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Ciência Culinária


MARCELO KNOBEL

“Cheiro de casa, sabor com aconchego. Assim é o pão caseiro recém-saído do forno”. Li esta frase em uma página de receitas na Internet e, de fato, já me deu água na boca... Quem foi que teve a brilhante idéia de misturar ingredientes tão simples, para obter no final algo tão especial? Essa pergunta surge não só com o pão, mas também com outras iguarias que degustamos diariamente.


É incrível notar que somos as únicas criaturas na face da terra que comemos alimentos processados e cozidos (a não ser, é claro, os animais domésticos!). Essa habilidade de condimentar, preparar e modificar os alimentos brutos está intimamente relacionada com o desenvolvimento do ser humano. Além de importantes mudanças físicas e fisiológicas, como o movimento bípede e o crescimento de nosso cérebro, os nossos ancestrais também iniciaram os primeiros passos dessa ciência empírica que é cozinhar alimentos. Os alimentos cozidos são mais fáceis de digerir, mais seguros de armazenar, e provavelmente foi o meio mais eficaz de introduzir proteínas complexas na dieta alimentar dos seres humanos. Estima-se que, ao introduzir a prática do churrasco, os caçadores primitivos conseguiram pelo menos dobrar o consumo de calorias ingeridas. Ao cozinhar algumas raízes, alguns ingredientes tóxicos ou de gosto ruim tornam-se comestíveis, e até agradáveis. Todos esses fatores provavelmente auxiliaram no desenvolvimento intelectual da espécie, que finalmente emergiu há cerca de 100 mil anos.


Assim como nós evoluímos, a culinária também evoluiu. Milhões e milhões de tentativas e erros gradualmente levaram ao aprimoramento de receitas que se consolidaram em diferentes regiões do planeta. Foi apenas uma questão de tempo até que os “chefes de cozinha” pré-históricos notassem que algumas maneiras especiais de preparar os alimentos modificavam e melhoravam o sabor. As carnes grelhadas, por exemplo, se impuseram como uma das maneiras mais saborosas de preparo. Por quê? Por um lado, a superfície da carne endurece porque o suco se evapora a as proteínas coagulam; por outro lado, os constituintes da carne reagem quimicamente para formar moléculas aromáticas e coloridas, formando uma crosta crocante e saborosa. Já no interior da carne, as moléculas de colágeno que tornam a carne rígida se degradam, e a carne amolece (isso ocorre em torno de 70 a 80ºC). A energia térmica nesse caso é suficiente para quebrar as ligações mais fracas entre os átomos de certas moléculas, desnaturando as proteínas. As proteínas desnaturadas assemelham-se a longos fios que se desenrolam e começam a se agitar em todas as direções. Nesse ponto a carne endurece um pouco (mas não muito), pois as proteínas podem entrar em contato com outras proteínas da vizinhança, ligando-se a elas, ou melhor, coagulando. Entretanto, se o cozimento é prolongado, as moléculas de água que permaneceram ligadas às proteínas são expelidas, e a carne fica dura demais. Ou seja, o cozinheiro deve encontrar um ponto ótimo que degrade o colágeno, mas que evite que as proteínas, tendo coagulado ao redor de 70-80ºC, sequem e endureçam. De fato, há diversos modos de realizar essa façanha: ao cozinhar a carne rapidamente, evita-se a difusão do suco para o exterior, e a carne fica suculenta. Existem milhares de outros segredos que os bons churrasqueiros de fim de semana não compartilham com ninguém, mas que provavelmente têm uma explicação científica.


Certamente há muitos mitos e lendas na prática culinária, mas sem dúvidas há também verdades irrefutáveis. Em muitas receitas a ordem em que os ingredientes são inseridos é de importância vital. Em outras, basta bater com um pouco mais de força, ou por um tempo infimamente maior do que o indicado, que o resultado é simplesmente desastroso. Ao trabalhar no fogão ou no forno qualquer cozinheiro sabe o cuidado que deve ter ao lidar com a temperatura e suas variações, que podem arruinar uma receita complicadíssima. De uma maneira similar à ciência, esses conhecimentos são transmitidos e repassados, através da publicação de receitas, de dicas familiares, de programas de televisão. Cada receita é reciclada, adaptada, aprimorada e, naturalmente, evolui.


Além do enriquecimento das receitas, os métodos de processar e cozinhar alimentos, e posteriormente os próprios alimentos, também sofreram uma evolução com o tempo. Hoje em dia a ciência culinária conta com o auxílio de poderosos métodos de análise, que detectam, por exemplo, a presença de compostos aromáticos em concentrações homeopáticas, mas com papel preponderante. Mas esse conhecimento não necessariamente se traduz em melhores métodos de preparo. Assim como ocorre na ciência, na culinária também dependemos de insights de grandes mestres, que conseguem, como ninguém, combinar harmoniosamente ingredientes, realizar combinações inusitadas e criar paladares e aromas inigualáveis. Nesses momentos a ciência culinária sofre revoluções e transformações, e se confunde incontestavelmente com a arte.


Marcelo Knobel é professor do Instituto de Física “Gleb Wataghin”


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