| Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição Temática 402 - 14 de julho a 2 de agosto de 2008
Leia nesta edição
Capa
Opinião
A receita do equilíbrio
Palha e bagaço
Uma meta a cumprir
Produtividade com baixo impacto
Terapia em construção
Adensar para manter o verde
Cientista não é biopirata
Muito além do ativismo
O futuro humano
Uma equação que não fecha
A corda e a caçamba
A chave do tamanho
Percepção pública da ciência
Amplo painel
Novas leituras do consumo
O espaço do indeterminado
O estranho íntimo
 


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A receita do equilíbrio

CLAYTON LEVY

A expansão das lavouras de cana-de-açúcar para atender à crescente demanda pelo etanol ainda não ameaça a produção de alimentos, mas a situação poderá se alterar caso o Brasil não adote uma política agrícola eficiente e de longo prazo. A análise é do reitor da Unicamp, José Tadeu Jorge, que no próximo dia 17 abordará o tema “Produção de Alimentos x Produção de Biocombustíveis”, em conferência que integra a programação da 60ª Reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Engenheiro de alimentos e professor titular da Faculdade de Engenharia Agrícola (Feagri), Tadeu Jorge traça dois cenários possíveis para o país. Se existir uma política agrícola que leve em conta os fundamentos do setor, o Brasil terá condições de conciliar a produção de alimentos e de biocombustíveis, o que garantirá o desenvolvimento do país e dividendos políticos no cenário internacional. Entretanto, se não houver um programa de Estado nesse sentido, o quadro poderá ficar caótico, com uma produção volumosa de biocombustíveis, mas também com carências internas muito acentuadas. Na entrevista que segue, o reitor também chama atenção para um tema que ainda não ocupa o centro dos debates, mas que todos os anos responde por perdas significativas: o desperdício de alimentos no percurso entre a lavoura e o consumidor.

O reitor José Tadeu Jorge: “É preciso ter uma política agrícola capaz de induzir a ocupação da área agricultável do país de maneira equilibrada” (Fotos: Antoninho Perri)Jornal da Unicamp – Em sua opinião, há relação direta entre a alta no preço dos alimentos e a produção de biocombustíveis?

Tadeu Jorge – Por enquanto, não. Mas poderá existir, caso o Brasil não implemente uma política agrícola eficiente. No momento, alguns fatores provam não haver relação direta entre uma coisa e outra. Uma das maiores altas nos últimos anos ocorreu no preço do trigo, mas não há nenhum milímetro de área de trigo que tenha sido afetada pelo aumento na produção de cana. Outro produto que subiu muito foi o arroz. Não houve avanço significativo da cana sobre essa cultura. Os dados preliminares apontam que a cana está avançando em áreas de pastagem. O único caso em que a produção de biocombustível afeta o preço e a disponibilidade de alimentos refere-se aos Estados Unidos, em função da decisão de destinar milho para a produção de álcool.

JU – Quais seriam, então, as causas da recente alta no preço dos alimentos?

Tadeu Jorge – Nos últimos anos o acesso das pessoas aos alimentos aumentou muito. Isso na China, na Índia e no próprio Brasil. A adequação da produção para atender ao aumento na demanda demora um certo tempo. A agricultura não apresenta reações imediatas. Não é como petróleo, que basta abrir ou fechar uma válvula para fornecer mais ou menos. Portanto, enquanto a agricultura não responde ao aumento na demanda, os preços vão subir porque é uma oportunidade de negócios para os produtores.

Entreposto da Ceasa-Campinas: danos geram desperdício e reduzem valor comercial dos alimentosJU – O senhor diz que, por enquanto, a produção de biocombustíveis a partir da cana, no Brasil, não representa uma ameaça porque ainda não ocupa o espaço de outras culturas. Mas quais são as garantias de que isso não venha a acontecer no futuro?

Tadeu Jorge – Nenhuma. E esse é o grande problema. Da maneira como a agricultura está estruturada no Brasil, a produção de alimentos ou biocombustíveis é pautada quase que exclusivamente pelo mercado. O agricultor decide plantar cana ou feijão por razões econômicas. Nenhum agricultor vai substituir uma cultura lucrativa por outra menos lucrativa. Hoje há uma competitividade entre a cultura de cana e várias outras culturas. A cana está avançando principalmente nas áreas de pastagem porque há pouca produtividade na criação de bovinos. Enquanto o Estado de São Paulo usa um hectare para um boi e meio, a média brasileira fica abaixo de um. Se a média brasileira se igualar à de São Paulo, podemos liberar uma área significativa de pastagem mantendo a mesma produção de carne. Isso significa que, se houver otimização, haverá espaço para as duas coisas. Como a carne é um item importante nas exportações brasileiras, nesse momento não interessa trocar uma coisa pela outra. Entretanto, num momento de dificuldade, isso poderá ocorrer. A questão mais importante dessa competição, porém, ocorre quando pensamos em outras culturas, como arroz, feijão e milho, que estão praticamente restritas ao mercado interno. Nesses casos, estamos mais perto de uma situação em que seria mais vantajoso produzir cana.

JU – Como evitar que isso ocorra?

Tadeu Jorge – Dotando o país de uma política agrícola capaz de induzir a ocupação da área agricultável do país de maneira equilibrada. O Brasil detém a maior área agricultável do mundo, entre 80 milhões e 100 milhões de hectares, ou seja, área que pode ser ainda destinada à agricultura. Há, portanto, um potencial enorme de crescimento. A ocupação dessas áreas não ocorre naturalmente, tem de ser induzida, seja para produção de cana ou de alimentos. Esse é o papel de uma política agrícola num mercado aberto. O governo tem de criar estímulos, como juros mais baixos, seguro rural mais em conta e providenciar a infra-estrutura adequada. Ou seja, instrumentos que estimulem o produtor a ampliar a área plantada. Além da expansão, também é importante a preservação de determinadas áreas. Uma ferramenta importante é o zoneamento agrícola, criando condições melhores em locais onde a agricultura tem maiores chances de se estabelecer de forma perene e com boa produtividade.

JU – Qual é a distribuição territorial e quais as condições das áreas agricultáveis que ainda não estão sendo aproveitadas?

Tadeu Jorge – O grande problema é a infra-estrutura. O Brasil não tem infra-estrutura adequada nem mesmo nas áreas já ocupadas. Menos ainda nas áreas que tem potencial mas não são aproveitadas. Sem que haja uma política indutora, a expansão na fronteira agrícola será muito lenta. Grandes empreendimentos podem dar certo porque estamos falando de projetos que têm viabilidade pela larga escala. Mas o modelo brasileiro para produção de alimentos está baseado em pequenas propriedades, que não têm condições e nem a responsabilidade de criar infra-estrutura. Esse é um papel do Estado. Para ocupar essas fronteiras agrícolas para a produção de alimentos, é indispensável uma política que ofereça suporte de infra-estrutura para que isso ocorra.

JU – O senhor diz que a solução passa pela implantação de uma política agrícola. Em sua opinião, o Brasil ainda não tem uma política agrícola?

Tadeu Jorge – Não tem. O Brasil sempre teve política econômica para agricultura. Claro que toda política agrícola deve contar com instrumentos econômicos, mas não adianta apenas ter bilhões de reais para financiar a próxima safra. Uma verdadeira política agrícola ataca os problemas inerentes à agricultura. Se o problema é secar feijão na propriedade rural, então o instrumento de uma política consiste em facilitar o acesso do produtor a equipamentos de secagem. Isso pode ser feito, por exemplo, oferecendo juros mais baixos aos agricultores que se comprometerem a usar parte do financiamento na montagem da infra-estrutura necessária ou criando um programa específico para dotar os produtores com essa infra-estrutura. Se o problema é armazenar, pode-se oferecer vantagens para os agricultores que investirem na montagem de silos. Não é simplesmente emprestar o dinheiro para financiar a produção. O financiamento deve ser um instrumento para atacar as questões centrais da agricultura. Ao lado disso, são necessários programas que corrijam vários aspectos, como por exemplo a questão das embalagens adequadas para transporte e comercialização.

JU – A inadequação das embalagens gera perdas significativas?

Tadeu Jorge – As perdas são significativas tanto no aspecto quantitativo quanto qualitativo. Nos produtos perecíveis, como hortaliças, as perdas podem chegar a 50%. Isso significa que metade da produção fica pelo caminho e não chega à boca do consumidor. Na cultura de verduras, por exemplo, se não forem empregadas técnicas adequadas de colheita, haverá perdas. O resfriamento do produto é etapa essencial para preservar a qualidade. Se a embalagem não for adequada, ao transportar o produto para o ponto de venda, também haverá prejuízo. E se o produto consegue chegar ao ponto de comercialização, dificilmente escapa da manipulação do consumidor, que tem o hábito de apalpar os alimentos. Claro que alguma perda ocorrerá naturalmente. O que chamo de desperdício são as perdas que acontecem mesmo quando há tecnologia disponível para evitá-las, ou por deficiência na infra-estrutura de transporte, como estradas mal-conservadas. Isso é muito visível nas centrais de abastecimento, onde toneladas de alimentos são literalmente varridas todos os dias. Não que tudo esteja estragado, mas os danos ocorridos reduzem o seu valor comercial, já que o consumidor não leva alimentos com aparência duvidosa.

JU – Voltando à questão de uma política agrícola, o senhor acha que o subsídio governamental seria uma alternativa adequada?

Tadeu Jorge – Quando você quer implantar um programa, se ele é muito importante para o conjunto da política, não vejo nenhum problema em usar subsídio. Subsídio virou palavrão no Brasil. Nos países europeus passa de 50% do valor da produção e aqui não passa de 5%. O subsídio, por si só, não é ruim. Depende da sua aplicação. Se há um programa a ser implantado e uma meta a ser atingida, não há razão para descartar o subsídio nesse programa específico, até atingir a meta pretendida. O subsídio não deve ser perenizado, mas pode ser um instrumento para induzir ações. Se há necessidade de aumentar a produção de determinada cultura para garantir alimento à população, não há razão que justifique a exclusão de uma política subsidiada para alcançar esse objetivo. Não faria sentido, por exemplo, subsidiar hoje a produção de soja, que está em expansão e tem mercado. Entretanto, talvez seja interessante subsidiar o trigo, produto que o Brasil ainda importa em quantidades significativas. Em vez de gastar com importação, é melhor gastar com subsídio. Com isso, podemos reduzir as importações, gerar empregos e ter trigo mais barato para o consumidor.

JU – Levando em conta todos aspectos que caracterizam a agricultura brasileira, em sua opinião, quais os cenários possíveis no longo prazo?

Tadeu Jorge – Se existir uma política agrícola, o Brasil terá uma oportunidade rara de se colocar entre os países desenvolvidos. Trata-se de uma chance imperdível. O país tem todas as condições de conciliar produção de alimentos com biocombustíveis. Mas é necessário uma política que garanta esse equilíbrio. Se isso acontecer, o Brasil desfrutará de uma força política considerável porque contará, ao mesmo tempo, com uma importante fonte de energia e um grande potencial de alimentos. Isso não é banal. Entretanto, se não houver uma política agrícola eficiente, o quadro será caótico. Poderemos alcançar grande produção de biocombustíveis, mas teremos de conviver com carências internas muito fortes. Nesse caso, a receita gerada com os biocombustíveis teria de ser usada para comprar alimentos, o que aprofundaria o nosso grau de dependência.

JU – O que está faltando para que essa política seja implementada?

Tadeu Jorge – O Brasil tem boas chances de chegar a essa política. Meu receio é que predominem aspectos políticos em detrimento dos interesses nacionais. Não se trata apenas de vontade política, mas também de respaldo político. O país deve tratar essa questão como uma política de Estado no médio e longo prazo. Os resultados não serão imediatos.

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