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Artigo

Lula, Chagas e New York Times

RACHEL LEWINSOHN


Formada pela Faculdade Fluminense de Medicina, a professora Rachel Lewinsohn fez pós-graduação (dois mestrados, doutorado, pós-doutorado) nas universidades de Londres e Cambridge, Inglaterra. Desde 1982 pesquisou, lecionou e ministrou cursos de História da Medicina na FCM da Unicamp. Em março de 2003 foi lançado o seu livro Três Epidemias: Lições do Passado (Editora da Unicamp).  Aposentada, continua ativa como professora colaboradora voluntária da Unicamp. Ninguém ficaria espantado se a reportagem escandalosa sobre o suposto alcoolismo do presidente Lula aparecesse na “imprensa marrom”. Mas a publicação dessa matéria no augusto The New York Times foi uma surpresa desagradável, não só pela grosseria e o desrespeito a um chefe de Estado, mas também porque a reportagem provinha de um repórter de antecedentes (profissionais e políticos) duvidosos, e de fontes altamente suspeitas. O todo, chocante sobretudo pela conduta do editor do NYT, irredutível na sua arrogância, resultou em um jornalismo péssimo, oferecendo sensacionalismo ao invés de informação.

A minha reação, como a de todos, foi de choque – mas não de surpresa. Isto porque, há alguns meses, topei com um artigo que me abriu os olhos para a qualidade do jornalismo do NYT. Eu nunca imaginei que pudesse existir um jornalismo científico marrom; ora, depois de ler esse artigo e a sua “correção” (v.abaixo), não tenho mais dúvida: existe.

Em outubro de 2003, apareceu o meu artigo Prophet in his own country: Carlos Chagas and the Nobel Prize, em Perspectives in Biology and Medicine (Chicago-EUA). A publicação encerrou um ano e meio de colaboração produtiva e altamente gratificante com o editor-chefe da revista, Dr. Robert Perlman, médico e professor da Universidade de Chicago, que demonstrou grande sensibilidade e compreensão dos problemas do nosso país durante o preparo do meu texto para publicação. É claro que ficamos amigos. Foi ele quem me alertou em 18/11/03 para um artigo de D.G.McNeil Jr. sobre a doença de Chagas nos EUA, publicado naquele dia no NYT, cujo teor, estilo e implicações revelaram um jornalismo e uma atitude exatamente opostos aos do Dr. Perlman e de Perspectives. Eis alguns trechos (o todo não caberia neste espaço):

“Infecção rara ameaça contaminar sangue.

“Uma parasitose comum na América Latina ameaça os estoques de sangue dos EUA, dizem os peritos em saúde pública, muito preocupados porque não haverá teste para [detectá-la em] sangue doado, antes do próximo ano no mínimo. A infecção é a doença de Chagas, ainda rara neste país. Apenas 9 casos foram...transmitidos por transfusão ou transplante nos EUA e no Canadá nos últimos 20 anos. Mas centenas de receptores de sangue podem estar infectados silenciosamente...e não há tratamento eficaz para eles. Depois de uma década ou mais, 10 a 30% deles morrerão quando seus corações ou intestinos, enfraquecidos pela doença, explodirem (sic)... Ainda pouco conhecida nos EUA, é...uma das maiores ameaças aos estoques de sangue; mas é uma ameaça emergente...” (Itál.RL) (Seguem estatísticas do risco de contaminação por sangue transfundido, em Miami e Los Angeles, as mais recentes de 1998.)

“Atualmente o único método de sondagem é uma série de quesitos aos doadores de sangue: se provêm de ou visitaram um país onde a doença é endêmica, se já dormiram em choupana coberta de sapê...(a honestidade das respostas é fator de incerteza)... Desde 1989, apesar de várias recomendações à FDA-USA de que todo sangue doado fosse testado para Chagas, nenhum teste foi aprovado ainda. Em 2002 a FDA convidou indústrias diagnósticas a criar um teste...Mas não há pressão ou prazo...O teste da Abbott pode estar pronto em 2004...(Seguem mais estatísticas da incidência na América Latina [de precisão questionável—RL]). Cerca de 30 testes são aplicados em vários países,...nenhum aprovado pela FDA.

“A doença, descrita por Carlos Chagas em 1909, é causada pelo Trypanosoma cruzi, que infecta o homem de modo particularmente repugnante (sic). O barbeiro cai do teto de sapê, segue a trilha de dióxido de carbono até a boca do indivíduo adormecido, e suga seu sangue, depositando suas fezes cheias do parasita, que são introduzidas [na pele] quando a pessoa coça a picada...

“O fracasso da indústria do sangue...em desenvolver um teste, [embora] endossado pelo Comitê Consultivo de Produtos do Sangue em 1989, parece ser uma combinação de inércia burocrática e responsabilidade dividida... O Dr.Hira Nakhasi (FDA) concorda em que nem os bancos de sangue nem a FDA têm sido muito agressivos. As coisas se mexem quando ‘o público e a mídia exercem pressão’, disse ele.

“O interesse pela doença parece estar crescendo...porque os avanços na biogenética facilitam o ataque às doenças e porque o interesse da Fundação Bill e Melinda Gates pela saúde no Terceiro Mundo ‘coloca muitas doenças na tela do radar’ “.

Em 23/11/03, restrita ao espaço imposto pelo NYT, mandei a seguinte carta ao editor: “O seu artigo de 18/11/03 requer algumas correções. A cardiopatia chagásica mata por arritmia ou insuficiência cardíaca congestiva, não por explosão; as vítimas de megaesôfago não tratado, incapazes de engolir mesmo líquidos, morrem de caquexia. As pessoas dormindo nas casas cobertas de sapê são picadas pelo barbeiro onde quer que encontre a pele descoberta, muitas vezes perto do ôlho. Doença de Chagas transfusional, uma ameaça emergente nos EUA? Ela é conhecida como tal há mais de uma década, fato corroborado por uma literatura abundante (inclusive inúmeras publicações americanas). Existem muitos testes de sangue excelentes — no Brasil, ELISA, imunofluorescência e hemaglutinação passiva, entre outros, reduziram drasticamente o risco de utilizar o sangue de doadores contaminados. Conseguir a aprovação da FDA é problema político, não técnico. Mas fico feliz em saber que ... Bill Gates salvará o sangue estocado nos EUA.

Rachel Lewinsohn, MD, Ph.D. (Professora de Clínica Médica e Doenças Tropicais na Unicamp, Brasil. Autora do livro ‘Três Epidemias-Lições do Passado’, sobre doença de Chagas e outras epidemias; e de artigo sobre Carlos Chagas em Perspectives in Biology and Medicine, 2003, 46/4: 532-49).”

Não foi nenhuma surpresa que o NYT não tenha publicado a minha carta. Mas em 2/12/03 publicou “Correções”, sem mencionar nenhuma carta de leitor. Trechos:

“Um artigo no caderno Ciência (NYT 18/11/03) sobre...a rara infecção do sangue conhecida como doença de Chagas, incluiu um resumo impreciso da opinião do Dr.H. Nakhasi...(FDA),sobre a falta de um teste para detectar a doença no sangue;...ele não disse que a FDA e a indústria do sangue não foram muito agressivos na busca...

“O artigo e o gráfico também continham erros referentes às estimativas da Cruz Vermelha sobre o risco de contrair a doença de Chagas por transfusão de sangue. As estimativas – 1/9.000 em Miami, 1/5.400 em Los Angeles (1998) e 1/25.000 na nação como um todo– referiam-se ao risco que determinada doação de sangue contenha anticorpos contra a doença, e não ao risco desse sangue infectar o receptor. (A Cruz Vermelha afirma que alguns sangues com anticorpos não contêm T.cruzi, e que alguns parasitas não são infecciosos.)

“O gráfico também errou nas estimativas, oriundas do periódico ‘Transfusion’, das taxas de doações de sangue em Los Angeles com anticorpos contra a doença de Chagas. Os números eram 0,010% em 1996, 0,014% em 1997, e 0,018% em 1998, não 0,16%, 0% e 0,24% respectivamente. ...”

Tanto o artigo original quanto a “correção” são exemplos da pior espécie de jornalismo científico, enfatizado pela aparente transmissão de informações, quando seu objetivo real é a desinformação. O que acho mais ofensivo nisso tudo, é ser tomada por idiota. Você é editor do NYT e recebe a carta de um leitor que não concorda com o que escreveu? Eis o que deve fazer: fingindo corrigir inexatidões, de preferência de detalhes indiferentes, ignore qualquer comentário pertinente; nem mencione erros patentes ou afirmações absurdas. O quê, eu errei? Nem pensar. Jogue um monte de estatísticas desconexas na cara do público; burro que é (na opinião do NYT), vai certamente impressionar-se com a sua “documentação”. Que diferença faz para ele se o seu risco de contrair a doença de Chagas é 1/9.000 ou 1/25.000 ou 1/um milhão? Ou se há anticorpos ou cerveja em 0,018% de sangue doado? Note-se que as estatísticas do NYT são contraditórias e nada dizem sobre a verdadeira situação, descrita por muitos autores (inclusive americanos), enquanto a descrição da transmissão e evolução da doença é simplesmente ridícula. Como interpretar essa caricatura de jornalismo científico? Uma vantagem óbvia é a sutil indução de uma pressão popular em prol de medidas preventivas, à espera de lucros polpudos de qualquer droga ou novo teste de sangue. Vocês já imaginaram os milhões que se pode ganhar com o pânico de uma doença que faz explodir o sujeito “beijado” pelo barbeiro?

Óbvio também é o incentivo ao preconceito contra o latino-americano. Isso nos leva de volta ao início destes comentários, e à conduta do editor do NYT. Será que ele encontra certa dificuldade em perdoar ao presidente Lula por ter-se arrancado pelos próprios cabelos da lama das suas origens? Será que lhe dói lembrar-se da maioria esmagadora – quase 53 milhões de votos – que o elegeu, comparada à maneira algo diferente pela qual Bush conseguiu insinuar-se na Casa Branca? Ou será que incentivar este preconceito também tem seu lado lucrativo?


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