Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 238 - de 17 a 30 de novembro de 2003
Leia nessa edição
Capa
Diário de Lisboa
Radiografia: C&T no Brasil
Água: fungos e bactérias
Estudo: efeitos contra gota
Mais velho e mais urbano
Demógrafos: o fio da navalha
Capacitação de professores
Comunicações opticas
Brasil: capitalismo tardio
Unicamp na Imprensa
Painel da semana
Oportunidades
Teses da semana
Vaca mecânica: 2° geração
Genômica: mapeando células
 

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Mitos miniaturizados
dos descobrimento

E in vero l’Historia è il più vago theatro,
che si possa imaginare

Giovanni Botero em Della Ragion di Stato (1589)

Edgar De Decca

Desenho em estação de metrô de Lisboa: oceanos como eixo temático

São dois passeios deliciosos. Diria, até, divertidíssimos e que retratam duas miniaturizações do mito dos descobrimentos. Quem vier a Lisboa deve fazê-los. O primeiro é o passeio ao Palácio da Pena na Serra de Sintra, a 40 minutos de Lisboa; o segundo, uma viagem pelo tempo na linha do metrô Oriente. O palácio é um monumento kitsch, concluído em 1897, no final do século 19, comportando todos os estilos arquitetônicos juntos (mouro, renascentista, barroco, rococó e até uma precoce art-noveau), como que a representar o ocaso de um sonho imperial. Não por acaso se tornou uma das últimas moradas da monarquia portuguesa, apeada do poder em 1910 pelo movimento republicano.

O palácio foi construído pelo rei consorte Fernando II, de ascendência inglesa, parente da Rainha Vitória e que presenciou no século 19 o sonho do imperialismo inglês. Neste palácio temos a dimensão do luxo conspícuo da monarquia e a sua fantasia romântica de miniaturizar o sonho imperial em inúmeros quartos e salas de estilos chineses, indianos e árabes. A visita ao palácio, hoje já distante do tempo da monarquia, é deliciosa. Temos a sensação de estar em um parque temático. A profusão de estilos e gostos, alguns requintados, como o retábulo renascentista da capela, e outros de muito mau gosto, dá uma sensação de empanturramento estético. A nostalgia de uma época passada fica resumida às dezenas de peças de um palácio no alto de uma serra, distante do mundo dos homens, onde foi se alojar a monarquia portuguesa em seus últimos verões.
O segundo passeio contrasta de modo impressionante com o primeiro. Neste caso, a miniaturização se dá através de uma viagem pelo metrô de Lisboa rumo à estação Oriente. Também foi construído no final de um século, para ser inaugurado durante a Exposição Internacional de 1998. Bem ao estilo das grandes feiras internacionais, que se tornaram o maior símbolo da modernidade a partir da segunda metade do século 19.

Um século depois, Lisboa irá miniaturizar o mito dos descobrimentos numa viagem de metrô. Pela surpresa de seus temas artísticos, trata-se de uma viagem mais ao estilo do Orient Express dos romances policiais de Agatha Christie, do que aquela realizada por Vasco da Gama na descoberta do caminho para as Índias.
Também contrastando com o palácio, não se trata de uma obra para satisfazer o consumo conspícuo de uma monarquia decadente. A linha nova do metrô, símbolo da saga dos descobrimentos, é uma obra da modernidade portuguesa para abrigar a Expo-98. Ao contrário do palácio, trata-se de uma obra de utilidade pública que, metaforicamente, pretendeu implementar a urbanização de um outro Oriente, este da cidade de Lisboa. A profusão de estilos, neste caso, foi programada para atender aos anseios multiculturalistas de uma nova visão de mundo criada na releitura dos descobrimentos portugueses.
Do mesmo modo que as antigas viagens portuguesas para o Oriente foram sendo feitas em etapas, aqui também. Ultrapassamos os cabos das Tormentas e da Boa Esperança, em belíssimas estações de metrô que levam o nome de Bela Vista, Cabo Ruivo, etc. Trata-se também de um imenso parque, que em suas várias estações tem os oceanos como eixo temático. Enfim, estes dois passeios se complementam, mas são também caminhos que se bifurcam em sentidos diferentes da história de Portugal.

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Muitas das minhas suspeitas estão se confirmando nesta viagem a Lisboa. Dentre elas, o modo criativo como Sérgio Buarque utilizou os documentos de viajantes italianos para escrever a história de Portugal na época dos descobrimentos. A pesquisa histórica das trocas culturais entre italianos e portugueses, entre os séculos 15 e 16, só decolou aqui em Portugal há uns 30 anos, mas o historiador brasileiro já utilizava fartamente estes documentos em sua tese de mestrado de 1957.
Pesquisas recentes revelam, inclusive, que foram os relatos de viajantes italianos, que participavam em negócios portugueses, como os de Giovanni Battista Ramusio em Navigationi e Viaggio, publicados em 1559 (obra, por sinal, citada por Sérgio Buarque), que tornaram conhecidas, em toda a Europa, a conquista dos mares e as descobertas portuguesas. Além disso, este repertório abundante de relatos permite reavaliar, historicamente, de que modo foram desvanecendo-se na Europa as imagens mitológicas e lendárias do oriente e do continente africano.

Este intenso intercâmbio comercial e cultural entre Portugal e Itália, não isento de suspeitas e traições, possibilitou, dentre outras novidades, a tradução para o português, em 1510, do relato de viagem de Marco Pólo, que permanecia guardado inédito no arquivo da Torre do Tombo, provavelmente, desde 1416, os primeiros anos da Dinastia de Avis, que marcou a separação de Portugal do Reino de Espanha.
Tem-se notícia de que este exemplar do livro de Marco Pólo foi trazido para Portugal por D. Pedro, irmão mais velho do Infante D. Henrique, o grande arquiteto das navegações portuguesas. Embora não tenha tematizado a presença dos italianos em Portugal, Sérgio Buarque utilizou, fartamente, estas fontes coletadas, provavelmente, em arquivos italianos e portugueses, no ano anterior à defesa de sua tese de mestrado.

Vista do Palácio da Pena na Serra de Sintra: profusão de estilos

Enfim, o tema das trocas culturais entre italianos e portugueses na época do renascimento é de considerável interesse historiográfico em Portugal. Apenas por curiosidade, dentre os italianos citados por Sérgio Buarque, destaca-se a presença especial do filósofo, geógrafo e cartógrafo Giovanni Botero, que, em 1591, dedicou-se à cartografia da Europa, da Ásia, da África e da América. As menções à cidade de Lisboa, como a quarta maior cidade da Europa, apareceram em seu tratado de política Della Ragion di Stato (1589).
Mas, além dessa obra, Giovanni escreveu também uma obra muito especial sobre as cidades, Delle Cause della Grandezza e Magnificenza delle città (1588) e Relazione Universali (1591). Um exemplar desta última está na sessão de obras raras da USP (http://www.obrasraras.usp.br).

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Escrevendo este comentário, acabo por deparar com um artigo do jornal Diário de Notícias de 10/11/2003, no qual o articulista reelabora as relações do passado com o presente, na figura do já citado D. Pedro, irmão do infante D. Henrique, que trouxe para Portugal o livro de Marco Pólo. Este viajante inveterado do século 15 teria sido, segundo o articulista António Valdemar, o primeiro a conceber um projeto político de integração de Portugal na Europa.

Sua vocação para as viagens possibilitou conhecer o universo político e cultural da Europa. Em carta ao seu irmão D. Duarte, datada de 1426, que ficou conhecida como A carta de Bruges, propõe uma série de medidas, destacando-se dentre elas o investimento público na área da educação, enfatizando que a cultura deveria prevalecer sobre o exercício puro e simples do poder.

Precursor das idéias reformistas e humanistas, este infante, que trouxe o livro de Marco Pólo para Portugal, também propôs medidas modernizantes para o país, a exemplo do que ocorria na Inglaterra e na França, como a promoção da ciência e da investigação, a reforma administrativa do Estado, o combate à ociosidade, e uma nova atitude diante do ao trabalho, à economia, à educação e à Universidade.
Parafraseando o escritor português Eduardo Lourenço, temos a impressão de que, hoje, Portugal precisa olhar para o futuro toda vez que se encontra com seu passado. Isto porque, para bom entendedor, não é preciso dizer o quanto esta imagem mítica e nostálgica de Portugal serviu para legitimar regimes políticos retrógrados e fascistizantes. Há entre os intelectuais portugueses das gerações mais recentes um enorme esforço para romper com este círculo nostálgico e saudosista. Esta atitude de olhar para o futuro parece-me muito bem evidenciada na política científica e intelectual do ISCTE.

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Na última semana, o instituto concedeu o título de Doutor Honoris Causa para o intelectual francês Serge Moscovici, que desenvolve estudos seminais na área da psicologia social, dedicando-se também aos estudos de uma antropologia das sociedades contemporâneas. Não sem motivos, o ISCTE lhe concedeu este título. Trata-se de um pensador preocupado com a questão do indivíduo e das minorias ativas nas sociedades pós-industriais e que interfere de forma decisiva na renovação das ciências sociais em Portugal, reintegrando o país no cenário intelectual da Europa.

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Historiador e professor do IFCH, Edgar Salvadori de Decca assumiu a cátedra Brasil-Portugal em Ciências Sociais no Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE), em Lisboa, em convênio firmado entre essa instituição e a Unicamp. A convite do Jornal da Unicamp, De Decca aceitou o desafio de escrever semanalmente um relato de sua permanência na capital portuguesa.

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