Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 245 - de 22 a 28 de março de 2004
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Raridades de um homem raro
 

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As raridades de um homem raro
Biblioteca Central abriga acervo de livros doados pelo crítico literário, ensaísta e professor Alexandre Eulálio


Alexandre Eulálio lê obra do colega Brito Broca: perfeccionismo e vasta produção.


Capa de Flos Sanctorium, do século 16, escrita por Frei Rosário sobre a vida de santos.

ANTONIO ROBERTO FAVA


Embora ainda restem mais de 3 mil volumes para ser catalogados, a Coleção Alexandre Eulálio, instalada no terceiro piso da Biblioteca Central (BC) da Unicamp, já se tornou um dos acervos mais consultados na área de Coleções Especiais pela comunidade interna e pelo público externo. Com mais de 12 mil volumes, trata-se de um dos mais importantes acervos particulares da Universidade.

Desde muito cedo, o livro foi um objeto que sempre fascinou Alexandre Eulálio (1932-1988) – crítico literário, ensaísta e professor de Teoria Literária do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) –, que se revelou um grande bibliófilo. Ao longo de sua vida, o professor reuniu quase 50 mil volumes, hoje distribuídos em instituições de ensino e em casa de parentes. Muitas das obras depositadas na Unicamp são presentes de amigos, escritores ou foram compradas pelo próprio Alexandre Eulálio, que acabou doando uma parte à Universidade.

Crítico literário era autodidata

Não tinha preferência por uma ou outra obra. Bastava que a publicação lhe despertasse interesse que ele arranjava uma maneira de adquiri-la. E não fazia questão do preço. Foi assim que obteve, por exemplo, obras raríssimas como o Flos Sanctorium, do século 16, escrita por Frei Rosário, da ordem de São Domingos, sobre a vida e a obra de santos. Ou ainda o Memórias do Disctrito Diamantino, de Joaquim Felício dos Santos, de 1868. Outra obra que integra o acervo é Marilia de Dirceu, clássico de Thomas Antonio Gonzaga, datada de 1862.

“É curioso observar que a maioria das obras raras depositadas na BC encontra-se ainda em perfeitas condições, porque na época não se usavam produtos químicos na fabricação de papel, o que vale dizer que isso não atraía insetos”, como explica Marta Regina da Silveira Do Val, bibliotecária do setor de obras raras da BC. Entre os livros mais antigos e interessantes dessa coleção destaca-se o Crônica de Veneta, um conjunto de ensaios de Antonio Pacífico di Pietro, de 1697. No entanto, nenhum volume da Coleção de Obras Raras pode ser emprestado ao interessado.

Segundo Tereza Cristina Carvalho, bibliotecária responsável pela área de Coleções Especiais, uma vez que não há empréstimo, qualquer obra só poderá ser consultada no próprio local – no 3º andar da biblioteca. “Esse cuidado se dá unicamente em virtude da necessidade de se preservar o acervo”, diz Tereza Cristina.

De sua produção reunida em livro, as obras de Eulálio que mais se destacam são A Aventura Brasileira de Blaise Cendrars (1978), o ensaio Os Dois Mundos de Cornélio Penna (1980) e Os melhores poemas de Thomas Antonio Gonzaga (1983). E não é só: durante toda a sua vida sobressaiu-se como organizador de produção, editor e gerador de idéias em permanente articulação.

Transportando jóia e dinheiro – O acervo de obras raras do professor Alexandre Eulálio conta com aproximadamente 130 livros que datam do período compreendido entre os séculos 16 e 19. O que normalmente caracteriza uma obra rara são os detalhes bibliográficos que emprestam ao livro sua preciosidade, tanto na forma quanto no conteúdo. Ali podem ainda ser encontradas, por exemplo, obras raras como as Obras poéticas, de Pedro Antonio Correa Garção (1778); Macarronea latino-portuguesa, uma obra que, como o próprio nome diz, é um “amontoado” de versos em estilo macarrônico, quer dizer, composições com efeito burlesco ou cômico. No livro, publicado em Lisboa em 1767, não consta o nome do seu autor.

Quem visitar o terceiro andar da Biblioteca Central pode observar uma outra obra no mínimo curiosa: Sermões do Bispo M. Massillon (1633-1742). Trata-se de um livrinho com 10 centímetros por 14,5 centímetros, aproximadamente, que contém somente as 30 primeiras páginas – o seu interior é recortado, possivelmente para esconder ou transportar dinheiro ou jóias. Fechado, o livro tem aspecto e formato de um volume normal. Ainda no setor de livros raros, há um volume de Diálogo del Fausto da Longiano: Del modo de lo tradurre d’uma in altra língua segondo de regole mostrate di Cicerone, publicado em Veneza, no século 16.

Poder observar as obras raras do acervo do professor Eulálio é como viajar no tempo por meio dos livros. Ali está, para citar outros exemplos, Praga, obra de Luiz de Gonzaga Duque Estrada; Sentimentalismo e história, de Camilo Castelo Branco; La retraite de la Lagune (A retirada de Laguna), de Visconde de Taunay (1891). Por outro lado, parte dos volumes da biblioteca do professor Eulálio traça um panorama da criação da própria literária universal, destacando-se as produções que mostram os primórdios das literaturas brasileira, italiana, francesa, inglesa e norte-americana.



Dedicatórias do primeiro time

No acervo há um espaço reservado às obras com dedicatória ao professor Eulálio. São dezenas de livros escritos pelos mais renomados autores, muitos deles já falecidos, como Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade. Deste, há o livro Contos de Aprendiz. Um dia Carlos Drummond de Andrade ofereceu um livro a Alexandre Eulálio – Fala Amendoeira –, com a seguinte dedicatória: “Da amendoeira o galho mais administrativo torna-se cativo de Alexandre Eulálio. Nele vê o grato jeito diamantino raciocínio exato sentimento fino. C.D.A”.

Em Corpo de Baile, de Guimarães Rosa (1960): “Para Alexandre Eulálio – querido amigo, lúcido e límpido, mineiro de toda a lei – com o melhor abraço de G.R. Rio , dez. de 1960”. O professor Antonio Cândido, um dos mais importantes críticos literários do país, por ocasião do lançamento de seu livro de ensaios Tese e Antíteses, escreveu: “De pimenta a pimenta a tese cordata da nossa pacatez no vínculo real através do tempo até ao nascedouro do Velho Alferes ODC”.

Tereza Cristina observa que Alexandre Eulálio tinha um hábito curioso. Muitos dos livros de sua biblioteca continham uma característica: assim que recebia de presente uma determinada obra, Eulálio fazia questão de anotar, na página de rosto ou na contracapa, o local (cidade onde estava quando adquiriu ou ganhou a obra), o nome de quem lhe presenteou, além de dia, mês e ano.


"Um infatigável e desordenado leitor"


Alexandre Eulálio foi “um cara formidável, grande colega e bom amigo”, confessa a professora Marisa Lajolo, do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL). Diz que sempre que o procurava com uma dúvida sobre literatura, “ele escarafunchava a memória, derrubava a biblioteca e vinha com a resposta”. Marisa elogia a Unicamp por cuidar da biblioteca particular de um professor como Alexandre Eulálio. Ali está escrita a biografia intelectual de seu dono. No caso de Alexandre – autodidata – o ecletismo do acervo é o retrato do homem que possuía os livros. “Ou que era possuído por eles?”, pergunta Marisa.

“Era muito amor que guardava por aqueles objetos de papel e tinta que traziam para o alcance de sua mão e de seus olhos. Tanto a tradição mineira de sua bem amada Diamantina, quanto a mais refinada poesia italiana com que evocava seu estágio romano. Assim, folhear os livros de sua biblioteca é um exercício de amor, mas que também pode ser extremamente educativo: anotações à margem, pedacinhos de papel que marcam páginas; de repente, uma manchinha de gordura!”.

Na história das leituras desse “infatigável e desordenado leitor que foi o nosso ex-colega”, de acordo com Marisa, um pouco também da história da formação intelectual de um crítico e de um professor de estilo inconfundível: erudito, divertido, agudo, como a personagem-título de seu livro A aventura brasileira de Blaise Cendrars, o poeta da vanguarda francesa que era simultaneamente apaixonado pela tecnologia e pelo primitivismo do Modernismo brasileiro.

Homem brilhante – Alexandre Eulálio era um autodidata. Não tinha formação universitária. “No entanto, atuando sempre como escritor e pesquisador por gana, por pura vontade, transformou-se num homem brilhante, dotado de uma singularidade no panorama universitário da Unicamp, e por que não dizer no cenário intelectual brasileiro”, diz o professor Paulo Franchetti, do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL). Dono de um saber enciclopédico, Eulálio dominava diversos assuntos com grande habilidade, que iam da literatura às artes plásticas, passando pelo cinema. Além disso, era um especialista em temas relacionados ao século XIX.

“Dentro da Unicamp foi considerado um repositório de informações e orientador, não raro sugerindo ou indicando onde é que poderiam encontrar um tema ou bibliografia que por ventura lhe solicitassem”, conta Franchetti. E arremata: “Eulálio não era um indivíduo comum, mero colecionador, mas um homem que apreciava e conhecia o valor de cada objeto, de cada livro. Transitava com igual desembaraço intelectual dentro e fora do país. Não havia quem não lhe reconhecesse a erudição, pouco comum no mundo de hoje, onde se cultiva mais a especialidade. Altamente perfeccionista, sua produção era intensa e, por isso mesmo, apesar de suas diversas publicações, nem de longe sua quantidade refletia sua efervescência intelectual”.

Para Alcir Pécora, professor de literatura portuguesa, especialista em literatura colonial, uma das características de Alexandre Eulálio é que ele era dotado de uma erudição extraordinária. “Conhecia a fundo tanto a literatura brasileira e a européia”, recorda-se. “Como se não bastasse, possuía informação de toda e qualquer área. Podia-se contar com ele sobre todo tipo de informação, pistas para os temas mais difíceis ou curiosos. Não havia um assunto que não tivesse um mínimo de conhecimento. É curioso que todas as obras das quais precisei, ele tinha em sua biblioteca particular. Obras que não podiam ser encontradas nem mesmo na biblioteca da Unicamp”, diz Alcir.

O professor do IEL revela que Eulálio possuía uma apurada habilidade em tornar coisas diferentes em algo muito próximo. “Às vezes, um obscuro escritor de Minas Gerais se tornava para ele de uma importância extraordinária, um vulto. Conseguia tantas informações sobre esse escritor que era como se fosse um Graciliano Ramos, por exemplo. Era uma característica dele essa voracidade pelo conhecimento”.


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