Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 245 - de 22 a 28 de março de 2004
Leia nessa edição
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Para alavancar patentes
Nova técnica: fibra de vidro
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Epilepsia fora das sombras
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Oportunidades
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Química: romance premiado
Academia de Ciências
Raridades de um homem raro
 

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A epilepsia fora das sombras

Neurologista da Unicamp insere o Brasil em
campanha global para melhorar o atendimento e acabar com o preconceito

O neurologista Li Li Min, professor da FCM: campanha contra preconceito milenar.
A Psicóloga Paula Fernandes, doutoranda da FCM: "estigma percebido" afeta a auto-estima.

Luiz Sugimoto

A epilepsia é uma condição neurológica crônica grave, que acomete entre 1% e 2% da população, segundo dados da Organização Mundial de Saúde (OMS). No Brasil, seriam aproximadamente 3 milhões de pessoas com epilepsia, conformando um problema de saúde pública. Embora menos letal, o preconceito que isola os portadores de epilepsia já justificaria um programa tão sério quanto o dirigido à Aids. Quem já testemunhou uma crise, se não ficou assustado, ficou desconcertado: os músculos da pessoa em crise enrijecem, ela cai, saliva em excesso, se debate. Por causa desta reação, que para muitos parece "demoníaca", negam-lhe emprego, vaga na escola, a família sofre e ela se esconde - o paciente com HIV sabe como é isso.


Maioria dos portadores não recebem tratamento

Nem é preciso tanta penúria. Considerando um grupo de cem pessoas que apresentam alguma forma de epilepsia, 70 ou 80 delas podem levar uma vida sem crises se contarem com a medicação adequada. O primeiro anticonvulsivante foi descoberto há um século, e as fórmulas tradicionais de hoje oferecem baixo custo. Apesar disso, existe uma omissão gritante nos países em desenvolvimento, em que 60% a 90% dos portadores da síndrome não recebem tratamento. "O número de doentes é grande, o tratamento para evitar este sofrimento existe e os custos de um programa compensam de longe o que o país perde com a exclusão desta população economicamente ativa. Então, por que não se faz?", questiona o neurologista Li Li Min, professor da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp.

Depois de quase uma década fazendo cursos de especialização em hospitais de Havana, Londres e Montreal, e com PhD em neurociências pela McGill University, o professor Li Min poderia centrar seu conhecimento em pesquisas com instrumentos de alta tecnologia para diagnóstico e entendimento de questões neurobiológicas – epilepsia, inclusive. Porém, voltando ao Brasil em 2000, e percebendo a situação crítica em que vivem os pacientes com epilepsia, optou por ajudar na solução deste problema imediato, aderindo à Campanha Global Epilepsia Fora das Sombras. Hoje, está à frente da Aspe (Assistência à Saúde de Pacientes com Epilepsia), que reúne profissionais da FCM e da Faculdade de Educação (FE) da Unicamp e de outras instituições paulistas. Em matéria nesta página, resumimos o que a Aspe fez em apenas dois anos de existência.

O que é – A crise epiléptica é desencadeada quando um grupamento de neurônios deixa de funcionar adequadamente por certo tempo. O cérebro envia impulsos elétricos de forma errática, levando a manifestações clínicas em partes do corpo que comanda. Figurativamente, o que acontece é um curto-circuito. A crise "tônico-crônica" (a convulsão), aquela que testemunhamos nas ruas, corresponde à cerca de metade dos casos. Os outros 50% são outros tipos de crises epilépticas que podem passar despercebidas. Uma delas afeta principalmente a criança, que está conversando normalmente e, de repente, desliga por segundos; se tais crises são múltiplas, a mãe vai achar que o filho vive no mundo da lua.

Na crise "parcial complexa", o paciente desliga, mas mantém certos movimentos complexos – pode, por exemplo, tirar a roupa sem se dar conta de que está em público. "Quando confundida com drogadição ou doenças psiquiátricas, esta crise pode levar o paciente à delegacia ou mesmo ao hospital psiquiátrico", lamenta Li Li Min. Nos variados graus de severidade de epilepsia, não havendo resposta à medicação, existe o tratamento cirúrgico, removendo-se parte do cérebro. Uma avaliação pré-cirúrgica indica se a intervenção será mesmo eficaz para acabar com a crise e se a pessoa poderá conviver sem aquele tecido.

Atente-se que a epilepsia não é uma doença em si, é um leque grande de doenças que podem desencadeá-la. Um tumor cerebral pode causar epilepsia, assim como má- formação do cérebro, traumatismo crânioencefálico em acidente, defeito genético, problemas no parto. Diagnosticar a epilepsia, portando, nem sempre é fácil, a não ser naqueles 50% dos casos em que a crise é do tipo convulsão e de fácil reconhecimento. Daí, a importância dos cursos de qualificação que a Aspe vem ministrando aos profissionais da rede de saúde. "O diagnóstico surge essencialmente da história do paciente e da pessoa que presenciou a crise, não existem aparelhos ou exames que acusem a epilepsia. É a história que o portador conta, o testemunho de quem o vê em crise. Confirmada a síndrome, investiga-se por que o paciente sofre essas crises", explica o pesquisador da Unicamp.

O preconceito – O Museu Britânico guarda pedras onde mercadores da Babilônia esculpiam seus contratos. No negócio com um escravo, em duas situações o comprador podia devolvê-lo ao vendedor: se sofresse de hanseníase ou de epilepsia. "Já havia, então, uma carga de preconceito contra essas duas doenças antes de Cristo. Por outro lado, vemos nos relatos de Hipócrates – na realidade uma coletânea escrita por vários médicos e não apenas pelo ‘pai da medicina’-, há 2.400 anos, a afirmação de que a epilepsia não era um problema espiritual, mas que decorria de alterações no fluido corporal", ilustra Li Min.

Em alguns países da África, a síndrome é conhecida como "a doença que queima": se na tribo que cozinha no meio da savana, uma pessoa em crise cair sobre o fogo, não será socorrida porque com o contato os demais seriam tomados pelo espírito maléfico. Da mesma forma, nas Filipinas, chamam-na de a "doença que afoga", visto que o paciente será abandonado à própria sorte no rio. "Nesses países, a síndrome é conhecida mais por suas conseqüências. De fato, o risco de óbito aumenta quando a crise não é controlada, embora os latinos não gostem de falar sobre a morte. A taxa de morte súbita, que é de 1% na população em geral, duplica ou triplica entre as pessoas com epilepsia", informa o professor.

Suicídio – A psicóloga Paula Fernandes, doutoranda da FCM e secretária executiva da Aspe, destaca ainda a propensão ao suicídio. "O paciente, quando suas crises não são controladas, começa a se fechar e a se esconder. Não só pelo constrangimento de sofrer uma crise em público, mas pelo preconceito da sociedade. Se ele está empregado, é despedido; se namora, ela desiste da relação. É o que chamamos de ‘estigma percebido’, que acaba com a auto-estima. O risco de suicídio realmente é grande em comparação com outras pessoas", afirma. O preconceito se estende aos letrados, havendo registros de promotores que acusaram o diagnóstico de epilepsia a pessoas que cometeram crimes seriados, julgando-os capazes de atitudes violentas e cuidadosamente premeditadas quando estão em crise. "Pura fantasia, pois as manifestações são totalmente elementares e, nos poucos segundos de crise, o paciente fica incapacitado, sem domínio sobre seu corpo", ironiza Li Min.



Qualificação dos
profissionais deixa a desejar


Quem consultar a página da Aspe na Internet, em www.aspebrasil.org, poderá baixar as edições da revista Sem Crise, que traz informações e estatísticas importantes sobre a síndrome, entrevistas com autoridades e especialistas, o esforço de diversas associações espalhadas pelo país para fazer com que o atendimento a suas carências vire lei, e depoimentos crus e comoventes de pacientes. Contudo, viabilizada a participação inicial do Brasil no projeto demonstrativo da Campanha Global Epilepsia Fora das Sombras, o professor Li Li Min concluiu que esclarecimento à população, apenas, não bastava: era necessário intervir.

"A qualificação do atendimento às pessoas com epilepsia no país deixa a desejar. Os médicos, em boa parte, não se sentem confortáveis em assistir um portador da síndrome, pois seu conhecimento está desatualizado. A Aspe planejou cursos intensivos de capacitação, com o objetivo de contemplar, direta ou indiretamente, as 17 mil equipes do Programa de Saúde da Família brasileiro. Já fizemos acordos em Campinas, São Paulo, Curitiba e também no Mato Grosso e Amazonas. Promovemos cursos relâmpagos na Paraíba e, em abril, faremos o mesmo em um grande congresso no Rio", resume o neurologista da FCM.

A Faculdade de Educação (FE) da Unicamp, por sua vez, tem levado o conhecimento aos professores da rede pública, preparando-os para atender a criança com epilepsia e lutar por sua permanência na escola – não é raro que um aluno, depois de uma crise na classe, seja convidado a sair. O governo federal, nesta linha, deve manter projeto que prevê a epilepsia entre os temas transversais do currículo (como a Aids).

Todas essas ações, agora em execução, foram precedidas por ampla pesquisa em 30 mil domicílios de Campinas e São José do Rio Preto, quando se confirmou a prevalência de epilepsia em 1,8% desta população. No número 3 da revista Sem Crise, o professor Antônio Carlos de Carvalho, que coordenou a pesquisa de campo, conta os dramas que ele e os estudantes da equipe testemunharam, ouvindo pessoas que fugiam do assunto como o diabo foge da cruz.


Como ajudar um paciente em crise

-No primeiro momento da crise de um portador da síndrome de epilepsia, todos os seus músculos se contraem, ele cai, não consegue respirar nem engolir a saliva; por isso, não devemos forçá-lo a ingerir líquidos.

-A língua, sendo um músculo, também fica rija e se contrai, mas não há risco de o paciente engoli-la; por isso, não devemos introduzir o dedo ou qualquer objeto em sua boca.

-No segundo momento, o paciente se debate e, faltando o ar, seu abdômen força a respiração, como uma bomba; por isso, a saliva começa a espumar. Não devemos passar álcool ou outra substância em seu corpo.

Na verdade, o que se faz é muito pouco:

1 - apóia-se a cabeça do paciente para que não se machuque

2 - vira-se seu rosto de lado para que não aspire a saliva

3 - espera-se o fim da crise, que dura entre 1 e 2 minutos.

Nas raras vezes em que a crise é mais prolongada – cinco minutos, por exemplo –, o paciente pode estar evoluindo para o estado de mal epiléptico, devendo ser transportado até o pronto-socorro.

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