Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 238 - de 17 a 30 de novembro de 2003
Leia nessa edição
Capa
Diário de Lisboa
Radiografia: C&T no Brasil
Água: fungos e bactérias
Estudo: efeitos contra gotas
Mais velho e mais urbano
Demógrafos: o fio da navalha
Capacitação de professores
Comunicações opticas
Brasil: capitalismo tardio
Unicamp na Imprensa
Painel da semana
Oportunidades
Teses da semana
Vaca mecânica: 2° geração
Genômica: mapeando células
 

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‘Os demógrafos caminham
sobre o fio da navalha’

ÁLVARO KASSAB

Longe de ser um universo à parte, o mundo rural é
hoje cruzado pelos embates da sociedade brasileira contemporânea

JU – O envelhecimento da população brasileira impõe novos desafios. Quais seriam os mais relevantes?

Elza Berquó – Em primeiro lugar, o envelhecimento é mais feminino. Porque são as mulheres que vivem mais e, em geral, não estão na companhia de um marido ou companheiro nessa fase mais adiantada da vida. Acredito que é preciso levar em conta que o envelhecimento não tem conotações e conseqüências iguais para homens e mulheres. As mulheres devem ser levadas em conta inclusive em políticas públicas, porque elas vão viver durante muitos e muitos anos. A diferença da expectativa de vida hoje em dia é de sete anos.

Os homens, como reciclam as suas mulheres, estão na maioria das vezes na companhia de mulheres, quando chegam à velhice; e essas companheiras são mais jovens do que eles. Os homens, portanto, terão, na velhice mais avançada, quem cuide deles, ao contrário das mulheres.
Acho que esse é um elemento importante na visão do envelhecimento. Quando falo em políticas públicas, não estou me referindo apenas à saúde. Falo também na questão da habitação, do aumento da renda, enfim, políticas sociais que levem em conta que há uma vulnerabilidade própria da mulher ao envelhecer.

José Marcos Pinto da Cunha – São vários desafios, mas antes gostaria de dar uma relativizada quando o demógrafo fala em processo de envelhecimento. Isso não quer dizer que o Brasil está ficando velho, mas sim que o país está deixando de ser uma população de muitos jovens. Nossa pirâmide está numa tendência de reduzir sua base, formada por crianças e jovens até 14 anos, que está perdendo peso. Com isso, o grupo mais velho ganha peso relativo. Na verdade, a população está deixando de ser menos jovem. Mas, hoje, a maioria da população brasileira está na faixa de adultos jovens.

De qualquer forma, a população idosa no Brasil é a que mais cresce. Sua taxa de crescimento está em cerca de 6% a 7% ao ano, enquanto a população total cresce a 1,6%. Acho que a questão do envelhecimento por si só deveria ser colocada sempre. A atenção ao idoso não deveria ser uma preocupação apenas porque a população agora está envelhecendo.

Por outro lado, o aumento da longevidade e a redução da população mais jovem acabam gerando um conjunto de desafios. Nós estamos com aquilo que os demógrafos chamam de janela de oportunidades. Uma delas é que se pode começar a pensar com mais força na questão do idoso. Os desafios serão, sobretudo, em termos de médio e longo prazos. No longo prazo, a questão é reduzir muito a relação entre a população ativa e inativa, que é o que acontece hoje nos países europeus. Eles estão enfrentando um problema sério. A Espanha e a Itália, por exemplo, estão com a pirâmide praticamente invertida. Isso tem implicações seriíssimas no mercado de trabalho. A relação de dependência econômica está tomando números complicados, o que já implica a crise da previdência, como se discute, por exemplo, na França.

O país envelhecendo no longo prazo significa que vamos ter problemas graves, como a Previdência, a questão do mercado de trabalho e uma terceira questão, que considero a mais importante, que é a atenção à saúde do idoso, que é muito mais complexa e muito mais cara. É muito mais difícil você trabalhar com a saúde do idoso do que você controlar uma doença infecciosa. Isso vai exigir um grau de investimento muito mais forte, e não sei se o Brasil está preparado.
Sem contar os desafios sociais. Não sei se o Brasil está preparado para acolher o idoso da maneira que precisa ser acolhida. Não só em termos da aposentadoria, mas também no que diz respeito a espaços possíveis para que ele continue se integrando, inclusive no mercado de trabalho.

Há, sim, desafios, mas não mais importantes daqueles que tínhamos no passado. Os focos é que são diferentes. Nossas preocupações de hoje não serão a do futuro. Espera-se, por exemplo, que, em 2025, a população idosa vá responder por 15% da população brasileira, que deverá ser de 250 milhões. Trata-se de um número importante.

Devemos ficar atentos para as experiências dos países europeus, que estão entrando em crise. Hoje, eles precisam fazer o que Elza Berquó chama de “transfusão demográfica”, por conta do déficit de mão-de-obra. Eles estão desesperados, já que as mulheres não querem mais ter filhos. Isso significa que a base da pirâmide deixa de ser preenchida.

JU – Nos anos 70, o êxodo rural ganhou destaque e, hoje, o tema está na berlinda com novos contornos.A dicotomia urbano/rural passou a ser objeto de estudo em diversas áreas. Dá para dimensionar a importância do tema, dizer quais são as novas características das relações entre o urbano e o rural e no que elas colaboram para o desenvolvimento do país?

Elza Berquó – Sinceramente, acredito que houve uma melhoria das condições de vida da população idosa que vive na área rural. Hoje em dia eles têm um salário, que serve de elemento inclusive para nuclear a família em torno dessa pessoa idosa que tem esse salário todo mês. Este é um elemento que faz com que você mantenha na área rural uma população também envelhecida.
Agora, quando a gente pensa na questão da fecundidade, temos uma fecundidade bastante diferencial na área rural. Está diminuindo, mas ainda é elevada. Essa também é uma questão que não se pode deixar de levar em conta. Não há dúvida de que esse movimento campo-cidade foi se acentuando com a falta de opções. Entretanto, acredito que, com a produção familiar, com o agronegócio, o rural continuará tendo o seu papel e merece realmente a atenção do governo.
Por outro lado, o rural que se tem hoje não é a mesma coisa do rural de antigamente. São muitas as atividades que acontecem no rural, mas que não são rurais. Até para efeitos comparativos, é preciso interpretar o significado desse corte, que vem mudando.

José Eli da Veiga – A primeira coisa que a gente precisa discutir é a própria expressão êxodo rural. Na verdade, o que houve nos anos 70 foi um êxodo agrícola. Muita gente saiu da agricultura e, portanto, migrou. Mas é discutível a maneira como se entende a migração rural urbana, porque no Brasil existe uma maneira de classificar o que é rural e urbano que é a única no mundo e é absurda.
Por exemplo: a migração para regiões metropolitanas ou até para aglomerações não-metropolitanas, ou para centros urbanos (como é o caso de Piracicaba, que é uma cidade que se urbanizou sozinha e está cercada de rural), pode ser vista como êxodo rural. Agora, se contabilizou muito também quem, por exemplo, saiu do sítio e foi morar na sede de um município com 10 mil habitantes. Isso foi contado como êxodo rural. Isso simplesmente é um despautério. Essa é a questão central. Portanto, não se trata tanto de se discutir as relações urbano-rural de outra forma.
Significa, sobretudo, esclarecer a população brasileira, particularmente o pessoal mais informado, de que há uma deformação na maneira como se contabiliza o urbano e o rural no Brasil. Não vejo como você pode planificar o desenvolvimento tendo uma idéia falsa sobre o país.

A maneira de se calcular o grau de urbanização originou-se numa norma legal de um decreto lei de Getúlio Vargas, de 1938. Ele já era obsoleto quando foi criado. Só que o equívoco, na época, era compreensível. Por quê? No Brasil, até a república, tinha uma regra muito clara do que era a cidade, do era a vila, etc. Era uma regra semelhante à de Portugal, por causa do império. Com a república, houve uma espécie de liberdade. Cada estado começou a ter uma regra, começou a ficar meio confuso.

Nada melhor para pôr essas coisas em ordem do que uma boa ditadura... Não tem discussão, o sujeito baixa um decreto-lei, define, pronto e acabou. Na ocasião, era necessária uma regra geral para o país todo, até porque, inclusive, havia sido na época criado o IBGE. O censo demográfico de 1940 estava para ser feito; ou se tinha uma coisa bem clara ou ia dar confusão. Dá até para entender.
Por que a regra foi tão simplista? Eles imaginaram que, em todos os municípios que existiam na época, as sedes seriam cidades. É um equívoco natural. Agora, depois disso, em 1950, em 1960, esse negócio começou a ficar absurdo. E, mais recentemente, ficou mais ainda com a criação de um número imenso de municípios – o Brasil tem 5.562. Se você considerar que a sede de todos esses municípios são cidades, e que as sedes dos distritos desses municípios são vilas, é uma negócio completamente maluco.

Acho então que essa é uma questão central. Não vejo como nós podemos planejar o desenvolvimento e, sobretudo, formular boas políticas públicas, em geral, com uma visão tão deformada do Brasil. O que mais se repete, quase todo o dia ouço alguém falar ou escrever isso, é que o Brasil seria 82% urbano. Esse cálculo é maluco.

José Marcos Pinto da Cunha – Há quase um consenso de que a dicotomia urbano/rural tenha se esgotado. Ela não dá mais conta de você captar todas as especificidades em termos de assentamentos humanos. No caso do Brasil, é muito difícil você falar num único urbano e num único rural. Se for pensar do ponto de vista de forma de reprodução social, a gente sabe que são diferentes nesses contextos, seja lá como chamemos – de urbano, rural, semi-urbano, suburbano, rural de extensão, etc.

Sabemos que há significativas diferenças e nesse sentido é importante que a gente discuta os assentamentos humanos até para pensar em políticas de desenvolvimento e em ações de políticas públicas, sem desprezar as vocações regionais. Pensar e discutir isso vai muito além do que uma simples discussão acadêmica. Dentro desse contínuo entre o rural e o urbano, existem várias situações.
Mesmo para categorias parecidas, encontraremos uma diversidade enorme. O urbano rural paulista certamente é muito diferente do rural do Mato Grosso ou da Amazônia. O importante é entender um pouco melhor o que a dicotomia não ajuda a perceber, sobretudo porque vemos esses dois espaços se inter-relacionando e, digamos, entrando um no outro.

Há trabalhos, por exemplo, que mostram que atividades não-agrícolas estão sendo desenvolvidas no rural, porque novas preferências vão surgindo. Os urbanitas começam a buscar as zonas rurais para morar. Observamos o mesmo fenômeno do ponto de vista do rural. As condições para a agricultura familiar do pequeno proprietário não são nada satisfatórias para poder dar condições para a pessoa permanecer lá.

Acabamos encontrando então um movimento pendular, de pessoas que têm a terra, mas que precisam ficar na cidade uma parte do tempo para poder conseguir algum tipo de subsistência. Essas duas realidades estão cada vez mais interligadas. Acho que isso abre espaço para muitas discussões. Esse foi inclusive um dos objetivos do seminário [Transdisciplinar – Espaço e População].

Há uma nova configuração espacial no Brasil. O rural hoje está sendo invadido por urbanitas. Entretanto, há uma discussão que é de caráter mais estatístico-administrativo que é o fato de todo município, toda unidade administrativa precisar ter uma população urbana, por menor que seja. Alguns defendem que as configurações precisam ser redefinidas, até porque acreditam que há uma sobreaglomeração do urbano no Brasil.

Concordo em certo sentido com essa visão, mas também há que se pensar que, para definir o urbano/rural, não basta pensar apenas em critérios estatísticos, de volumes ou de densidade. Há que se pensar também em funções. Acho que num lugar longínquo da Amazônia pode haver centros urbanos pequenos, mas que de fato exercem funções urbanas.

No Brasil, a classificação estatística do urbano/rural é administrativa. É o prefeito que determina qual o perímetro urbano. Você tem cidades que não mudam seu perímetro urbano durante anos. Isso pode gerar falácias estatísticas. Você pode achar que está crescendo o rural, mas é simplesmente uma expansão urbana. Isso acontece muito claramente no estado de São Paulo, nas regiões metropolitanas de Campinas e São Paulo, por exemplo. O rural cresce nessas regiões, mas é um rural falso. Trata-se de uma expansão urbana – e, por algum motivo, essa área não foi reclassificada.

Essa informação pode ser falaciosa e pode levar a conclusões errôneas. Da mesma forma, pode levar a equívocos o fato de se pensar soluções únicas para um rural que é essencialmente heterogêneo. Estou convencido que a agricultura familiar é uma saída importante para milhões de brasileiros. É a forma como eles podem se manter.
A gente vê que a agricultura familiar está cada dia mais se esvaindo, diminuindo. O Mato Grosso, que é uma área que foi colonizada nesses termos, hoje é uma das regiões que menos têm agricultura familiar no Brasil. As implicações são claras em virtude do volume migratório, que chamo de sustentabilidade demográfica. No MT, o poder de incorporação das pessoas que vêm do rural é muita pequena. A atividade agrária exige cada vez mais espaço.

A concentração da terra no Brasil também é algo impressionante. Acho que são elementos que, quando enfocada a questão do rural e do urbano, mostram o quanto é importante pensar em estratégias de desenvolvimento e de inclusão. É preciso que seja mais bem definido do ponto de vista demográfico o tamanho do problema. A compreensão precisa ser clara e fidedigna. Acho que o IBGE avançou nos últimos censos ao desagregar um pouco melhor a questão do rural. Há uma categoria, por exemplo, que se chama “rural de expansão urbana”. É claramente uma ocupação de tipo urbana. Trata-se de uma discussão ampla e que permite várias leituras. Está em pauta não só no Brasil, como também na comunidade acadêmica internacional.

Nazareth Wanderley – O ponto de partida parece evidente: a referência ao mundo rural é pertinente para a apreensão das dimensões significativas da sociedade brasileira na medida em que ele é percebido em suas particularidades e através de diversos laços de integração com a sociedade desenvolvida.

Questões centrais em debate hoje na sociedade brasileira, tais como a pobreza, a cidadania, os direitos, a segurança alimentar, a propriedade, as novas faces do trabalho, perpassam de alguma forma o mundo rural. Longe de ser um universo à parte, o mundo rural é hoje cruzado pelos embates da sociedade brasileira contemporânea e constantemente atualizado a partir da presença de redes, de movimentos e organizações sociais, locais, nacionais e internacionais, que estimulam a circulação em mão dupla dos temas globais ao plano local.

Defendo, e não estou sozinha nessa posição, que o mundo rural é uma qualidade para a sociedade. Desenvolver o rural é a preservação dessa qualidade. Esse debate não está apenas no Brasil, é fortíssimo no mundo todo. No Brasil, aliás, é uma discussão bem diluída. Justamente porque há uma visão do meio rural como um espaço da grande máquina, dos 100 milhões de toneladas. Em grandes extensões, você só vê o dono das máquinas é o veterinário. Não tem gente naquele lugar, então não tem problema ambiental, não tem problema social, não tem problema da terra. É uma falsa imagem.

JU – Ao contrário do verificado no Brasil, a demografia ocupa um papel central nos países desenvolvidos. Por que isso não ocorre no país e em que áreas os estudos demográficos poderiam servir – ou servem – de ferramenta no que diz respeito às políticas públicas?

Elza Berquó – Depois da Conferência do Cairo, que aconteceu em 1994, o governo FHC criou a Comissão Nacional de População e Desenvolvimento, que hoje em dia é um órgão colegiado do Ministério do Planejamento. É formada por dez integrantes de ministérios e por oito membros da sociedade civil. Qual é a finalidade dessa comissão, que presido há nove anos? É exatamente ser um elemento para trazer ou levar, para os ministérios, através do debate e do levantamento de questões e metas, a importância que representa o binômio população e desenvolvimento na formulação, no monitoramento e na avaliação de políticas públicas.

Isso existe no Brasil. Essa comissão é também um órgão importante na relação do Itamaraty com os outros países. Quando chega uma solicitação das Nações Unidas, essa comissão é ouvida, esses 18 membros opinam, e o Itamaraty dá o encaminhamento de acordo com essas opiniões. Por outro lado, o desenvolvimento da demografia no Brasil é muito mais recente do que a registrada em outros países.
Nos Estados Unidos, por exemplo, a demografia no século 20 se desenvolveu muito, mas atrelada aos recursos que foram colocados nas melhores universidades americanas, que por sua vez, promoveram estudos nos países em desenvolvimento. O objetivo era o controle da natalidade. Esse papel foi muito criticado na América Latina, inclusive temos trabalhos sobre isso. Essas coisas macularam um pouco a imagem da demografia.

O demógrafo caminha sobre o fio da navalha, já que todos os conhecimentos, decisões e atividades são políticos. Tudo tem conseqüências políticas. Além disso, a demografia tem uma herança perversa. Por quê? Sua herança é puritana, controlista e eugênica. Levou muito tempo para que se pudesse dar a volta por cima. Demorou, como costumo dizer, para que deixasse cair os véus e para que realmente a parte importante da demografia viesse à tona e pudesse ser utilizada da melhor maneira possível.

Os programas de pós-graduação são recentes. Tivemos no Brasil um período de silêncio de informação demográfica, que foi de 1960 a 1980. Quando o governo militar assumiu, esse censo de 1960 só foi divulgado em 1978 e, assim mesmo, incompleto, como o é até hoje. Ficamos quase 20 anos sem informações sobre a situação do Brasil. Isso fez com quem trabalhava nessa área ficasse sem matéria-prima para fazer estudos e análises.

O caso da população negra no Brasil é emblemático. O censo de 1970 foi realizado, mas também só foi publicado lá para frente. O governo militar eliminou a informação sobre cor, sob a alegação de que isso era preconceituoso. Nós ficamos 20 anos sem informação sobre a população negra no Brasil. Fomos dar conta, em 1980, que 45% da população do Brasil era autodeclarada negra. Portanto, ela tem um poder de luta política que nem ela sabia que tinha. Isso veio de análise demográfica.
O reconhecimento foi tardio porque a disciplina só se desenvolveu no Brasil muito mais tarde. Tudo foi desmantelado na ditadura militar. O surgimento do Nepo, que tenho a honra de ter criado, ocorreu em 1982. A Unicamp abrigou-o depois de a USP ter perdido a oportunidade de ter um curso de pós-graduação em demografia. E continua até hoje sem ter o curso.

Os centros de demografia foram criados nesses períodos. O Cedeplar (Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional/UFMG) surgiu um pouco antes. Um outro fato que acho diferente é que cada grupo que se forma tem a marca do grupo que o criou. No Cedeplar, o foco sempre foi a economia. O nosso grupo do Nepo tem um peso grande na área de matemática, estatística e sociologia. E a Ence (Escola Nacional de Ciências Estatísticas/RJ), que é uma pós-graduação ligada ao IBGE, e é de um certa forma uma escola de governo, nasceu com essa vocação. Acho superinteressante que nós tenhamos essa diversidade. Acho que há mercado para demógrafos, tanto que a procura é grande para a pós-graduação.

José Eli da Veiga – A pergunta está totalmente certa. Quando a gente vê o grau de detalhes que os estudos demográficos têm por exemplo na França, na Inglaterra e nos Estados Unidos, é de impressionar como se despreza o assunto aqui. Nós temos bons demógrafos e bons bancos de dados. No caso do Estado de São Paulo, por exemplo, é impressionante o que se tem de dados bons, precisos e completos.
A demografia poderia servir de ferramenta, sim. Vou dar um exemplo bem claro. Hoje existe uma grande discussão no país sobre se faz sentido que esses municípios pequenos tenham câmaras municipais, que ficam hoje com 6% do orçamento do município. De tudo que o governo federal transfere para os municípios – 6% vai para a câmara. Tem gente que diz que esse é um dos principais mecanismos de concentração de renda no Brasil. Tem um monte de gente que vive nesses municípios, que fica escandalizada com os salários dos vereadores, e assim por diante.

No fundo, trata-se da grande questão da relação dos três níveis da Federação. Como a Constituição não foi regulamentada e o Brasil é sui generis nesse sentido, de ter uma federação tripartite, há todo um leque de discussões sobre como é que se dá a relação entre municípios, estado e governo federal. Trata-se de uma questão muito complicada. Os municípios vivem normalmente de transferências através dos fundos de participação, do Fundef, e de outros mecanismos.

Muitos desses municípios, e aí não importa se eles foram criados recentemente ou não, estão perdendo população. É discutível que eles devam continuar existindo. Deveria ter alguma fórmula que permitisse a fusão de municípios, por exemplo. Toda a discussão sobre federalismo implica um bom conhecimento das migrações, etc, até para que se possa formular alguma regra em relação a isso.

Estive recentemente no México, por exemplo, e a maneira como eles lidam com essas estatísticas demográficas é muito diferente. Especialistas fizeram um cálculo que, por exemplo, não existe no Brasil. Calcularam todas as transferências de recursos destinados ao rural. Depois, fizeram um cálculo inteligente da população rural, baseado em critérios modernos. A partir daí, foi feita uma comparação para ver se era equivalente o conjunto que as políticas governamentais transferiam para o México rural e qual era o peso demográfico do México rural. No Brasil, não dá para fazer isso. Nem sequer sabemos o que é rural ou não.

José Marcos Pinto da Cunha – De fato, é essa a leitura. A demografia em outros países tem um papel importante, até porque muita gente sabe o que significa o ser demógrafo. Nos Estados Unidos, a quantidade de universidades que têm curso de demografia é impressionante. No Brasil, temos apenas três grupos de programas de demografia, que sempre foi um recorte de pós-graduação, já que não é uma disciplina de graduação em nenhum lugar do mundo.

Nos últimos cinco anos, entretanto, a demografia tem ganhado um peso importante. Sinto que tem sido reconhecida como uma disciplina importante, tanto que projetos de EIA-Rima têm explicitadas as participações dos demógrafos. Esse crescimento é uma coisa de retroalimentação. A comunidade demógrafa foi crescendo, e a possibilidade e a capacidade de trabalho também.

Como o demógrafo trabalha com um objeto que é nitidamente social, sua capacidade de agregar várias disciplinas é grande. Então são médicos-demógrafos, economistas-demógrafos, sociólogos-demógrafos, e assim por diante. Existe uma preocupação de entender os fenômenos e de devolver à academia e ao poder público suas interpretações. Estamos crescendo muito nesse sentido.

Sinto que os planejadores, em particular a administração pública, vêem que o demógrafo trabalha de uma forma que eles precisam. Quando se fala em população, em crescimento demográfico, estamos falando de demandas. Sou otimista com relação ao futuro da demografia. Por outro lado, o demógrafo ainda está acomodado na coisa pública. São poucos os casos de profissionais atuando na área privada. Isso preocupa um pouco porque diminui o campo de atuação.

A função do demógrafo vai muito mais além do que falar qual é a população brasileira. Isso precisa ser entendido. A demografia avançou muito em várias áreas, dialoga com a antropologia, a medicina, a economia, etc. Sua abrangência está crescendo.

Nazareth Wanderley – Não me parece evidente que os estudos demográficos no Brasil sejam tão relegados. Tenho impressão que há um crescente interesse pelos estudos populacionais.

Elza Berquó


A demógrafa Elza Berquó é fundadora do Núcleo de Estudos da População (Nepo) da Unicamp, onde coordena o Programa de Saúde Reprodutiva e Sexualidade. Coordena a Área de População e Sociedade do Cebrap e é presidente da Comissão Nacional de População e Desenvolvimento (CNPD).
José E. da Veiga


José Eli da Veiga é professor titular da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (FEA/USP). É autor dos livros Cidades Imaginárias ( Editora Autores Associados, 2002) e A Face Rural do Desenvolvimento (Editora da Universidade, 2002)
José M. P. da Cunha


José Marcos Pinto da Cunha é coordenador e pesquisador do Núcleo de Estudos da População (Nepo) da Unicamp. É docente dos cursos de graduação
e pós-graduação
do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH)
da Unicamp. Desenvolve pesquisas sobre migração
e redistribuição espacial
da população.
Nazareth Wanderley


Nazareth Wanderley é doutora em sociologia pela Universidade de Paris X. Foi professora de sociologia rural durante 20 anos no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. É professora colaboradora do programa de pós-graduação em sociologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Desenvolve pesquisas sobre o mundo rural e agricultura familiar.

 

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