| Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição Temática 402 - 14 de julho a 2 de agosto de 2008
Leia nesta edição
Capa
Opinião
A receita do equilíbrio
Palha e bagaço
Uma meta a cumprir
Produtividade com baixo impacto
Terapia em construção
Adensar para manter o verde
Cientista não é biopirata
Muito além do ativismo
O futuro humano
Uma equação que não fecha
A corda e a caçamba
A chave do tamanho
Percepção pública da ciência
Amplo painel
Novas leituras do consumo
O espaço do indeterminado
O estranho íntimo
 


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O estranho íntimo

MANUEL ALVES FILHO

Peter Schulz , professor do IFGW: físico defende um diálogo mais aberto e transparente com a sociedade (Foto: Antoninho Perri)O norte-americano Richard Feynman, ganhador do Nobel de Física de 1965, provocou ceticismo na platéia quando antecipou, durante conferência apresentada em dezembro de 1959, que a ciência seria capaz de manipular e arranjar os átomos como se fossem os tijolos que compõem uma parede. Os espectadores jamais poderiam imaginar que a palestra, apresentada por ocasião de um encontro da Sociedade Americana de Física, seria considerada, anos depois, como fundadora das bases para o desenvolvimento da nanociência e da nanotecnologia. Atualmente, os dois termos foram fundidos, dando origem a um terceiro, a nanotecnociência. Graças aos conhecimentos gerados e aplicados por essa área, as pessoas já podem se beneficiar de medicamentos ditos “inteligentes”, roupas que não mancham e equipamentos eletrônicos miniaturizados, apenas para citar três exemplos. E o que é melhor: isso tudo promete ser apenas uma pequena representação diante do que a nanotecnociência ainda pode proporcionar.

Na mesma conferência, Feynman previu que, no futuro, os 24 volumes da Enciclopédia Britânica seriam inscritos na cabeça de um alfinete. O pressuposto evidentemente não fazia parte de um objetivo prático, mas sim simbólico. Entretanto, decorrido quase meio século, cientistas israelenses anunciaram, em 2007, ter gravado os textos do Velho Testamento sobre uma superfície de 0,5 milímetro quadrado de silício, coberta por uma camada de ouro de 20 nanômetros. “Ainda não se trata da Enciclopédia Britânica, mas estamos praticamente lá”, avalia Peter Alexander Bleinroth Schulz , professor do Instituto de Física Gleb Wataghin (IFGW) da Unicamp.

De acordo com ele, embora a maioria da população ainda não tenha percebido, os produtos gerados pela nanotecnociência já estão incorporados ao seu dia-a-dia. “Isso acontece, penso eu, por dois motivos. Primeiro, por tratar-se de um assunto pouco debatido fora da academia e da indústria. Segundo, porque a educação científica ainda é incipiente na sociedade como um todo. Na tarefa de tornar esse tema mais familiar às pessoas, o jornalismo científico tem um papel fundamental”, considera. Nas palavras do professor Peter Schulz, a conjugação desses fatores faz com que a nanotecnociência seja um “estranho íntimo” das pessoas. Mas afinal, o que vem a ser essa nova área do conhecimento? O docente da Unicamp explica que o termo nanotecnociência foi cunhado recentemente, em razão de os pesquisadores entenderem que nesse segmento não é possível dissociar ciência e tecnologia.

Representação mostra densidade eletrônica em uma superfície com desordem programada, em cálculo realizado por Rodrigo André Caetano durante seu doutorado no IFGW Ademais, prossegue ele, determinados avanços da ciência fundamental somente foram possíveis em razão dos progressos tecnológicos e vice-versa. “Percebemos que é muito difícil distinguir um aspecto do outro. A ciência nem sempre cumpre uma seqüência linear, que parte da pesquisa básica, passa pelo desenvolvimento tecnológico e culmina com o produto”.  Peter Schulz assinala que a nanotecnociência é uma atividade essencialmente multidisciplinar. Quase que invariavelmente, os estudos exigem a participação de especialistas de diversas áreas, que vão da física à biologia, passando pela química. Dito de maneira simplificada, o objeto de estudo da nanotecnociência é o átomo, que constitui a menor parte de qualquer matéria.

O prefixo “nano”, do grego, significa “anão”. A partícula vem sendo emprestada pelos cientistas para designar unidades de medida. Um nanômetro, por exemplo, corresponde a um bilionésimo do metro. Apenas para dar um exemplo do que isso representa, um nanômetro é o comprimento de dez átomos de hidrogênio enfileirados ou a distância de três pares de base do DNA humano. Para usar uma frase que já se tornou corrente no universo da nanotecnociência, o que os pesquisadores fazem é trabalhar com escalas extremamente pequenas para alcançar grandes resultados. Na opinião de Peter Schulz, por ser uma área relativamente nova, a nanotecnociência ainda oferece muitas possibilidades. Num horizonte mais próximo, considera, deverão surgir novos medicamentos “inteligentes”. Estes devem incorporar ainda mais fortemente o que os especialistas denominam de Drug Delivery Systems (DDS). Uma vez administrada no organismo, a droga vai ser “entregue” exatamente no local onde deve atuar, como nas células cancerígenas. Nesse caso, o princípio ativo normalmente é encapsulado em nanopartículas que cumprem a função de transportá-lo. “Também deveremos ter novidades na área da eletrônica. O limite é fazer com que um bit de informação seja equivalente a um átomo”, antecipa o docente da Unicamp.

Embora revele otimismo em relação às possibilidades abertas pelas pesquisas em nanotecnociência, Peter Schulz também considera ser recomendável ter cautela e responsabilidade no que toca a alguns aspectos. De acordo com ele, um cuidado indispensável, sobretudo por parte da comunidade científica, é não criar falsas expectativas na população. Para evitar que isso ocorra, o físico defende um diálogo mais aberto e transparente com a sociedade. “Penso que é preciso informar as pessoas, em linguagem acessível, sobre o estágio dos estudos e as reais possibilidades de sua aplicação. Temos que evitar o que aconteceu, por exemplo, quando do início do Projeto Genoma Humano. À época, as pessoas foram levadas a acreditar que, uma vez decodificado o genoma, a cura para todos os males e mais alguns estaria no horizonte de alguns anos. Como sabemos, isso não está acontecendo”.

Outra preocupação do docente da Unicamp está relacionada com as eventuais conseqüências ocasionadas pelos produtos e processos gerados pela nanotecnociência. Esse ponto, adverte, tem sido pouco estudado pela ciência. “Os recursos e esforços para se verificar se existem efeitos colaterais, para checar se determinada tecnologia pode ou não ser poluidora, não são tão amplos quanto deveriam ser”, constata. Um episódio recente ilustra bem esse problema. Uma empresa fabricante de equipamentos eletroeletrônicos produziu uma linha de refrigeradores, lavadoras de roupa e condicionadores de ar que utiliza uma tecnologia batizada de Silver Nano. Dito de modo simplificado, os filtros dos aparelhos são impregnados de nanopartículas de prata, material que tem elevada propriedade bactericida.

Ocorre, entretanto, que após o lançamento dos produtos, que foi precedido de intensa campanha publicitária, alguns setores começaram a levantar a hipótese de que, após serem lançadas ao meio ambiente, as nanopartículas de prata pudessem matar também microorganismos benéficos. “Isso levou os Estados Unidos a propor leis específicas para o uso dessa tecnologia, o que teve influência no marketing criado em torno dessa linha de eletrodomésticos”, informa Peter Schulz. De acordo com ele, esse episódio é emblemático do ponto de vista da responsabilidade do cientista em relação às implicações do seu trabalho. “Não podemos perder a perspectiva de que a pesquisa científica envolve a ética e a opinião pública”.

O físico revela gostar muito de uma frase da socióloga espanhola Amparo Lasen, que estuda os fenômenos relacionados à comunicação por meio da telefonia e internet. Segundo ela, “toda grande mudança tecnológica é um conjunto de embates e negociações entre as partes interessadas”. Ou seja, a aplicação do conhecimento científico também é permeada por uma série de interesses, situação que nem sempre é transmitida à sociedade. “Considero interessante a idéia de que o cientista tenha uma responsabilidade que vá além do laboratório. Penso que tal postura não representa qualquer entrave ao desenvolvimento científico. Ao contrário, é bastante útil a ele. A ciência precisa perder um pouco da sua pretensa neutralidade”, avalia.

Atualmente, Peter Schulz desenvolve estudos relacionados com simulações numéricas, cujo objetivo é desvendar as propriedades de dois sistemas, ambos candidatos a uma possível nanoeletrônica. Num deles, o pesquisador investiga os atributos eletrônicos das moléculas da DNA. “Como o DNA tem a capacidade de se auto-arranjar, a pergunta que estamos tentando responder é: o que será que acontecerá se programarmos uma seqüência artificial de guanina, citosina etc? Essas bases nitrogenadas vão se transformar em condutores ou isolantes? E mais: será que se eu inserir uma partícula de ouro, esse sistema vai se transformar num dispositivo eletrônico?”.

O outro estudo conduzido pelo docente da Unicamp relaciona-se com um novo material, o grafeno, uma espécie de folha de dimensões nanoscópicas composta apenas por átomos de carbono, com propriedades eletrônicas extremamente promissoras. “Estamos tentando compreender melhor essas características. Numa segunda etapa, vamos tentar manipular esse material em escala nanométrica. O objetivo final é empregá-lo na eletrônica, em substituição, por exemplo, ao silício usado na fabricação de chips de computadores”, detalha o cientista.

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