Do fado de Mizia 
                            à desinvenção de Camões
                          EDGAR 
                            DE DECCA
                          
                             
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                                Casario do Bairro Alto e faixa da Câmara 
                                Municipal de Lisboa mostra roupas dependuradas 
                                nas janelas: símbolo do patrimônio 
                                histórico da capital portuguesa  | 
                            
                          
                          Há 
                            ventos novos no fado português. Trata-se da 
                            cantora Mizia, cujos CDs não sei se já 
                            podem ser encontrados no Brasil. Canta de modo despojado 
                            e aproxima-se do fado tradicional, sem ser antiquada. 
                            Mizia canta com sensibilidade e muita graça. 
                            Não recorta os versos com melancolia exagerada. 
                            Apenas interpreta-os com uma dor contida, quase imperceptível. 
                            Não há exagero na sua voz e o som acústico 
                            do violão ou do piano que a acompanha é 
                            surpreendentemente próximo do blues americano 
                            de alma negra. 
                          
                          De certa forma faz muito sentido. 
                            Ambas as vertentes musicais originaram-se da cultura 
                            negra. O fado, segundo os seus próprios historiadores, 
                            nasceu do lundu afro-brasileiro e se transportou para 
                            Portugal com a volta das cortes de D. João 
                            VI para casa. Assim também reconhecemos a trajetória 
                            do blues, que nasceu nos campos de algodão 
                            dos escravos do sul dos Estados Unidos e aos poucos 
                            se urbanizou. Duas tradições com o mesmo 
                            fundo comum, isto é, a cultura negra transplantada 
                            da África para a América. Na própria 
                            língua portuguesa, lundu é sinônimo 
                            de amuo, quer dizer, mau humor, enfado, traduzido 
                            no aspecto, nos gestos ou no silêncio; arrufo, 
                            calundu. 
                          
                          A melancolia aproxima o canto do 
                            blues com o do fado e estas novas cantoras portuguesas 
                            estão fazendo uma releitura, abrindo novos 
                            significados. Esta releitura não deixa de ter 
                            um significado político e cultural muito interessante, 
                            porque o fado, como símbolo nacional, até 
                            muito recentemente esteve associado ao Estado Novo 
                            salazarista. (Re)traduzi-lo em uma outra linguagem 
                            não deixa de ser um modo de reinventar o território 
                            de suas origens no leito de uma longínqua cultura 
                            africana que deitou raízes no Brasil. Além 
                            disso, em seu modo de cantar, Mizia faz do fado um 
                            parceiro do blues negro americano em seus traços 
                            de tristeza e melancolia. A sua interpretação 
                            do clássico de Amália Rodrigues, Lágrima, 
                            é simplesmente inesquecível, principalmente 
                            nos versos: Se eu soubesse, se eu soubessse 
                            que morrendo, tu me havias, tu me havias de chorar, 
                            por uma lágrima tua, que alegria, me deixaria 
                            matar. Mizia, em seu exílio voluntário, 
                            assim como outras figuras da cultura portuguesa, como 
                            Eduardo Lourenço, lança a sua voz desde 
                            uma França distante.
                          *****************************
                          Por sinal, Eduardo 
                            Lourenço tem sido uma boa companhia aqui em 
                            Portugal. Ajuda-me a decifrar os signos e os símbolos 
                            polissêmicos desta cultura. No domingo passado 
                            fui visitar o Mosteiro dos Jerônimos, obra magnífica 
                            da arquitetura manuelina, muito associada aos descobrimentos 
                            portugueses. Próximo ao mosteiro estão 
                            o famoso monumento dos descobrimentos e a Torre de 
                            Belém. Neste mosteiro manuelino há uma 
                            mistura da arquitetura gótica com a renascentista, 
                            como que a reafirmar a fusão da dimensão 
                            laica e humanista com o sagrado, do Estado com a Igreja. 
                            Foi um cenário importantíssimo da época 
                            em que Portugal se projetou para o mundo e, recentemente, 
                            foi simbolicamente escolhido para a assinatura do 
                            acordo de adesão de Portugal à Comunidade 
                            Européia. 
                          
                          No mosteiro estão 
                            os túmulos de dois grandes personagens da literatura 
                            portuguesa, Fernando Pessoa e Alexandre Herculano. 
                            Não vou falar aqui do segundo, mas foi ele 
                            quem construiu o edifício da moderna historiografia 
                            portuguesa de cunho liberal e anticlerical, reescrevendo 
                            de modo polêmico Uma História da Inquisição 
                            em Portugal, obra que lhe custou sérios embates 
                            com a Igreja católica nos meados do século 
                            19. Mas, antes, gostaria de me referir a este poeta 
                            de heterônimos, Fernando Pessoa. Em seu túmulo, 
                            estão gravados os versos mais emblemáticos 
                            que li sobre o modo como a cultura portuguesa deveria 
                            lidar com a sua identidade. Dizem assim: Para 
                            ser grande, sê inteiro: nada teu exagera ou 
                            exclui. Sê todo em cada coisa. Põe quanto 
                            és no mínimo que fazes. Assim, em cada 
                            lago a lua toda brilha, porque alta vive (ass. 
                            Ricardo Reis). 
                          
                          Destes versos se projetam 
                            as angústias de uma cultura que sempre se vê 
                            maior do que é, mas ao mesmo tempo acredita 
                            que o outro lhe veja menor do que ela, realmente, 
                            existe. Por um lado o excesso, a expansão de 
                            si, as viagens, o mito dos descobrimentos; por outro, 
                            o medo de um olhar exterior que o veja diminuído 
                            e decaído. Uma estranha dialética da 
                            grandeza e da miséria. Nunca viver na medida 
                            certa, nunca estar por inteiro, mesmo que alma seja 
                            pequena. Mas pensando bem, este traço tão 
                            português não seria característico 
                            de todas as culturas e de todos os homens e mulheres 
                            em sua fase adulta, quando começam a olhar 
                            o seu passado? Não existiria sempre um desajuste 
                            de medidas entre o olhar interior e o olhar exterior. 
                            Não seria esta desproporção entre 
                            o de dentro e o de fora o que explicaria o mal-estar 
                            de todas as culturas que procuram a sua própria 
                            identidade? Não é por acaso que os versos 
                            de Pessoa foram gravados em um dos monumentos representativos 
                            do passado glorioso de Portugal.
                          *****************************
                          
                          
                             
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                              |  
                                Mosteiro dos Jerônimos, local escolhido 
                                simbolicamente para a assinatura do acordo de 
                                adesão de Portugal à Comunidade 
                                Européia | 
                            
                          
                          Preparem-se. O verão português 
                            de 2004 vai ser quentíssimo. Excitação 
                            e emoção à fartura. Rockn 
                            Rio-Lisboa e Eurocopa 2004. Futebol e rockn 
                            roll. Estas novas logomarcas são 
                            os sinais de um enorme empenho empresarial, político 
                            e cultural de integração de Portugal 
                            na Europa. Aproveitando-se inclusive da sua condição 
                            de zona de fronteira entre a Europa e a América, 
                            a logomarca brasileira do rock também 
                            vai estar aqui presente. Deixando a saudade para trás, 
                            os portugueses reelaboram os símbolos mais 
                            fortes do antigo salazarismo. Eram, então, 
                            conhecidos como os Três Fs, Fátima, 
                            Fado e Futebol.
                          
                          Do fado eu já fiz o comentário. 
                            As suas novas interpretações o aproximam 
                            do mundo das culturas populares transatlânticas, 
                            que se criaram na grande diáspora negra do 
                            período da escravidão. O mesmo acontece 
                            com o futebol. Ao invés de um jargão 
                            excessivamente nacionalista, a Eurocopa traz o símbolo 
                            da integração das diferentes culturas 
                            do continente. Apenas nos últimos três 
                            meses foram inaugurados três estádios 
                            de futebol magníficos. Dois em Lisboa; o terceiro 
                            foi inaugurado na semana passada na cidade do Porto. 
                            Dizem os comentaristas de futebol de plantão, 
                            com todas as rivalidades futebolísticas postas 
                            de lado, que o estádio do Futebol Clube do 
                            Porto supera o do Benfica e o do Sporting de Lisboa. 
                            Juro que eu irei conhecê-lo ainda antes de voltar 
                            para o Brasil. As expectativas são imensas 
                            e até a Igreja católica já se 
                            manifestou, preocupada com o provável esvaziamento 
                            das missas durante estes eventos. Só está 
                            faltando a releitura de virgem de Fátima. Quem 
                            sabe ela não reapareça para os jovens, 
                            vestida com os trajes de Like a Virgin, de Madonna...
                          *****************************
                          
                          Agora, uma nota que me deixou decepcionado 
                            e outra muito gratificante. Lembrei-me, ultimamente, 
                            das aulas de português no Colégio Culto 
                            à Ciência de Campinas. Dos tempos em 
                            que aprendíamos fazer a análise sintática 
                            dos versos de Camões. Pois é, para o 
                            pessoal da teoria literária esta notícia 
                            pode não ser nova, mas para mim foi uma surpresa. 
                            Como todo o grande personagem histórico, Camões 
                            também tem uma origem meio nebulosa, mas na 
                            memória de um de seus poemas mais conhecidos, 
                            alimentamos a idéia de que no dia de seu nascimento, 
                            houve um eclipse do sol, que deixou às escuras 
                            a sua terra natal. 
                          
                          Lembram-se dos versos: o dia 
                            em que eu nasci moura e pereça/ não 
                            o queira jamais o tempo dar/ não torne mais 
                            ao mundo, e, se tornar/ eclipse nesse paço 
                            o sol padeça...Ó gente temerosa não 
                            te espantes/ que este dia deitou ao mundo a vida/ 
                            mais desgraçada que jamais se viu? Pois 
                            é, descobriram recentemente que estes versos 
                            não foram escritos pelo poeta. Mais uma tradição 
                            recentemente (des)inventada. Os versos seriam de autoria 
                            de alguém empenhado em encenar o imaginário 
                            dos descobrimentos, quem sabe em que época 
                            e em que lugar do passado. Mas a (des)invenção 
                            de Camões não pára por aqui. 
                            Voltarei ao assunto na semana que vem, pois descobri, 
                            em minhas últimas pesquisas, que o projeto 
                            dos Lusíadas também já tinha 
                            sido esboçado por ninguém menos do que 
                            um escritor italiano. Outra vez se aproximam Portugal 
                            e Itália na época dos descobrimentos. 
                            Obrigado, meu caro Sergio Buarque! 
                          
                          Mas antes de terminar dou-lhes a 
                            notícia de que na próxima quinta-feira 
                            estarei na livraria Ler Devagar, do Bairro Alto, para 
                            discutir o livro Rebeldes Primitivos, de Eric Hobsbawm. 
                            Não poderia haver lugar mais apropriado para 
                            esta exposição. O bairro é tradicionalíssimo 
                            e repleto de símbolos do imaginário 
                            popular. Tanto é verdade, que passeando por 
                            suas ruas estreitas no final de uma tarde de domingo, 
                            me veio à memória os versos de Orestes 
                            Barbosa, que recita um passado de forte tradição 
                            popular portuguesa, ainda vivo nos barracos do Rio 
                            de Janeiro: nossas roupas comuns dependuradas, 
                            tal qual bandeiras agitadas, pareciam um estranho 
                            festival. Acreditem, as roupas dependuradas 
                            nas janelas das casas são o símbolo 
                            do patrimônio histórico de Lisboa na 
                            recuperação dos bairros tradicionais 
                            da cidade.
                          
                          ________________________________________________
                            Historiador e professor do IFCH, Edgar Salvadori de 
                            Decca assumiu a cátedra Brasil-Portugal em 
                            Ciências Sociais no Instituto Superior de Ciências 
                            do Trabalho e da Empresa (ISCTE), em Lisboa, em convênio 
                            firmado entre essa instituição e a Unicamp. 
                            A convite do Jornal da Unicamp, De Decca aceitou o 
                            desafio de escrever semanalmente um relato de sua 
                            permanência na capital portuguesa.