A matemática entre elucidação e ampliação: Sobre a informatividade das verdades lógico-matemáticas

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Muito nos orgulha a premiação de nossa tese de doutorado “Teoria Tradicional da informação semântica sem escândalo da dedução” com o prêmio Capes de Teses de 2019 em Filosofia. O prêmio coroa um trabalho frequentemente marcado por impasses, reviravoltas e dúvidas (o que costuma ocorrer com qualquer investigação científica de fôlego, é verdade). Contudo, sabe-se bem que as exposições filosóficas tendem quase naturalmente ao hermetismo, tendência essa somente acentuada em um trabalho como o nosso, inserido no diálogo entre a lógica matemática e a filosofia da informação. Tendo isso em vista, este texto tenta explicar de que trata o trabalho -- quais são os problemas filosóficos que o motivam, para além da Turris Eburnea da academia. Como procuraremos mostrar, a tese se concentra em analisar a natureza da informatividade das verdades matemáticas, muito embora as suas consequências práticas para a análise da informação em outros âmbitos do discurso racional sejam pervasivas (por exemplo, pode-se esperar que os resultados da tese ofereçam um novo olhar sobre o fenômeno da comunicação digital, as “fake news”, o novo negacionismo científico etc.).

Ninguém, a não ser talvez alguns membros do Ministério da Educação, tem alguma  dúvida de que Galileu tinha razão quando disse no século XVII que a matemática é a linguagem da ciência. Certamente ninguém ainda conhece essa linguagem de maneira completa, mas o conhecimento matemático é algo próximo do fabuloso, mesmo que os teoremas em áreas como a matemática, a lógica e a física teórica se refiram a coisas aparentemente fora da realidade. Como quase todo mundo sabe, o que não é útil hoje pode ser essencial amanhã. Einstein não estava pensando em GPS embarcado em smartphones quando formulou a teoria da relatividade, mas seus resultados são essenciais para a geolocalização.

A tradição filosófica esteve por muito tempo presa a uma dupla concepção sobre a natureza da matemática que carrega em si uma tensão mal resolvida. Pensadores como Descartes e Kant -- esse último, na assim chamada fase pré-crítica de seu pensamento -- entenderam, por um lado, que o conhecimento matemático é o resultado de uma tarefa de elucidação conceitual na qual se busca, através das demonstrações matemáticas, articular fatos sobre os significados dos conceitos matemáticos. Ao conhecer matematicamente, não ganhamos nada novo, mas procuramos entender melhor o que já está contido em nossos conceitos.

Por outro lado, é notável que a matemática é uma forma de conhecimento ampliativo. Não sabemos de saída quais são todas as verdades matemáticas. A grande maioria dos fatos matemáticos é objeto do conhecimento de especialistas, isso sem contar a vasta porção de conjecturas que talvez nunca venham a ser decididas no futuro.  Um famoso exemplo é o dos “primos gêmeos”. Dois números primos são gêmeos se diferem de 2, como o par 3, 5, ou 5, 7, ou 17, 19 etc. Existe ou não uma infinidade de primos gêmeos? Ninguém sabe. Uma questão inútil? Certamente não. Nessa hora, cabe lembrar da importante descoberta de Gödel com seu Teorema da  Incompletude, uma joia da lógica, que prova que não é possível determinar a priori quais são todas as verdades matemáticas. De uma perspectiva mais pedestre, deve-se observar o fato quase trivial de que a maior parte da humanidade desconhece de antemão mesmo fatos matemáticos básicos. Portanto, quando os matemáticos provam um novo teorema, eles frequentemente comunicam a nós fatos que antes desconhecíamos, ampliando assim o nosso conhecimento sobre o assunto.

No entanto, essa dupla concepção do conhecimento matemático é insustentável tal como está: se o matemático apenas elucida o que já está contido em certos conceitos, então como é possível através dessa tarefa teórica ampliar nosso conhecimento? Se as verdades matemáticas falam sobre o conteúdo de certos conceitos e se nós temos competência linguística no uso dessas noções, então é razoável supor que nós já temos conhecimento de tais verdades. Talvez esse conhecimento seja, em algum sentido, ‘inconsciente’ -- tal como, por exemplo, temos conhecimento inconsciente sobre eventos de um passado distante em nossas vidas -- mas ele já está disponível no banco de dados que compõe a nossa rede de conhecimento. Contudo, se todo o conhecimento matemático já está disponível pelo simples fato de que somos capazes de usar certos conceitos em nosso discurso, como explicar o caráter ampliativo dessa forma de conhecimento? Será que os matemáticos já sabiam que o último Teorema de Fermat era verdadeiro, bastando apenas esperar 356 anos desde que Pierre de Fermat formulasse a questão em 1637 até a sua demonstração em 1993 pelo matemático Andrew Wiles em 129 páginas de simples ‘elucidação’?

Os filósofos tradicionais acabaram por concluir que a tensão entre elucidação e ampliação compunha um dilema insolúvel. Na visão desses filósofos, era preciso abrir mão de um dos chifres do dilema. Ou a matemática não é uma simples atividade elucidativa, ou os diferentes resultados matemáticos não ampliam em nada o nosso conhecimento.

Como exemplo da primeira via de solução, temos Kant na Crítica da Razão Pura (1781). A partir dessa obra, Kant revoluciona o seu pensamento sobre a natureza da matemática e passa a sustentar que quando raciocinamos matematicamente, não abordamos meros conceitos, mas antes construímos objetos “na intuição pura do espaço e do tempo” e observamos as suas propriedades. Ou seja, na visão crítica kantiana, a matemática seria ampliativa justamente porque não seria apenas elucidação de conceitos. Como exemplo da segunda via de solução, temos Wittgenstein no Tractatus (2921), para quem a matemática é analítica, somente articula as relações estruturais que os conceitos matemáticos mantêm entre si, mas não tematiza qualquer domínio de objetos em particular. Seria antes uma ilusão pensar que a matemática é capaz de ampliar o nosso conhecimento.

Com todo o respeito devido a Kant e Wittgenstein, cremos que é, sim, possível compatibilizar os aspectos ampliativo e elucidativo do conhecimento matemático. A tensão entre elucidação e ampliação é apenas um falso dilema. Embora a matemática somente elucide o conteúdo de certos conceitos, ela é, não obstante, uma forma de conhecimento ampliativo. Como é possível isso?

Basicamente, na tese mostramos que o falso dilema entre elucidação e ampliação se baseia na premissa incorreta de que a nossa competência linguística no uso de conceitos matemáticos envolve o completo conhecimento de seus conteúdos semânticos. Ou seja, segundo essa premissa inadequada, um falante competente da linguagem da matemática teria o conhecimento completo, ainda que ‘inconsciente’, de todos os fatos sobre o significado das expressões dessa linguagem.

Essa premissa vem sendo desmontada na literatura filosófica contemporânea, em especial por reflexões externalistas em filosofia da linguagem. Os filósofos externalistas têm nos mostrado convincentemente que os significados das nossas palavras “não estão na nossa cabeça”, mas são dependentes de fatores externos a nós, seja de natureza física ou social. Um exemplo clássico é o seguinte experimento mental de Putnam. A frase “este copo está cheio de água” significa o mesmo que “este copo está cheio de H2O” pois em nosso universo água é H2O. No entanto, em um outro universo apenas imaginável em que a composição química da água fosse outra, a frase “este copo está cheio de água” já teria outro significado, não por qualquer coisa que se passou em nossas mentes, mas sim porque as condições externas a nós teriam mudado de forma relevante. Ou seja, a partir de exemplos como esse, os externalistas têm nos mostrado que a nossa competência semântica é relativamente independente do nosso conhecimento sobre o significado de nossas palavras.

Na tese mostramos, com exemplos similares, que o mesmo se passa com o nosso uso de expressões lógicas e matemáticas. Nós temos um conhecimento imperfeito, incompleto, sobre o significado dessas expressões, embora consigamos usá-las competentemente no discurso. Propomos a formalização desse conhecimento imperfeito do significado de expressões lógico-matemáticas em termos de um sistema de lógica não-clássica conhecido na literatura da área como 'semântica urna', proposto nos anos 70 por Veikko Rantala. Com base nisso, foi possível desenvolver uma teoria da informação que captura a real informatividade de enunciados lógicos e matemáticos.

Por esse ponto de vista torna-se bastante fácil entender como é possível que a matemática seja simultaneamente ampliativa e elucidativa. Ela é elucidativa porque nos revela o significado de nossas palavras. Mas é também ampliativa porque o significado de nossa linguagem é algo externo a nós. A relação que mantemos com nossa própria linguagem é bipolar: ao mesmo tempo em que se trata de uma ferramenta cujo uso dominamos intimamente, nós somos com relação a ela tal como o linguista quineano, incapaz de determinar os mecanismos internos de uma língua estrangeira. A matemática serve, justamente, para nos informar sobre as maquinações internas dessa nossa ferramenta indispensável. Ela torna a língua estrangeira da matemática em uma língua materna. Nos conduz da sintaxe à semântica. Sem ela, somos como o hóspede do ‘quarto chinês’ no exemplo de Searle, que responde mecanicamente frases em chinês sem propriamente compreendê-las. Mas com ela, nos tornamos, de imediato, em falantes fluentes do seu mandarim.

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Bruno Ramos Mendonça é professor da Universidade Estadual do Paraná (Unespar). Tem licenciatura e mestrado em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e doutorado em filosofia pela Unicamp. Atua em temas de epistemologia e filosofia da lógica.

Walter Alexandre Carnielli é professor titular do Departamento de Filosofia da Unicamp. Foi diretor do Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência (CLE) da Unicamp e presidente da Sociedade Brasileira de Lógica, tendo ocupado ambos os cargos por dois mandatos.

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Bruno Ramos Mendonça e Walter Alexandre Carnielli

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