Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 237 - de 10 a 16 de novembro de 2003
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De Pedro I ao Quixote,
do IFCH ao ISCTE de Lisboa

EDGAR DEDECCA

Quadros no quarto Cervantes, onde nasceu e morreu o imperador D. Pedro I

Para quem nunca viu, é uma enorme surpresa conhecer o quarto onde nasceu e morreu o nosso imperador D. Pedro I. Está no Palácio Nacional de Queluz, situado a menos de meia hora de Lisboa. Ele é mais conhecido como o quarto Cervantes, em homenagem ao autor de D. Quixote. Qualquer brasileiro se deixa levar pela encenação do imaginário do primeiro imperador do Brasil a partir dos seus próprios aposentos.

O quarto de dormir impressiona, primeiramente por sua arquitetura. Aparentemente, trata-se de um quarto circular, com um domo; porém, observando-se os detalhes, vê-se a quadratura de seu formato. Nas paredes há inúmeras pinturas de cenas de D. Quixote, sempre montado em um cavalo, como aliás ficou imortalizada a figura de D. Pedro I.

Não saberia dizer, no momento, se o pintor do quadro da Independência do Brasil, Pedro Américo de Almeida, se inspirou no quarto Cervantes na elaboração de sua obra, mas são mais do que evidentes as suas citações. Há no quarto uma pintura que mostra Quixote ao cavalo sob o olhar de homens negros pobres, que muito se assemelha ao quadro da independência de Pedro Américo. Alguns historiadores brasileiros chegaram a fazer comparações entre as peripécias de Pedro I, conhecido em Portugal como Pedro IV, e as aventuras do herói literário espanhol de Cervantes.

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Lembro-me que quando criança lia os livros do historiador Pedro Calmon, do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Meu pai muito admirava suas obras, e nelas havia estas alusões ao quixotismo do primeiro imperador do Brasil, que se imortalizou como “o rei cavaleiro”. As alusões ao herói D. Quixote são inúmeras e pode-se dizer que as aventuras do imperador não ficam nada a dever ao herói de Cervantes. D. Pedro, quando criança, provavelmente acalentando as aventuras de Quixote nas noites do palácio de Sintra, prefigurou em suas fantasias as façanhas mirabolantes daquele imortal personagem da literatura ibérica.

Há dois anos me dedico ao estudo dos enredos históricos e literários formadores da identidade nacional, na composição das imagens do pai e do filho. Esta encenação do imaginário de D. Pedro no quarto Cervantes vem se somar aos meus outros indícios de que muitos dos enredos da identidade nacional estão marcados por este tipo de composição tragicômica da grande novela de Cervantes. Que não me deixem enganar As Memórias Póstumas do Sargento de Milícias, de Manuel António de Almeida, e Triste Fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto.

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Nesta semana, nos dias 13, 14 e 15 de novembro, teremos um excelente colóquio aqui próximo ao ISCTE (IXQTÊ). Trata-se do Colóquio Internacional “História Social das Elites” (http://www.ics.ul.pt/agenda/segundocoloquio.htm), patrocinado pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e que contará com a presença de pesquisadores de Portugal, Espanha e Brasil. Este colóquio terá inúmeras sessões de debates, dividindo-se em quatro áreas temáticas: 1. Elites metropolitanas e elites ultramarinas nos impérios ibéricos do Antigo Regime (século XVIII); 2. Oligarquia e Caciquismo nos Estados Liberais do século XIX; 3. Poder e Resistência nos Regimes Autoritários do Século XX; 4. A Condução das Transições para a Democracia no Sul da Europa e no Brasil (c. 1970-c. 1980).

Quadros no quarto Cervantes, onde nasceu e morreu o imperador D. Pedro I

Digo próximo, não apenas por questão de localização, já que os prédios do ISCTE e do ICS são vizinhos, mas porque existem muitas afinidades entre estes dois institutos de ciências sociais. Aliás, poderia dizer que eles se assemelham muito ao projeto intelectual formador do IFCH da Unicamp. Ambos os institutos se formaram durante os anos do salazarismo em Portugal e tinham como projeto intelectual pensar a sociedade portuguesa numa dimensão pluridisciplinar.

Lembro-me muito bem de meus primeiros anos no IFCH e o quanto esta expectativa também se assemelhava às nossas. Também no Brasil, vivíamos sob regime militar na década de 70 e as ciências sociais eram confundidas com os ideais do socialismo. O mesmo ostracismo vivido pelas ciências sociais brasileiras nos anos 70 foi experimentado também pelos cientistas sociais portugueses. Quando me refiro às ciências sociais, não me limito à sociologia, mas a todas as ciências sociais, assim entendidas naquela época, nas quais se incluíam também a antropologia, a ciência política, a história, a economia e, por fim, a filosofia.

Deste modo estava estruturado o IFCH, quando lá cheguei em 1977. Pensávamos, de fato, em uma ciência social multidisciplinar. Por este motivo, a progressiva fragmentação do IFCH foi tão difícil e dolorosa. Começando pela departamentalização e terminando com a separação das áreas, como foi o caso da criação do Instituto de Estudos da Linguagem e do Instituto de Economia. Este não foi o caso do ISCTE e do ICS. Nascidos praticamente na mesma época, aos poucos se diferenciaram em suas carreiras acadêmicas, sem contudo perderem a identidade multidisciplinar da formação original.

Tanto isso é verdade, que o atual presidente do ISCTE, o simpático sociólogo João Ferreira de Almeida, é um antigo pesquisador do ICS. Assim também, inúmeros professores do ISCTE dão aulas e pesquisam no ICS. A diferença entre eles está no fato de que o ISCTE tem cursos de graduação em todas as ciências sociais, incluindo a economia e um curso de arquitetura, além dos programas de mestrado e doutorado, enquanto o ICS se assemelha ao clássico modelo da École de Hautes Études en Sciences Sociales de Paris, apenas com programas de pós-graduação.

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Quando eu me refiro às afinidades entre esses institutos e o IFCH, reafirmo também os compromissos da cátedra que, atualmente, estou ocupando no ISCTE. A iniciativa do ex-embaixador brasileiro em Portugal, José Gregori, não poderia ter sido mais feliz e mais acertada, porque acabou associando dois institutos que têm enormes afinidades intelectuais, o ISCTE e o IFCH da Unicamp.

Não sei se o nosso ex-embaixador em Portugal conhecia a história destas duas instituições, mas a sua escolha poderá abrir caminhos novos para as pesquisas multidisciplinares em ciências humanas, que têm sido retomadas no IFCH, principalmente depois da criação dos núcleos e centros de pesquisa. Apesar de estarmos no começo de nosso intercâmbio, é considerável o conhecimento que os professores do ISCTE têm de pesquisadores e professores do IFCH, nas áreas da sociologia do trabalho e do sindicalismo, na história do autoritarismo brasileiro, nos estudos do género, na antropologia urbana, dentre outras.

A vocação intelectual do ISCTE privilegia, sem dúvida, os estudos de história contemporânea em suas múltiplas dimensões (sociais, políticas, culturais), mas não por isso deixa de lado os estudos, principalmente das sociedades que se formaram a partir da modernidade. Isto é, trata-se de um instituto que por vocação democrática e anti-salazarista está procurando superar as imagens de um Portugal exclusivamente voltado para o seu próprio passado mítico.

Aqui, tenho me relacionado com uma ciência social renovada e preocupada em projetar Portugal para o futuro, tanto em suas relações com a Europa como com os países de língua portuguesa, entre eles o Brasil e nações africanas. Há, por este motivo, muitas possibilidades de intercâmbio acadêmico entre Brasil e Portugal e, dentre elas, destaco o interesse recíproco na história e na atualidade das sociedades dos países africanos de língua portuguesa.

De acordo com a expectativa de crescimento da ação afirmativa com relação à questão negra no Brasil, o IFCH e o ISCTE poderiam se unir para a criação de um projeto interdisciplinar de estudos, aproveitando os antigos laços que nos unem com a África negra e de língua portuguesa.

 

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Historiador e professor do IFCH, Edgar Salvadori de Decca assumiu a cátedra Brasil-Portugal em Ciências Sociais no Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE), em Lisboa, em convênio firmado entre essa instituição e a Unicamp. A convite do Jornal da Unicamp, De Decca aceitou o desafio de escrever semanalmente um relato de sua permanência na capital portuguesa.

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