Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 271 - de 25 a 31 de outubro de 2004
Leia nessa edição
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Era uma vez a América
Diário da Cátedra
Nova técnica: o átomo
Fanatismo, face do retrocesso
Catarata maior causa de
  cegueira em Campinas
César Lattes
Chuvas amazônicas
Criação de peixes
Planejamento estratégico
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Painel da semana
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Unicamp na mídia
Contato com a prática
MultiCiência
Cultura X solidão
 

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A César o que é de Lattes

O reitor Brito Cruz entrega a César Lattes ( ao lado da filha Maria Carolina) os títulos de Professor Emérito e Doutor Honoris Causa (Foto: Antoninho Perri)A história da ciência talvez tomasse outro rumo se o físico César Lattes embarcasse no avião errado, em 1946, quando ele tinha 22 anos. Trabalhando com Giuseppe Occhialini e Cecil Powell na Universidade de Bristol, ele localizou uma estação meteorológica instalada a 5.600m de altitude, distante cerca de 20km de La Paz. “Propus a Powell e Occhialini que, se eles conseguissem fundos para que eu voasse até a América do Sul, eu poderia me encarregar de expor chapas tratadas com bórax no Monte Chacaltaya durante um mês. Deixei Bristol com várias chapas com bórax e mais uma pilha de notas de libras suficientes para me levar ao Rio de Janeiro e para voltar. Ao contrário da recomendação do professor Tyndall, diretor do H. H. Wills Physical Laboratory, tomei um avião brasileiro, o que foi uma sábia decisão, pois o avião britânico caiu em Dakar e matou todos os seus passageiros”. O relato abre o artigo do cientista brasileiro sobre os 50 anos de descoberta do méson pi (1947), passo fundamental para a compreensão do mundo subatômico.

“Como vai a Unicamp?”, perguntou Lattes ao reitor Carlos Henrique de Brito Cruz, que foi à sua casa à frente de um grupo de professores, na tarde do último 15 de outubro, para lhe entregar os títulos de Professor Emérito e de Doutor Honoris Causa que lhe foram conferidos pela Unicamp em 1986. “Preciso pôr gravata?”, pilheriou com os visitantes. Os títulos só foram entregues agora porque Lattes, avesso a homenagens públicas, passou incólume por quatro reitores sem jamais conciliar uma data para a cerimônia. Coube então a Brito Cruz, também físico, fazer a entrega na própria residência de Lattes, num clima informal em que não houve discursos, mas muita conversa amena pontuada por fornadas de pão-de-queijo.

Aposentado em 1986, quando afastou-se do ambiente acadêmico mas não do CentroLattes no pico de Chacaltaya, Bolívia, nos anos 70 Brasileiro de Pesquisas Físicas (CPPF), que fundou em 1949 com José Leite Lopes, outro físico notável, o nome de Lattes se confunde com o da Unicamp. Durante o encontro informal, que durou 40 minutos, César Lattes procurou saber de velhos companheiros e recordou longamente seu primeiro artigo publicado, sobre a abundância de núcleos no universo, orientado por Gleb Wataghin e que afinal lhe deu notoriedade ainda na juventude. Aos 24 anos, com Gardner, Lattes conseguiu produzir artificialmente o méson pi na Universidade de Berkeley, na Califórnia.

Lattes gosta de lembrar os tempos pioneiros do surgimento da Unicamp, no final da década de 60, quando o campus ainda estava no papel e seu laboratório ocupava um exíguo espaço nos porões do número 177 da rua Culto à Ciência, onde hoje funciona o Colégio Técnico da Unicamp em Campinas. Em varais improvisados no corredor, Lattes estendia chapas de detecção de raios cósmicos recolhidas na montanha de Chacaltaya, na Bolívia. Quem descia até ali podia vê-lo, não raro deitado na rede que mandara instalar em sua estreita sala, ruminando cálculos.

Em 2001, Lattes, em geral refratário a entrevistas, recebeu o Jornal da Unicamp e falou sobre a origem do universo. “A realidade objetiva, a realidade no duro, é a resultante da superposição de todas as vontades: animais, vegetais, minerais e objetos manufaturados. Tudo tem alma. Até esse fósforo que acabei de acender. Vamos falar de universo: cada ser é um universo. Dizem que existem infinitos universos. Eu não consigo conceber o conceito de infinito. Então, da origem de qual deles vamos falar?”. Mas nem sempre, com Lattes, a conversa é a sério. A uma pergunta sobre religião, reagiu com sua proverbial irreverência: “Sou judeu, católico apostólico romano, stalinista, cristão, ortodoxo, animista e maometano”.

Nessa mesma entrevista, Lattes fez referência ao grande reconhecimento que não veio – o Nobel de Física – e que muitos julgam que ele mereceu pelo menos em duas ocasiões. Sua explicação é pragmática: quando ele, Occhialini e Powell verificaram experimentalmente a existência do méson-pi e publicaram um artigo a respeito, seu nome apareceu como primeiro autor. No entanto, Powell tinha mais renome devido a seu trabalho sobre a produção de pósitrons, publicado em 1933, e levou o Nobel de 1950 não só pela descoberta do méson mas também por fotografar os núcleos atômicos. “Occhialini e eu entramos pelo cano”, ironiza. A outra chance de premiação, segundo ele, veio em 1948, na Universidade da Califórnia. Juntamente com Eugene Garden. Lattes detectou o méson artificial, “alimentando a presunção de retirar do empirismo todas as pesquisas que se relacionassem com a libertação da energia nuclear”, explica. “Sabe por que não nos deram o Nobel dessa vez? Garden estava com beriliose, por ter trabalhado na bomba atômica durante a Segunda Grande Guerra, e o berílio tira a elasticidade dos pulmões. Morreu pouco depois e não se dá o prêmio Nobel para um morto. Portanto, fui tungado duas vezes”.

“A ciência universal seria o ideal. Mas a prática é bem diferente. Felizmente, todo segredo dura pouco.”

A trajetória do físico, segundo Asimov

César Lattes, cujo nome verdadeiro é Cesare Mansueto Giulio Lattes, graduou-se em Física e Matemática pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo em 1943. Talento precoce e desde cedo mundialmente reconhecido, foi um dos fundadores do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, no Rio de Janeiro, quando contava apenas 23 anos, tendo sido diretor do mesmo.

Entre 1947 e 1948 retomou as pesquisas do físico norte-americano Carl David Anderson, responsável em 1932 pela descoberta dos raios cósmicos e dos elétrons positivos, e partiu para os Andes bolivianos, onde instalou um laboratório a mais de 5 mil metros de altura para observar os resultados da ação daqueles raios sobre chapas fotográficas. Trabalhando com os físicos Giuseppe Occhialini e Cecil Frank Powell, Lattes examinou detidamente aquelas chapas, verificando experimentalmente a existência dos mésons pi, os quais se desintegravam em um tipo de méson ainda desconhecido, o méson mu.

Um ano depois, em colaboração com Gardner, Lattes, então com 24 anos de idade, conseguiu produzir artificialmente o méson pi, procedendo para tanto à aceleração das partículas alfa no ciclotron da Universidade de Berkeley, na Califórnia. Lattes permaneceria ainda no exterior no período 1955-57, realizando pesquisas para a evolução da Física moderna. Regressou naquele ano ao Brasil e foi nomeado professor da Universidade de São Paulo.

Um outro grande feito seu data de 1969, quando, à frente de uma equipe de físicos brasileiros e japoneses, conseguiu determinar a massa das chamadas bolas de fogo, fenômeno induzido pelo intenso choque de partículas dotadas de grande energia e que se supunha constituírem nuvens de mésons. A operação apenas se tornou exeqüível depois da revelação de chapas especiais de chumbo, designadas câmaras, as quais ficaram expostas por raios cósmicos durante anos no pico boliviano de Chacaltaya, onde Lattes iniciara 23 anos antes as suas pesquisas sobre o méson.

(Isaac Asimov – “Gênios da Humanidade” – Bloch Editores, 1964)


Impressões atuais de
uma época que já se foi

César Lattes durante entrevista, em 1987

Abaixo, a reprodução de trechos da entrevista que César Lattes concedeu a Eustáquio Gomes e Graça Caldas, para a edição de outubro de 1987 do Jornal da Unicamp, quebrando vários anos de silêncio. Comemorava-se, na ocasião, o 20º aniversário da criação do Departamento de Raios Cósmicos, Cronologia, Altas Energias e Léptons, que Lattes ajudou a criar.

O reencontro

Foi um acontecimento de caráter histórico. Estavam lá quase todos os que participaram dos trabalhos de 1947 com o méson pi. Foram recapitulados vários assuntos: a descoberta do pi, a descoberta do méson K, as partículas elementares. Foi um pouco melancólico a gente se encontrar depois de 40 anos. Está todo mundo aposentado, inclusive eu.

(Sobre as comemorações internacionais dos 40 anos de comprovação experimental dos méson pi, realizadas em Bristol)

Reserva de mercado

Em Química fina e Biotecnologia estou completamente por fora. Na área de Informática sabemos na prática o que está acontecendo. Lá fora se continua progredindo rapidamente. Tenho a impressão de que o “manto protetor” é perigoso para o progresso da ciência. Agora, esse é um problema político e não científico.

(Sobre ciência nacional x internacionalismo)

Universalismo da ciência

A ciência deve ser universal, sem dúvida. Entretanto, é preciso não crer nisso incondicionalmente. Desde a última guerra que os cientistas estão sujeitos, de uma maneira ou de outra, a trabalhos ligados à indústria bélica e a companhias particulares que têm necessidade de lucros. Os trabalhos são então mantidos em segredo. A ciência universal seria o ideal. Mas a prática é bem diferente. Felizmente, todo segredo dura pouco.

(Sobre o acesso às informações internacionais)

Pós-graduação

O curso de pós-graduação foi introduzido no Brasil por influência da América do Norte. Uma certa disciplina é necessária para exigir um conhecimento maior do que o obtido no bacharelado. Agora, supor que só o curso de pós-graduação e seus graus de mestre e doutor são suficientes para a formação de um pesquisador e o desenvolvimento da ciência, é um erro. É preciso que haja também um ambiente criador.

(Comentando a contribuição da pós-graduação na formação de melhores cientistas)

Pesquisa pura x prática

As universidades eram a guarda, a transmissão e a geração do conhecimento. Com a criação dos institutos de tecnologia, iniciou-se de uma maneira sistemática a geração de conhecimento não mais no sentido puro, mas para resolver problemas práticos. Principalmente depois da última guerra, os cientistas foram convocados pela indústria e pelo governo para participar de uma maneira mais direta do desenvolvimento tecnológico. Acho que, para se fazer pesquisa “pura”, aqui ou lá fora, é preciso escolher problemas que sejam viáveis do ponto de vista orçamentário. Já a aplicação, ou a chamada pesquisa prática (Pasteur já dizia que não existe ciência pura nem aplicada, mas aplicação da ciência) demanda recursos maiores para acompanhar a evolução mundial. A chamada pesquisa aplicada é muito mais cara que a pura. Mas sem a pesquisa pura não existe a pesquisa aplicada. Pasteur, por exemplo, se interessava pela pesquisa pura. E fez descobertas importantíssimas para a aplicação, usando inclusive recursos parcos. Vocês deram cifras, mostrando o abismo que separa dois orçamentos [ EUA e Brasil]. Mas se aparecer um Pasteur por aqui, pode acontecer uma contribuição muito importante sem que o investimento entre em linha de conta. Claro que vai depender muito dos indivíduos. Estatisticamente, sem dúvida, estamos por baixo. Do ponto de vista estatístico, a possibilidade de contribuir é pequena.

(Sobre a diferença entre Estados Unidos e Brasil no PIB e no montante investido em ciência)

Poesia

A poesia é uma das atividades mais altas do homem. Não tenho lido muita coisa nova. Mas ainda recomendo o Drummond e o Manoel Bandeira. São os que continuo lendo.

(Sobre o fato de ter prefaciado um livro)

O país

A leitura do jornal toda manhã é um ato de masoquismo. Acho que qualquer pessoa com um pouco de visão, ao ler essas notícias, deve ficar desesperançada. Eu, pelo menos, estou. Vocês não?

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