| Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 318 - 3 de abril a 16 de abril de 2006
Leia nesta edição
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Software Livre
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Devoção à arte
 

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ARTIGO

A respeito das apaixonadas polêmicas geradas com a popularização do software livre

ANTÔNIO MÁRCIO BUAINAINANTÔNIO MÁRCIO BUAINAIN , professor do Instituto de Economia da Unicamp e pesquisador associado do Grupo de Estudos da Organização da Pesquisa e Instituições do Instituto de Geociências da Unicamp. (Foto: Antoninho Perri)
CÁSSIA ISABEL COSTA MENDES

A introdução e popularização do software livre (SL) vem gerando apaixonadas polêmicas, polarizadas entre os que vêem o “movimento” como contestação ao domínio do conhecimento estratégico pelas grandes corporações  simbolizada pela Microsoft e personificada em Bill Gates  e aqueles que o rejeitam. O debate, nestes termos, não ajuda a compreender o significado e importância deste novo regime de propriedade intelectual e suas implicações para a indústria de software e para o processo de inovação tecnológica. Esta questão deve ser analisada de forma objetiva, à luz das facilidades e dos obstáculos que o SL cria para a inovação.

Em primeiro lugar é preciso desmistificar o “livre”. Para a Economia, “bem livre” é aquele cuja oferta é ilimitada, pode ser consumido sem custos e por isto mesmo não é passível de apropriação privada. Nos antigos manuais de Economia os exemplos de bens livres eram a água e o ar; o primeiro já deixou de ser livre há muito, e o segundo já está sendo comercializado de forma indireta nos mecanismos do Protocolo de Kyoto. Neste sentido, o software livre não tem nada de livre: sua produção é limitada, tem custos e seu consumo tampouco é irrestrito. No caso, o termo “livre” refere-se às liberdades de usar, estudar, modificar e redistribuir o software, concedidas, como veremos, pelos seus criadores.

Outro mito é que o software livre seja uma negação da propriedade intelectual. A análise das licenças que vêm sendo utilizadas no âmbito do SL revela que não se trata de uma negação do regime de propriedade, mas sim de um novo modo de exercício dos direitos de propriedade, no qual os detentores de direitos autorizam a utilização de seus ativos sob determinadas condições. O direito autoral fundamenta-se no direito de propriedade, o qual confere ao seu titular as faculdades de usar, fruir e dispor da obra protegida  o software, neste caso. O titular dos direitos autorais, no exercício destas faculdades, pode autorizar o licenciamento livre da sua obra  o copyleft , nos termos preconizados em licenças de software livre, tal como a Licença Pública Geral, ou GPL, uma das mais conhecidas.

A mudança no exercício dos direitos de propriedade intelectual tem desdobramentos sobre as características do processo de inovação —oportunidade tecnológica, cumulatividade do progresso técnico e apropriação privada— e neste sentido pode estimular ou não a inovação na indústria de software.

CÁSSIA ISABEL COSTA MENDES, advogada e mestre em  Desenvolvimento Econômico pelo Instituto de Economia da Unicamp. Empregada e membro do comitê local de Propriedade Intelectual da Embrapa Informática Agropecuária. (Foto: Antoninho Perri)A concorrência cria e restringe, por diversos meios, as oportunidades tecnológicas. Acesso restrito à tecnologia, estrutura de distribuição e apoio aos consumidores, construção de marcas e reputação, relacionamento com os clientes são comumente utilizados como barreiras à entrada no processo competitivo. Sem prejuízo da importância dos demais fatores, na indústria de software o acesso à tecnologia de ponta é crucial para disputar o mercado. Nossa hipótese é que, em vários segmentos da indústria de software, a flexibilização do uso dos ativos protegidos pelas licenças de SL amplia as oportunidades tecnológicas, tanto para as firmas que estão fora do mercado como para as que estão dentro. De fato, vários estudos indicam que o regime de SL estimula e se beneficia de economias em rede na geração e difusão de novos produtos, facilita a mobilização de competências, reduz o custo de produção, a necessidade de capital para investimento em P&D e o tamanho da escala mínima de produção sustentável. No entanto, os custos de transação podem ser maiores (infra-estrutura mínima de servidores de versões, mecanismos para coordenação do projeto de SL, coordenadores com habilidades de liderança e acompanhamento de projeto). Mas, no balanço geral acaba prevalecendo a redução de custos (ver Softex, 2005 e Mendes, 2006).

No mundo da inovação o ditado correto não é “quanto mais sei mais sei que nada sei”, mas sim “quanto mais sei mais sei que mais vantagens terei.” O caráter cumulativo da inovação assegura vantagens aos que largaram na frente e controlam as tecnologias dominantes. O desenvolvimento colaborativo em rede, que é a base da geração de software livre, pode contribuir para reduzir o papel excludente da cumulatividade do progresso técnico como barreira à entrada na indústria de software. Isso pode ocorrer porque a formação de redes colaborativas para desenvolvimento do SL, ao aglutinar competências, facilita o compartilhamento de conhecimentos pré-existentes  os códigos-fontes e as respectivas documentações disponíveis dos mesmos , contribui para acumulação de outros novos conhecimentos e pode facilitar, desta forma, o surgimento de inovações.

A acumulação de novos conhecimentos corrobora para a aceleração no processo de aprendizagem, que se dá pelo acesso ao código-fonte e à sua documentação, assim como pela participação do desenvolvedor em novos projetos de produção de SL. Aqui, vemos que o compartilhamento de conhecimentos tácitos (experiência de cada agente, seja desenvolvedor, testador ou usuário  por intermédio de fóruns de discussão on-line, entre outros) e a difusão dos conhecimentos codificados (pela liberação do código-fonte e documentação) resultam na interação social que pode facilitar o processo de inovação.

A apropriabilidade é crucial para estimular a inovação. Sem a possibilidade de apropriação dos resultados das inovações os investidores privados não teriam estímulo para aplicar recursos e energia no negócio. Ao contrário do que se pensa, o SL não implica renuncia à apropriação privada, que pode ocorrer tanto pelo desenvolvimento de modelos de negócios voltados para serviços  desenvolvimento, treinamento, customização, habilitação de hardware, entre outros como pela aprendizagem que possibilita a apropriação de novos conhecimentos. Tais modelos são os mesmos da indústria de software, com a diferença de apresentar um novo modo de licenciamento, pelo copyleft.

O compartilhamento de informação e experiência proporcionado pelo SL pode facilitar e estimular a inovação tecnológica, principalmente as incrementais, caracterizadas pelos surgimentos de melhorias e avanços com relação aos programas de código aberto pré-existentes. A informação e o conhecimento, como colunas dos diferentes modos de produção, são insumos para inovações tecnológicas. Por intermédio do licenciamento em rede, o copyleft, tais informações e conhecimentos são livremente compartilhados em rede por diversos agentes, fazendo surgir um novo modo de produção, ou de desenvolvimento, colaborativo em rede. Os conhecimentos tácitos passam a ser codificados, por intermédio das documentações tanto do código-fonte como do usuário, e divulgados em rede, promovendo uma interação social entre os diversos agentes, impulsionando a aquisição, a acumulação e o compartilhamento destes conhecimentos, fazendo surgir outros novos, dos quais podem advir inovações.

O presente momento na indústria de software é caracterizado por um estado fluido de desenvolvimento  onde os agentes aprendem na medida em que avançam. Em muitos contextos, o compartilhamento da informação e do próprio ativo por meio do copyleft contribui para viabilizar negócios e para promover a inovação. Em outros, o negócio depende, de forma crucial, da proteção e exclusividade de uso, e forçar a liberação produziria insegurança e desestimularia a inovação. Tudo indica que o cenário mais provável é de convivência do software proprietário e do software livre, que serão utilizados segundo a conveniência dos vários agentes, inclusive grandes consumidores institucionais.

O software livre pode, em muitas circunstâncias, contribuir para a expansão da indústria nacional de software, mas para isto não pode ser tratado como uma Cruzada contra a propriedade intelectual, como um adversário do software proprietário. As políticas públicas devem valorizá-lo como um modelo de negócio alternativo que pode ser lucrativo para os empreendedores e contribuir para impulsionar o processo de aprendizagem, difundir informação e experiência e facilitar a inovação tecnológica do setor. Mas tampouco pode se transformar em uma Cruzada contra.


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