octávio Bulhões, ministros do primeiro governo militar, instituíram os mecanismos de articulação dependente com o mercado internacional. Em seguida, Delfim Netto, identificando na fraqueza do sistema financeiro nacional o maior problema do processo de industrialização, incentivou o fortalecimento e centralização do capital bancário. “O sistema bancário cresceu e floresceu graças a esta política de apoio, mas sobretudo com a intermediação da entrada de recursos externos”, diz Angelita Souza.

O governo Geisel compõe a tese central do estudo, por representar um divisor de águas na história do capitalismo brasileiro. Naquele momento, nossa economia foi definitivamente atrelada ao mercado financeiro internacional, tendo como contra-face interna a especulação financeira. Era muito atrativa a abundância de dinheiro no mercado, a juros baixíssimos, e o Brasil viu-se atado por uma costura feita aqui dentro, combinando os interesses dos bancos, que lucravam com a intermediação, e dos empresários produtivos, que precisavam de capital de giro.

“A ‘ciranda financeira’ abriria caminho para a implosão do famoso tripé da economia brasileira desde o governo JK – empresas estatais, capital estrangeiro e capital nacional –, com posterior desmonte da ‘pata forte’ do tripé, as estatais, e a redução ainda maior do espaço econômico para a ‘pata fraca’, o capital nacional. Ironicamente, era o capital nacional que o governo Geisel, com o II PND, propunha fortalecer”, aponta a professora.

A regra do jogo
O que aconteceu depois, em 1979, é que os EUA dobraram a taxa de juros interna e o dólar foi supervalorizado, levando à bancarrota os países que pagavam seus compromissos externos nesta moeda. Especialistas alertaram exaustivamente os condutores da política econômica de que qualquer inversão dos rumos da política mundial levaria à quebra da periferia capitalista. A inversão aconteceu e a década de 1980 foi perdida.

Geisel, tido como o presidente de “melhor índole” entre os generais, abriria mão do discurso nacionalista, sem poder conter a articulação dos que lucravam com o endividamento. “Não discuto se ele tinha ou não boa vontade. O fato é que não havia como mudar a regra do jogo. O II PND, que vislumbrara o sonho de ‘Brasil-potência’, não deu certo porque o jogo era ditado por esta articulação entre capital bancário nacional e internacional”, afirma.

Os deuses vencidos
Para Angelita Souza, razões políticas levaram o governo Geisel a apostar numa política desenvolvimentista: queria manter o crescimento elevado, a fim de não perder as eleições e evitar que os militares saíssem como fracassados. Porém, o primeiro setor a abandonar o barco foi o empresariado produtivo nacional, contrariado com os rumos assumidos pela política econômica de incentivo ao endividamento externo que, entre outras coisas, obrigava à importação de equipamentos, em prejuízo da nossa indústria.

A iniciativa privada, cujo lucro e evolução foram sustentados com recursos públicos, começou a criticar duramente o regime militar, aderindo a campanhas antiestatização e pela redemocratização. “A partir daí, assistimos à falência do Estado desenvolvimentista. Deus deixou de existir. Não apenas no Brasil, mas nos países latino-americanos em geral, os deuses acabaram vencidos pelos rumos da economia internacional”, avalia a pesquisadora.

A comilança
“No grande banquete, as forças dominantes comeram até a morte do cozinheiro”, ironiza Angelita Souza. Em A Comilança, último capítulo da tese, a professora faz um paralelo entre o governo Geisel e o governo Lula, verificando que as propostas são as mesmas: fortalecimento da estrutura produtiva nacional, incentivo à exportação, combate às desigualdades sociais e regionais. “Ocorre que a situação externa, hoje, é enormemente mais desfavorável do que nos ‘melhores anos’. Se naquele bom momento não foi possível, seria agora? Lula aposta em sua figura para garantir apoio político, mas o carisma, sem ações que agraciem as massas com ganhos materiais, dissolve-se rapidamente”, alerta. Se não houver pulso na direção do capítulo que começa, a professora antevê um título: “Amargo regresso”.

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Tese: Deus e o diabo na terra do sol (leitura política de um capitalismo tardio)
Bolsista: Angelita Matos Souza
Unidade : Instituto de Economia
Orientador: José Ricardo Barbosa Gonçalves (IE/Unicamp)
Agência: Fecamp (financiamento inicial do projeto)

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