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Soul à brasileira

MANUEL ALVES FILHO

A Banda Black Rio, formada originalmente em 1976 no Rio de Janeiro, conquistou notoriedade tanto no Brasil quanto no exterior ao promover uma fusão nada trivial de gêneros musicais brasileiros, como o samba, o choro e o baião, com elementos do jazz, do soul e do funk. Essa sonoridade híbrida e original expressa, em certa medida, o contexto histórico, social e político do período, no qual o país experimentava um regime político autoritário, presenciava o desenvolvimento da indústria cultural e testemunhava o surgimento de novas identidades geracionais e étnicas. As constatações estão na dissertação de mestrado da musicista Eloá Gonçalves, apresentada recentemente ao Instituto de Artes (IA) da Unicamp, sob a orientação do professor José Roberto Zan.

A pesquisa de Eloá concentrou-se na primeira formação da Banda Black Rio, que durou oito anos. De acordo com ela, o grupo foi constituído originalmente por músicos cariocas que vinham da tradição do samba e da gafieira, mas que também tinham passagens pela música instrumental. “Eles tinham certo refinamento. Com frequência, faziam abordagens jazzísticas na execução de várias obras”, afirma. Naquele momento, continua a autora da dissertação, aspectos da black culture norte-americana começavam a influenciar o pensamento e o comportamento da juventude brasileira, notadamente a de origem negra, que, ao tomar conhecimento das conquistas pelos direitos civis dos negros norte-americanos, passou a esboçar uma tentativa de reafirmação de sua identidade étnica.

Nessa época, jovens do Rio de Janeiro, por exemplo, costumavam frequentar bailes animados pelo soul e o funk. Um dos mais famosos foi o Baile da Pesada, que nasceu na Zona Sul, mas logo foi deslocado para a Zona Norte da cidade, onde fez enorme sucesso. “O Baile da Pesada chegava a reunir, em meados da década de 70, até 15 mil pessoas, que apresentavam uma forma própria de falar, vestir e dançar, fortemente baseada na black culture americana”, relata a pesquisadora. Toda essa movimentação, conforme Eloá, começou a chamar a atenção da imprensa. Em dada ocasião, a jornalista Lena Frias publicou no Caderno B do Jornal do Brasil um artigo intitulado Black Rio: o orgulho (importado) de ser negro no Brasil, o que lançou definitivamente luz sobre o que passou a ser considerado por alguns como uma espécie de movimento negro.

Assim que ganhou a mídia, a agitação também passou a despertar o interesse da indústria fonográfica. A novidade fez com que o setor enxergasse um mercado promissor para aquele tipo de sonoridade. Dessa forma, tentou-se criar um “soul à brasileira” a partir de lançamentos de artistas nacionais que tivessem suas produções baseadas em elementos da black music. Como consequência, surgiram artistas como Carlos Dafé, Cassiano e Hyldon, entre outros. “Foi nesse contexto que a Banda Black Rio também foi formada, mas com uma linguagem musical própria. Os integrantes do grupo sofriam forte influência da música negra norte-americana, mas não estavam interessados somente em fazer uma cópia dela”, pontua Eloá.

A postura da Banda Black Rio, destaca a musicista, não se encaixava na crítica de determinada corrente, segundo a qual o samba-soul seria somente uma imitação da música norte-americana e um sinal de subserviência ao imperialismo yankee. “Os músicos da Banda Black Rio admitiam a sua admiração por artistas como James Brown, Earth, Wind & Fire e Kool & the Gang, entre outros. Ocorre que, como já dito, eles fundiram, com muita propriedade, elementos da música negra norte-americana com vários gêneros brasileiros. Dessa fusão resultou uma nova musicalidade, que acabou por conquistar artistas de fora. Os próprios integrantes da Earth, Wind & Fire se disseram fãs da Banda Black Rio e ajudaram a divulga-la lá fora. O grupo norte-americano tem inclusive uma composição baseada na sonoridade da Black Rio e nas canções de Milton Nascimento, intitulada ‘Brazilian Rhyme’. Ainda hoje, o grupo brasileiro é muito respeitado no exterior, onde seus discos seguem sendo reeditados e vendidos a preços elevados”, informa Eloá.

Ao entrevistar o então presidente da Warner Music do Brasil (WEA), André Midani, Eloá confirmou que o interesse da gravadora pela black music surgiu por causa de eventos como o Baile da Pesada e das Noites do Shaft, realizadas no Clube Renascença, também no Rio de Janeiro. “Como a black music vivia um período de efervescência no país, Midani me contou que a gravadora viu a oportunidade de investir no gênero, mas, no caso específico da Black Rio, de uma forma mais ousada, ou seja, valorizando a música instrumental a partir daquela tendência”. Não por acaso, o primeiro álbum da Black Rio, intitulado Maria Fumaça, foi inteiramente instrumental, composto por dez faixas, sendo algumas releituras de composições consagradas do cancioneiro nacional, como alguns choros, e outras composições próprias.

Refinamento

Neste disco, diz a musicista, é perceptível a preocupação dos integrantes do grupo com os arranjos, todos muito refinados. “As músicas têm o lado pesado do funk, o groove da bateria e do baixo, os riffs de guitarra bem suingados e também um traço mais soft do jazz, tudo mesclado com um ‘tempero’ de gafieira. Isso sem contar as rajadas de metais à la Motown”, detalha ela, numa referência à Motown Records, gravadora responsável pela produção de alguns dos maiores sucessos da música negra americana a partir dos anos 60. Depois deste disco, o grupo gravou mais três: Gafieira Universal, Saci Pererê, e Bicho Baile Show. Este último foi derivado de uma bem-sucedida temporada de shows com Caetano Veloso, a convite do próprio cantor. A partir do segundo álbum, porém, a sonoridade da banda sofreu modificações, ainda que a qualidade musical tenha sido mantida, de acordo com a autora da dissertação.

No entendimento de Eloá, essa mudança se deu por causa da interferência da indústria fonográfica. “Não acredito que a gravadora tenha forçado uma guinada, mas ela deve ter exercido uma influência indireta. Digo isso porque o segundo álbum deixou de ser totalmente instrumental para incluir algumas canções. O terceiro já foi praticamente todo de canções. Penso que essa mudança foi feita com o intuito de conquistar mais mercado”, arrisca. Nessa fase, prossegue a pesquisadora, a banda experimentou a saída de alguns integrantes e a entrada de outros, como os vocalistas e um número maior de percussionistas.

O período de atuação da primeira formação da Black Rio coincidiu com uma etapa violenta da ditadura militar brasileira. A despeito disso, o grupo não usou a sua arte para promover um protesto engajado contra o regime, segundo apurou Eloá. “Eu entrevistei a Livia Stevenson, irmã do Cláudio Stevenson, guitarrista da banda, que me disse que o trabalho da Black Rio não teve conotação política. O único momento em que isso parece ter acontecido foi por ocasião do lançamento da música Mel do Figueiredo, mas de forma sutil. O título fazia referência tanto ao presidente João Batista Figueiredo quanto a uma gíria em vigor, segundo a qual Figueiredo era o mesmo que fígado”, conta a musicista. Atualmente, conforme Eloá, a Black Rio tem outra formação, mas segue fazendo música de qualidade. O líder do grupo é William Magalhães, filho de um dos fundadores da banda, Oberdan Magalhães, já falecido. Brevemente, a Black Rio lançará um novo disco, o Super Nova Samba Funk, que tem a produção de Mano Brown, líder do grupo de rap Racionais MC’s.

Eloá revela que teve bastante dificuldade para produzir o trabalho por causa da escassez de bibliografia sobre o tema no Brasil. “Por ser um campo recente de pesquisa, a música popular ainda carece de trabalhos a seu respeito. Minha dificuldade, que é a mesma de outros pesquisadores da área, foi falar de um assunto musical dentro de um contexto mais geral, que envolve aspectos culturais, históricos e sociais. Meu desafio foi tentar montar de modo adequado esse quebra-cabeça”, pormenoriza a pesquisadora, que contou com bolsa concedida pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).

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■ Publicação

Dissertação: “Banda Black Rio: uma análise musical”
Autora: Eloá Gonçalves
Orientador: José Roberto Zan
Unidade: Instituto de Artes (IA)

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