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Artigo

O amigo Debrun


ÍTALA M. LOFFREDO D'OTTAVIANO
Para Solange, Danielle e Lucas

No início de 1986, quando eu recém-assumira a direção do Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência (CLE) da Unicamp, Michel Debrun propôs-me a criação do Seminário Interdisciplinar CLE. Idealizou-o e coordenou-o desde então, passando a desenvolver suas atividades acadêmicas junto ao Centro e a fazer parte de seu Conselho Científico.

Iniciamos então uma colaboração acadêmica regular e profícua, enriquecida por uma grande amizade.

O Grupo Interdisciplinar CLE, constituído por pesquisadores de diversas áreas do conhecimento da Unicamp, USP, Unesp e UFMG, com a participação de outros pesquisadores brasileiros e estrangeiros, vem estudando, desde 1986, problemas relacionados com as noções de ordem, desordem, crise, caos, informação, organização, reorganização, autopoiese, auto-referência, entropia, complexidade, e outras noções afins, sem esquecer a noção de dialética que, segundo Debrun, confrontada com o novo ambiente teórico, está adquirindo novos significados, compatíveis com a tradição filosófica, porém insuspeitados por ela.

Em 1987, através do CLE e sob a coordenação de Debrun, organizamos uma sessão sobre "ordem e desordem" durante a "39a Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC)", ocorrida em Brasília. No mesmo ano, também sob a coordenação de Debrun, realizou-se o "Colóquio CLE 10 anos - Ordem e Desordem", comemorativo aos dez anos de criação do Centro de Lógica.

A seguir, o grupo centralizou seu debate em torno da noção de auto-organização e conceitos afins.

Em 1996, Debrun recebeu apoio da Fapesp para coordenar o desenvolvimento do projeto "O Conceito de Auto-Organização e suas Aplicações em Diversas Áreas do Conhecimento".

De algumas décadas para cá, o desenvolvimento das teorias da informação, da organização, dos sistemas complexos e dos sistemas dinâmicos, e suas aplicações às áreas das ciências físicas e matemáticas e das ciências humanas, têm suscitado uma retomada da reflexão científica e filosófica sobre as noções de ordem e desordem, permitindo vislumbrar, segundo Debrun, a superação de clássicas oposições teóricas. Têm surgido modelos de descrição e explicação que, conforme os casos, combinam ou mesmo ultrapassam mecanicismo e finalismo, reducionismo e glóbalismo e, até certo ponto, razão analítica e razão dialética. Hoje, esses modelos penetram nas áreas de ciências exatas, ciências da natureza, ciência cognitiva, ciências humanas e artes.

A idéia de um mundo naturalmente organizado, porque de "ponta a ponta" submetido a leis, parece estar sendo substituída por outro enfoque: a organização é vista, cada vez mais, como constituída de fenômenos de auto-regulação, auto-reprodução, autodesenvolvimento etc. Paralelamente, a probabilidade da emergência e da manutenção da organização aparece, maior ou menor, de acordo com as situações e as categorias de fenômenos, o que torna a existência da organização algo problemático, e não mais algo estabelecido.

Hoje, em contraposição ao período entre o final do século XVIII e a metade do século XX, parece haver uma certa aproximação entre as mais diversas disciplinas científicas e entre as epistemologias a elas correspondentes, no que diz respeito ao uso das noções de ordem e desordem. Segundo Debrun, os cientistas, de modo geral, admitem que as idéias de ordem e desordem implicam uma certa hierarquia entre os fenômenos de uma mesma área, mas rejeitam simultaneamente a concepção de organização (ordem) como um "dever ser", uma exigência que a natureza ou a sociedade teriam de cumprir. Tais reflexões não mudam, é claro, os princípios e enfoques básicos que definem a racionalidade; no entanto, inauguram um novo paradigma de pensamento, ao mesmo tempo científico e filosófico, podendo-se falar, nesse sentido, de um alargamento do horizonte da racionalidade.

Um dos principais objetivos de nosso Projeto Fapesp consistia na proposição, a partir de uma perspectiva interdisciplinar, de uma definição para o termo auto-organização, de modo que esse conceito pudesse ser coerente e capaz de interpretar diversos fenômenos hoje em dia grosseiramente identificados como auto-organizados.

Os principais temas dos trabalhos desenvolvidos pelo Grupo Interdisciplinar CLE Auto-Organização referem-se à auto-organização e criação; auto-organização e identidade pessoal; sistêmica; auto-organização, atenção e aprendizagem; auto-organização e memória; auto-organização e ciência cognitiva; e auto-organização na biologia.

No final de 1996, publicamos, pela Coleção CLE - coleção de livros editada pelo Centro de Lógica -, volume 18, o livro Auto-Organização - Estudos interdisciplinares em filosofia, ciências naturais e humanas, e artes, com trabalhos do Grupo Interdisciplinar CLE, sendo Debrun um dos organizadores.

O Prefácio - "Porque, quando e como é possível falar em auto-organização?" - e os dois primeiros capítulos - "A idéia de auto-organização" e "A dinâmica da auto-organização primária" -, escritos por Debrun, são preciosos e plenos de sua criatividade filosófica. Neles, como sempre foi sua característica, toma os conceitos, esmiúça-os e os vira pelo avesso, analisando-os e exaurindo-os em profundidade.

Nesse prefácio, Debrun introduz o postulado da coletânea: "Certas organizações podem emergir, desenvolver-se ou reestruturar-se essencialmente a partir delas próprias". E finaliza: "Acreditamos que esses critérios foram globalmente aceitos nos trabalhos da coletânea. Quando não foi o caso, nos regozijamos de antemão com as controvérsias teóricas que isso irá suscitar".

Além de nosso trabalho conjunto com o Grupo Interdisciplinar CLE, Michel e eu mantivemos, nos últimos anos, calorosas discussões sobre os temas com os quais vinha ele trabalhando havia muitos anos.

Era notório e esperado o seu livro sobre a identidade nacional brasileira, fruto de sua rigorosa busca de compreensão e explicação da realidade brasileira, que vinha escrevendo por longos anos e que nunca terminava; um outro livro, que deveria chamar-se Da auto-organização à auto-criação, eu o considerava pronto para publicação pela Coleção CLE, como ele desejava, porém o livro não satisfazia ainda o que eu chamava de perfeccionismo à la Michel; e havia ainda o livro sobre Gramsci, que correspondia à sua tese de livre-docência, e já estava na segunda ou terceira versão, porém nunca correspondendo às suas expectativas.

Durante nossos seminários e discussões pessoais, Debrun mostrou várias vezes como seu interesse pelos temas relativos à auto-organização relacionava-se com seus outros temas de trabalho, acima mencionados, que passara nos últimos anos a desenvolver sob essa nova perspectiva da auto-organização.

Fizemos então um trato. Estabelecemos um cronograma para a finalização dos três volumes, um por vez, em ordem por nós estabelecida, e ele comprometeu-se a cumprir o combinado.

Entretanto, no final de 1996, concedeu uma longa entrevista ao jornalista Eustáquio Gomes, para o jornal Correio Popular de Campinas, sobre neoliberatismo e globalização econômica e cultural, relacionando esses conceitos com suas pesquisas sobre auto-organização.

Debrun preparou-a, com o esmero de sempre. E, para nossa alegria, e minha aflição, empolgou-se com o tema, decidindo escrever um pequeno livro sobre neoliberalismo e globalização. Mais uma vez, concordei com ele, que em dois meses acabaria esse texto e, a seguir, retomaria os outros três livros.

Estava quase a finalizar o livro recém-começado sobre neoliberalismo e globalização, no auge de sua potencialidade intelectual, quando adoeceu repentinamente e faleceu poucos dias depois.

Alguns meses após sua morte, responsabilizei-me pela coordenação do Projeto Fapesp, concluído no final de 1999.

O Grupo Interdisciplinar CLE Auto-Organização continua ativo. O livro Auto-organização - Estudos Interdisciplinares, volume 30 da Coleção CLE, foi publicado em 2000; realizamos, em maio de 2003, o "VII Colóquio Internacional Michel Debrun", em colaboração com a Unesp (campi de Rio Claro e Marília) e com a participação de convidados estrangeiros de alta relevância acadêmica; e o terceiro volume da série Auto-organização - Estudos Interdisciplinares, mais uma vez com o auxílio da Fapesp, está para ser lançado pela Coleção CLE.

Diversas dissertações de mestrado e teses de doutorado têm sido produzidas, na Unesp e na Unicamp, como resultado do trabalho do Grupo, e graças ao legado das questões, indagações e textos a nós deixados por Debrun.

O Centro de Lógica e a Editora da Unicamp publicaram, em 2001, numa edição conjunta, o volume 31 da Coleção CLE - Gramsci: filosofia, política e Bom-Senso, o texto original, com comentários e acréscimos do próprio autor, da Tese de Livre-docência de Michel Debrun, defendida na Unicamp em 1982. O livro foi lançado na abertura do "Evento Cocen ‘2001", dedicado à memória de Michel Debrun. Convidei Paulo Sérgio Pinheiro e Ricardo Antunes, amigos e colaboradores de Michel, para escreverem o prefácio e as orelhas do Gramsci.

Segundo Ricardo Antunes, "a filosofia e a política, a teoria e a prática gramscianas ganham, então, na construção interpretativa de Debrun, uma leitura original."

E, segundo Paulo Sérgio Pinheiro, "reencontramos vivos, claros, dinâmicos, no Gramsci, os carros-chefe das análises de Debrun: o passado, as ambigüidades do legado, o peso da conjuntura, o papel dos atores, as possibilidades, o caráter prático da filosofia, o descompasso entre estruturas e ideologia. Enfim, reflexões inovadoras que dizem respeito à política, à sociologia e à filosofia neste terceiro milênio: para entender o passado, para analisar o presente e desvendar os cenários, Michel Debrun é a melhor companhia."

Grande parte deste texto, que agora publicamos no Jornal da Unicamp, faz parte da Apresentação que preparei para o Gramsci, como editora da Coleção CLE.

Solange e Danielle Debrun doaram ao Centro de Lógica a biblioteca e o acervo dos trabalhos manuscritos de Michel, entre eles as anotações relativas a seus quatro livros inacabados, porém em fase de redação. Esse precioso material se encontra hoje no Arquivo Histórico e na Biblioteca do CLE, que desde 1998 leva o nome de Biblioteca Michel Debrun, numa justa homenagem ao mestre e amigo exemplar, que tanto se dedicou à Unicamp e à universidade brasileira.

Boa parte dos arquivos pessoais de Debrun, com seus manuscritos, já se encontra disponível para consulta nos Arquivos Históricos do CLE.

O Grupo Auto-organização pretende trabalhar esses seus manuscritos inéditos, de grande riqueza intelectual e acadêmica, e publicar os seus livros inacabados.

O amigo querido, o cidadão francês "nacionalista brasileiro", que tanto amou a sua "República de Barão Geraldo" - "a capital intelectual do Ocidente", onde foram esparsas as suas cinzas -, deixou-nos o exemplo do rigor e seriedade intelectuais, da delicadeza, da coerência, da integridade e da dignidade de caráter.

Foi um privilégio poder ter desfrutado da amizade e ter compartilhado da produção intelectual de Michel Debrun, nos últimos dez anos de sua vida.

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Itala M. Loffredo D’Ottaviano é professora do Departamento de Filosofia/ Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência


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