| Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 393 - 21 de abril a 4 de maio de 2008
Leia nesta edição
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Livro da semana
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O futuro do sensível
Poesia reunida
 


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Vogt
Entre o torno e a limalha

CLAYTON LEVY

O poeta e professor Carlos Vogt, que acaba de lançar o livro Poesia Reunida: "Uma das características do pós-modernismo é a indigência simbólica" (Foto: Antônio Scarpinetti)Mantém sempre por perto um pedaço de papel e uma caneta. Não quer ser pego de surpresa pela inspiração, que não escolhe hora nem lugar e quase sempre vai embora com a mesma rapidez com que chegou. Isso ele aprendeu desde a adolescência, quando começou a pôr no papel os primeiros poemas. Desde então, a poesia tornou-se uma espécie de avenida principal, por onde circula não apenas o poeta, mas também o lingüista, o professor, o administrador e o gestor de políticas públicas, todos reunidos numa só e a mesma pessoa, que atende pelo nome de Carlos Vogt. Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta, ele brinca, repetindo Mário de Andrade. Na última quinta-feira, o polivalente Vogt lançou em São Paulo o livro Poesia Reunida, trabalho que contém os seis títulos publicados anteriormente, incluindo os poemas inéditos de Pisca-alerta. Secretário do Ensino Superior do Estado de S. Paulo, ex-presidente da Fapesp e ex-reitor da Unicamp, Vogt integra a chamada “Geração 60”. Além dos poemas inéditos e de Cantogragia, Poesia Reunida é composta dos volumes Paisagem doméstica (1984), Geração (1985), Metalurgia (1991), Mascarada (1997) e Ilhas Brasil (2002). Professor titular em semântica lingüística da Unicamp desde 1969, Vogt também é coordenador do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor), na mesma universidade, e diretor de redação das revistas Ciência & Cultura, Inovação Uniemp e ComCiência. Na entrevista que segue, porém, ele deixa de lado a formalidade do gestor, a técnica do lingüista e o didatismo do professor. Como o assunto é poesia, fala o poeta.

Jornal da Unicamp – São poucos os poetas que chegam ao patamar de publicar sua poesia reunida. No seu caso, isso é um ápice ou um recomeço?

Carlos Vogt – Eu sempre tenho como referência a obra Confissões (Ed. Globo), de Somerset Maugham, para a qual fiz o prefácio da versão em português. Quando publicou o livro, em 1938, o autor tinha mais de 60 anos. Ele considerava que aquele era o momento de fazer o balanço de sua trajetória literária, imaginando que havia chegado ao seu ponto máximo. Ele continuou produzindo e morreu com mais de 90 anos. Então, o ato de reunir também é uma maneira de organizar a obra. No meu caso, significa mais que isso: além de reunir, aponta para a continuidade da obra, na medida em que o livro traz poemas inéditos. Com os inéditos, o livro está dizendo: “vem mais por aí”.

JU – No prefácio de Poesias Reunidas, o crítico Alcir Pécora diz que a sua poesia abriga uma dupla vertente: a epigramática e a discursiva. Em sua opinião, estas duas vertentes são dicotômicas ou complementares?

Vogt – Na verdade, o prefácio diz que estas duas vertentes coabitam o mesmo espaço sem se maltratarem. Penso que se trata das duas faces de um mesmo processo. Explicitei isso poeticamente no livro Metalurgia (1991), com o poema que dá título ao livro, em que a imagem da construção da minha poesia toma os dois aspectos. A imagem do artesão que burila a forma para torná-la enxuta, mas que não despreza tudo aquilo que sobra nesse processo de tornear a palavra, e que vai caindo no chão feito limalha. Depois, ele recolhe e faz disso um poema mais caudaloso, discursivo. José Paulo Paes, na orelha do Metalurgia, capta bem essa tensão entre o poema longo e o poema curto. As diferenças consistem no fato de que o poema longo faz incursões sobre o aspecto mais sentimental, que retoma uma trajetória mais autobiográfica, enquanto os poemas curtos, ao contrário, têm muito presente o aspecto mais reflexivo sobre as circunstâncias.

JU – O que define essas duas vertentes no seu processo de criação poética?

Vogt – O poema epigramático, que foi bastante pratiado pelos modernistas, tem como objetivo uma síntese tal, como se o autor sofresse da vertigem da verticalidade. Você se concentra nessa forma mínima e essa forma mínima tem de conter todas as relações e associações. Como são poemas muito econômicos, o título passa a ser parte do poema sob vários aspectos. Ao mesmo tempo em que integra o poema, ele é estranho ao poema. No caso da poesia política, por exemplo, o poema epigramático, embora contenha os temas políticos, não sobe no palanque, não faz proselitismo poético para convencimento político. É uma poesia de reflexão e crítica, e a relação com os títulos é fundamental para fazer esse jogo. Nos poemas longos, ocorre a relação da poesia com os universos literários em que a minha poesia se produz. Você vai falando com estes livros, numa espécie de hipertexto presente na poesia. Tudo isso está escrito num rio navegado, que é a história de vida pessoal.

JU – Além da obra poética, o senhor é originariamente um lingüista. Como é a convivência da lingüística com a poesia?

Vogt – Na verdade, a lingüística é a profissão que escolhi. Tem a ver com a mesma atração que tenho pela linguagem. O interesse pela compreensão da estrutura das línguas, pelos sistemas de representação, de formação dos conceitos. Isso sempre me interessou. O exercício da poesia é anterior ao da lingüística. Já na adolescência fazia lá os meus versos, comecei a ensaiar traduções em francês e inglês, que eram ruins, mas mostravam um certo interesse. Desde cedo, porém, a poesia se pôs como uma profissão também inseparável de minhas opções pessoais. As duas coisas estão muito juntas. Isso é positivo, mas às vezes pode parecer negativo, porque haveria a tendência de transferir para a poesia a tecnicidade do lingüista, o que poderia soar artificial do ponto de vista da poesia. Não que a poesia não tenha técnica. Tem, e muito. A questão é que esta técnica não pode estar acima da expressão capaz de constituir-se no lugar que o leitor freqüenta e nele se sente à vontade para reconhecer experiências que não tenha tido.

JU – Há uma outra questão relacionada a esse aspecto. O senhor desenvolveu uma carreira de poeta e ao mesmo tempo se consolidou como gestor. Como é a convivência do poeta com o administrador?

Vogt – Mário de Andrade, no poema Eu Sou Trezentos, diz: Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta. Penso que esta questão está ligada a uma tendência de querer multiplicar personas na minha existência, sabendo, como todo mundo, que a vida é breve. Então, o quanto você puder tentar multiplicar-se em experiências e atividades, mais você terá a ilusão de ter vivido mais intensa e verticalmente. Isso tem a ver com o fato de ter desempenhando atividades que poderiam parecer incompatíveis, mas com as quais eu tenho o prazer de conviver, como a de professor, educador, orientador, crítico, leitor, gestor, administrador, poeta... Então, se não sou trezentos ou trezentos e cinqüenta, tento pelo menos ser uma meia dúzia (risos). Mesmo porque, essa coisa de que o poeta vive nas nuvens não faz nenhum sentido. A sua relação com a vida, com as coisas do cotidiano, é um elemento fundamental, entre outras coisas, para a própria construção da poesia.

JU – Segundo os comentadores da sua obra ela é ao mesmo tempo inovadora, sem deixar de se inserir na série histórica da poesia brasileira. Na sua opinião, em que linhagem a sua poesia se entronca?

Vogt – É difícil fazer uma análise pessoal. Penso que, do ponto de vista da poesia de expressão portuguesa, a minha poesia tem uma relação forte com a tradição clássica e mesmo medieval. Ela tem um torneado muitas vezes clássico na sintaxe. Isso traz certamente marcas da poesia de Camões e alguns portugueses românticos, como Almeida Garret. No Brasil, passa pelos românticos sem dúvida, porque foram os poetas com os quais convivi na adolescência. Gonçalves Dias, Casemiro de Abreu, Álvares de Azevedo. Pelos simbolistas, como Cruz e Souza, Alfonsus de Guimarães. E, depois, pelos modernistas, como Mário de Andrade, Carlos Drummond, Oswald de Andrade. Mas, é também uma poesia marcada pela geração de 1945, pelas experiências construtivistas de João Cabral de Melo Neto, e em parte – e por estranho que possa parecer – com a poesia de Ferreira Gullar, sobretudo do Poema Sujo. Sem nunca ter sido programático, sempre convivi com essa vertigem da verticalidade, que tem muito a ver com a busca da poesia visual, com a construção do espaço poético, embora seja uma poesia extremamente marcada e envolvida com a questão do tempo.

JU – Ao contrário do que ocorria no passado, hoje a poesia segue um curso subterrâneo. Na sua opinião, é possível ter uma visão de conjunto da poesia no Brasil atualmente?

Vogt – Acho que sim. Há tendências geracionais – não sei se o termo é adequado. Penso que é possível identificar grandes tendências e, dentro delas, figuras que sobressaem. Ao mesmo tempo, um conjunto de poetas que atuam dentro de uma atividade de manutenção da qualidade e da produção poética. Cronologicamente, pertenci à geração dos anos 60, que é uma geração marcada por diversas influências, tanto de poetas brasileiros como estrangeiros, que permitem identificar tendências interessantes. Na década de 70 também há movimentos que vão se sucedendo, como o da Poesia Marginal, que teve grande importância no Brasil como fenômeno cultural e depois como realização poética. Então, penso que é possível identificar grandes linhas. É claro que as coisas vão se sucedendo numa velocidade que já não é a mesma de antes. No meio disso tudo, não é simples identificar as grandes narrativas.

JU – Por falar na geração dos anos 70, naquela época ficou bem caracterizado o movimento da chamada Geração Mimeografo para superar as dificuldades de inserção editorial. Ao que parece, nos dias de hoje, a Internet constitui uma saída muito mais ampla. Como a poesia está reagindo à mudança de mídias?

Vogt – Se você buscar na Internet os sites de poesia vai se deparar com uma quantidade impressionante. Há desde sites mais organizados até aqueles que simplesmente vão acumulando poemas. O que temos, na verdade, é um veículo interessante para circulação da poesia. Isso dinamiza o intercâmbio poético, mas não gerou nenhum movimento novo, diferentemente da chamada poesia marginal da Geração Mimeografo, que praticava uma ideologia estética de contraposição ao programatismo que havia se instalado na cultura brasileira com o Concretismo. Havia, portanto, um cenário contra o qual a poesia marginal se colocou, na forma e no conteúdo. Tudo isso passou a integrar uma atitude poética. Hoje não há nenhum movimento desse tipo. Acho que estamos vivendo uma adaptação aos meios. Talvez daqui a algum tempo surja algum movimento interessante, mas isso já não é tão simples.

JU – Isso significa que o papel das vanguardas foi esvaziado?

Vogt – Os vanguardismos são movimentos que necessariamente supõem uma referência que caracteriza um estado de neurose cultural. Você tem um conjunto de normas, regras e sistemas simbólicos funcionando com uma capacidade operacional de determinação dos comportamentos que fazem as pessoas se sentirem sufocadas. Quando aparece uma vanguarda que faz o exercício da produção desqualificada do ponto de vista do material e das formas, na verdade está havendo um movimento para explodir essa neurose. Uma das características do pós-modernismo é a indigência simbólica, o que torna difícil o surgimento de novas vanguardas. Romper o quê? Ao contrário, nós vivemos num estado de extrema concessão. É o estado de não-neurose. Tudo é possível e nada é estranho. Do ponto de vista artístico e literário isso é uma complicação. Temos pequenos movimentos de afirmação, mas não há ondas novas.

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