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Santuário materno
 

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Agora que o bebê Lucas segue calmamente
com sua vida, cirurgião fala sobre perspectivas da cirurgia fetal



No interior do santuário materno



LUIZ SUGIMOTO


Foto: DivulgaçãoO professor Lourenço Sbragia Neto, que participou da primeira cirurgia de um bebê dentro do útero bem sucedida na Unicamp, retornou ao tema exatamente no dia em que Lucas completou três meses de idade. Agora que os holofotes da mídia foram apagados, o médico aborda questões éticas em torno da chamada cirurgia fetal a céu aberto, o estágio em que se encontra a medicina fetal no Brasil e os estudos em andamento no Laboratório Experimental “Michael Harrison” – que ele acaba de montar com recursos da Fapesp – para aprimorar técnicas visando eliminar ou atenuar defeitos congênitos. Lucas nasceu em 1º de março e havia passado em dezembro por uma intervenção intrauterina feita pela equipe de medicina e cirurgia fetal coordenada pelo professor obstetra Ricardo Barini, devido a uma lesão lombar que impediria o movimento das pernas e comprometeria suas funções mentais.

“Gerar um bebê normal é o desejo de qualquer mulher grávida”, destacou Lourenço Sbragia em editorial para o jornal interno da Faculdade de Ciências Médicas (FCM), em que resumiu o aprendizado, as conquistas e as agruras do Grupo de Medicina Fetal da Unicamp, inclusive o impacto da perda do bebê de Valéria, que morreu durante a primeira cirurgia intrauterina realizada pela equipe, em decorrência do descolamento da placenta. No artigo, o pesquisador ressalta que os avanços científicos permitiram “adentrar o santuário da cavidade amniótica materna e a realização de uma série de cirurgias fetais em humanos realizadas a céu aberto, ou seja, abrindo o útero materno, operando o feto, fechando o útero e acompanhando a gravidez até a resolução”.

A equipe médica responsável pela cirurgia fetal: foco agora é a questão ética (Foto: Divulgação)Este tom acadêmico, no entanto, jamais será visto num contato pessoal com Lourenço Sbragia. Tanta informalidade surpreende quem mede as pessoas apenas pelo currículo. Formado pela USP de Ribeirão Preto, o médico optou pela pediatria, que cursou por dois anos, seguida de cirurgia pediátrica por mais cinco anos; o título de mestrado foi obtido também na USP, o de doutorado na Unicamp e o pós-doutorado em cirurgia fetal e cirurgia neonatal na Universidade da Califórnia São Francisco (UCSF), onde aprendeu o que sabe com o professor Michael Harrison, que batiza o novo laboratório e é considerado “o pai da cirurgia fetal”. “Graças ao bom Deus, estou progredindo”, brinca. O abuso nas gírias e as declarações inflamadas, próprias de jovens idealistas, camuflam sua idade de 41 anos. “Você não pode imaginar o desespero dessas mães, cara!”.

O médico e professor Luorenço Sbragia Neto: "Em países desenvolvidos, a lei diz que a mulher tem o direito supremo de decidir sobre o futuro da sua gravidez." (Foto: Antoninho Perri)O professor se refere à angústia não apenas de grávidas que ficam sabendo de defeitos congênitos nos bebês, mas também daquelas que depois são desaconselhadas de recorrer à cirurgia fetal, visto que às vezes o risco é grande para elas próprias ou para a criança que seguramente nascerá prematura. “É muito difícil e constrangedor notificar as famílias de que a operação fetal não será realizada. É como tirá-las da ‘lista de Schindler’. Se, para melhorar um pouco que fosse a saúde dos seus bebês, pedíssemos a essas mães que pulassem da Torre Eiffel, elas pulariam”.

Projetos – Um financiamento de R$ 226 mil da Fapesp permitiu dotar o Laboratório Experimental de uma estrutura física – computadores, softwares, microscópio e outros equipamentos – comparável à que Lourenço Sbragia dispunha nos Estados Unidos. “Nenhuma queixa. Mas em termos de apoio governamental, por exemplo, nós estamos na pré-história e os americanos em Marte. Estamos chegando a pesquisas relevantes graças ao empenho dos estudantes que trabalham no laboratório, uma dedicação que só pode ser justificada por algo que eu definiria como ‘fissura’ pela ciência. É uma pena que esses meninos não sejam valorizados no Brasil; se estivessem no exterior, estourariam a boca do balão”, protesta o professor.

Os experimentos no laboratório são feitos com ratas. Grosseiramente falando, o que se faz é produzir defeitos congênitos nos fetos, a fim de operá-los e avaliar procedimentos e resultados. Pode soar a crueldade para leigos, mas foram experimentos como estes que levaram às técnicas que atenuaram os efeitos da mielomeningocele (MM) em Lucas e em outros seis bebês operados na Unifesp. A MM, para quem não viu o noticiário nacional em março, é uma malformação que impede o fechamento da coluna e deixa a medula espinhal exposta, causando hidrocefalia que em 80% dos casos leva a retardo mental, além de paralisia total ou parcial das pernas.

Dentre os estudos desta doença no momento, Sbragia orienta a aluna de iniciação científica Maria Weber Guimarães, que conta com bolsa da Fapesp para formular um novo modelo de MM em ratas: uma enormidade de medições, datações, medicações etc. “Poucos grupos no mundo realizam cirurgia fetal em modelo tão pequeno”, explica o pesquisador, que neste trabalho tem a colaboração dos professores Francesco Langone e Luis Violin, do Instituto de Biologia.

Outro projeto associado, com o professor Alberto Cliquet, engenheiro eletrônico ligado ao Departamento de Ortopedia, refere-se a um marca-passo para o desenvolvimento da medula lesada. A idéia é implantar na rata um estimulador neurononal miniaturizado, que será ligado por fios ao feto, esperando-se que promova o crescimento do neurônio danificado pela MM. “Parece coisa de ‘Mané’, mas se isso funcionar talvez possamos, no futuro, puncionar o útero da mulher grávida com um tubinho fino como caneta, implantando um neurotransmissor e promover o crescimento dos nervos medulares comprometidos. Ao invés de fazer uma cirurgia fetal, que é agressiva, colocaríamos um chip na coluna do bebê durante a gestação para minimizar o dano neuronal causado pelo defeito. Logicamente, são hipóteses que vamos testar”, explica Lourenço Sbragia.

Hérnia mortal – Existe uma doença chamada hérnia diafragmática congênita (HDC), que ocorre em 1 a cada dois ou três mil nascimentos. O diafragma, músculo que separa o tórax do abdome, apresenta um buraco, permitindo que os intestinos passem para o tórax e acaba impedindo o crescimento pulmonar. Mesmo com diagnóstico pré-natal, 50% dos bebês que nascem com HDC morrem. “O pulmão não precisa funcionar dentro do útero, mas cortado o cordão umbilical esse pulmão tem de expandir. Um bebê bonito, perfeito, morre porque o pulmão não cresce e não realiza adequadamente as trocas gasosas. Nos países desenvolvidos há centros especiais de referência em neonatologia onde é possível o tratamento de rotina, após o nascimento, com um tipo de pulmão artificial chamado ECMO. Acontece que o tratamento é caríssimo. No Brasil, com raras exceções, se a criança nasce com HDC grave, morre”.

Uma alternativa em estudo é a introdução, por cirurgia intrauterina, de um microbalão de plástico na traquéia do bebê, técnica denominada de traqueo-oclusão. Fechada a traquéia, impede-se a saída de líquido amniótico produzido no pulmão, que então se expande e empurra o intestino para baixo. Anderson Gonçalves e Alexandre Iscaife, alunos de iniciação científica (bolsa Pibic/CNPq) que estudam o desenvolvimento pulmonar, conseguiram realizar esta traqueo-oclusão em fetos de rato de 18 dias e meio. “O trabalho original foi iniciado nos EUA durante o pós-doc com ratos de 19 dias e meio e foi capa da American Journal of Physiology. Aqui, com dois alunos da medicina, estamos conseguindo o procedimento com 1 dia a menos”, observa Sbragia.

Gastrosquise – Outra linha de pesquisa, que na verdade motivou a criação do Laboratório Experimental, direciona-se à gastrosquise, defeito congênito onde a parede abdominal do bebê bem ao lado do umbigo não se fecha e o intestino nasce para fora. A incidência é de 1 para cada dois mil nascimentos; a mortalidade é de 10%, mas a morbidade é alta. Após o nascimento, o bebê deve ser operado para retornar o intestino para a cavidade abdominal. Porém, devido à exposição dos intestinos ao líquido amniótico ocorre inflamação das alças, o que leva a retardo dos movimentos intestinais. “Como eles evacuam a cada mamada, os bebês precisam ficar internados em média por 45 dias, com alto custo hospitalar e alto índice de complicações até o retorno das funções intestinais”, acrescenta.

O próprio professora se encarrega de estudar o processo inflamatório intestinal. Um aluno de doutorado, Willy França, pesquisa a parte neuronal do intestino acometido. Daniel Bittencourt, mestrando, busca o melhor tratamento intra-útero, avaliando o uso do corticosteróide, anti-inflamatório muito empregado em obstetrícia para maturar o pulmão do bebê. Em agosto, Roberto Teixeira defenderá tese de doutorado sobre o retardo do crescimento intrauterino na gastrosquise. “Em pesquisa no Brasil, temos que correr atrás. A corredora Zeferina Baudaia, que treinava descalça no meio do canavial e acabou ganhando a São Silvestre, é uma inspiração”, compara.

Legislação fetal – Lourenço Sbragia observa que no Brasil a legislação permite o aborto em casos de estupro, risco de vida materno elevado e em casos individualmente julgados na eventualidade de fetos sem esperança de vida, como por exemplo os anencéfalos ou fetos sem crânio. “Em países desenvolvidos, a lei diz que a mulher tem o direito supremo de decidir sobre o futuro da sua gravidez. Em nosso país, sem fazer qualquer juízo de valor, na gestação de uma criança com defeito congênito, que implicará em situação futura gravíssima para a criança, a família e a sociedade, as leis precisam ficar claras e o sistema de saúde deve estar preparado para amparar o feto malformado. Discussões éticas mais aprofundadas e novas legislações serão inevitáveis nos próximos anos, no que diz respeito à clonagem de embriões, implante de células tronco, bioengenharia de tecidos fetais, tratamentos invasivos fetais, direitos fetais, direitos maternos e amparo governamental em medicina fetal”, adverte.

Do ponto de vista político, Lourenço Sbragia defende a criação de centros de excelência regionais no país, como já ocorre no hemisfério norte. Afirma que enviou ao Ministério da Saúde projeto para a criação de um berçário com dez leitos de UTI no Centro de Atenção Integral à Saúde da Mulher (Caism) da Unicamp, o que garantiria o atendimento na região para os pacientes malformados com prognóstico e intervenções fetais. “Solicitamos 1,5 milhão de reais, quantia que garantiria a criação de uma estrutura para o atendimento especializado de alta complexidade, mas não obtivemos retorno. Precisamos amparar essa gente. Só queremos mandar essas crianças para a escola”.

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