| Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Enquete | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 207 - 24 a 30 de Março de 2003
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ARTIGO

Previdência, Déficit Público
e Direitos Sociais: Mitos e Fatos

Milko Matijascic

A sabedoria dos defensores do Consenso de Washington se baseia em conceitos simplórios referentes à questão do déficit da Previdência. Segundo a lógica desse grupo, as receitas com as contribuições arrecadadas sobre a folha salarial dos trabalhadores são inferiores às despesas com benefícios, havendo, portanto, déficit nas contas da Previdência Social e dos regimes de aposentadorias e pensões dos servidores públicos. Partindo dessa argumentação, o INSS apresentaria em 2002 um déficit total de 1,3% em relação ao PIB, enquanto os sistemas destinados aos servidores teriam um déficit total de 2,2% para a União; 1,7% para os Estados e de 0,3% para os municípios. Um déficit dessa magnitude justificaria a realização de reformas de ampla envergadura.

Mas a proposição dos defensores do Consenso de Washington não se sustenta. No que diz respeito à Previdência Social, existe a questão da Seguridade Social que envolve as políticas de saúde, assistência e Previdência Social que, segundo a Constituição, possui um orçamento próprio composto por recursos que gravam os salários, faturamento, lucro e, desde meados dos anos 1990, movimentação financeira. Como os constituintes pretendiam aumentar a cobertura da seguridade, além de melhorar a qualidade dos serviços e o valor das prestações, foram criadas condições financeiras adequadas para garantir a viabilidade atuarial sem a necessidade de promover reiteradas reformas.

A sociedade entendia, em 1988, que o Estado era omisso para com os mais pobres, não fazendo valer os seus direitos trabalhistas e sociais, não sendo possível, portanto, partir de uma lógica que relacionasse o valor dos benefícios apenas com as contribuições dos segurados. A utilização de recursos incidentes sobre múltiplas fontes de recursos para financiar a seguridade é uma regra em todas as sociedades e a sua importância tende a ser maior onde o nível de precariedade das relações de trabalho é mais acentuado, como no Brasil, conforme aponta a OIT- Organização Internacional do Trabalho.

Considerando as regras constitucionais referentes à seguridade, cabe dizer que o volume de recursos sempre superou o de despesas, ou seja, existe superávit e não déficit. Em 2002, por exemplo, esse total superou a barreira dos R$ 30 bilhões e todos os anos anteriores também apresentaram elevados excedentes. Esse superávit poderia, por exemplo, servir para constituir fundos, ou ainda, para aumentar o valor das aposentadorias. No entanto, seu destino foi socorrer o Orçamento Fiscal, comprometido com um endividamento crescente e descontrolado. Assim, entre 1988 e 2002, foi a política social que ajudou a financiar as políticas econômicas e não o inverso.

Já na formulação dos sistemas de aposentadorias e pensões do serviço público, a questão é diferente, conforme apontou o ex-ministro Roberto Brant em 2001. Segundo Brant, o Estatuto do Servidor Público Civil Federal, no início da década de 1950, consolidou a estrutura ainda hoje vigente, baseada no princípio do pro labore facto, por meio do qual a aposentadoria é uma extensão da remuneração da atividade. O referido Estatuto foi a matriz dos demais regimes públicos nos Estados e Municípios. Assim, segundo Brant, cada unidade da Federação adotou um regime próprio de previdência, sem exigência de contribuição ou então com contribuição apenas simbólica.

Partindo desses princípios, não é cabível falar em déficit, pois o sistema não foi concebido como um fundo ou como um regime financeiro de repartição, onde a arrecadação deve financiar as despesas num mesmo período. Trata-se de um sistema contratual que não relaciona contribuições e benefícios. Assim, a argumentação baseada em déficit é juridicamente insustentável para o serviço público.

Entre 1938 e 1978, épocas, existiu um fundo previdenciário para servidores federais chamado de IPASE- Instituto de Pensões e Aposentadorias dos Servidores do Estado. Mas a falta de transferência de recursos por parte do Estado e a pouca transparência em relação à utilização de fundos dos trabalhadores fez com que o IPASE fosse extinto e os servidores, com "carreiras típicas de Estado", passassem a adotar a sistemática descrita por Brant.

Em suma, a insistência em tratar a questão sob a ótica do ajuste fiscal é indefensável e coloca em risco a previdência, que é a única política brasileira de redistribuição de renda bem sucedida. Prova disso é que na Europa existe uma grande admiração em relação às conquistas da Constituição de 1988. Existem distorções, mas elas devem ser tratadas no campo dos direitos sociais, não igualando as condições daqueles que possuem altos salários e os que recebem uma remuneração irrisória.

Aliás, os resultados das teses do Consenso de Washington na previdência, conforme apontou a experiência da Argentina, são muito lesivos ao quadro social do país e deterioram as finanças públicas. O resultado fiscal passou de um superávit de US$ 2,2 bilhões em 93 para um déficit de US$ 6,9 bilhões em 2000. O déficit previdenciário corrente, no mesmo período, evoluiu de cerca de US$ 900 milhões para US$ 6,7 bilhões, de acordo com Raul Velloso. Pior ainda, a pobreza passou a atingir mais da metade da população argentina. Infelizmente, apesar dessa terrível lição, ainda será preciso manter a vigilância. Segundo reportagem da Folha de S. Paulo de 18/3/2003, o envio de uma proposta de reforma da Previdência inspirada em teses similares às adotadas pela Argentina é uma das condições para renovar os acordos do Brasil com o FMI.


Milko Matijascic foi pesquisador do IPEA e da London School of Economics and Political Science.

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