Edição nº 608

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 26 de setembro de 2014 a 05 de outubro de 2014 – ANO 2014 – Nº 608

O devir do desenho no debate artístico brasileiro


Ambígua a situação do desenho como objeto de arte no Brasil. Parece ser, entre nós, um gênero particularmente incômodo e cuja fruição é limitada pelo número de instituições efetivamente dedicadas à sua exibição. Há pouco, vimos o belo projeto do Gabinete do Desenho do Museu da Cidade de São Paulo ser desmantelado como coleção e ter peças do seu acervo transferidas ao Parque do Ibirapuera. Em verdade, era um dos únicos casos em nosso país em que um amplo acervo – de excelente qualidade – estaria constantemente exposto, permitindo, assim, uma compreensão ampla dessa prática ou meio de expressão bem como das suas qualidades marcantes, seja como processo imediato de notação e invenção artística, seja como obra finalizada. Há um prazer intrínseco na observação do desenho, que creio derivar da constatação simples de que “todos”, em algum momento, desenham, sejam bonecos de palito, notações rápidas ou, mesmo, estudos de modelo vivo acadêmicos ou projetos de arquitetura. Observar o desenho, portanto, seria reconhecer os elementos-chave da linguagem visual.

Seria de desejar que todos os nossos grandes museus, coleções privadas e bibliotecas mantivessem seus gabinetes de desenho e investissem na divulgação e apresentação constante desse material, pois o desenho, inúmeras vezes, pode alterar a compreensão que temos de um determinado artista. A exposição e o livro que se dedicam, neste momento, a Manoel de Araújo Porto-Alegre (Instituto Moreira Salles/ Manoel de Araújo Porto-Alegre, singular e plural, por Julia Kovenski e Letícia C. Squeff) é um exemplo: os desenhos de Porto-Alegre revelam um lado completamente novo desse historiador/crítico/artista que nos obriga a redimensionar os limites de sua atuação e, mais relevante, nos faz pensar em como se deu sua educação visual. Como, através da cópia ou da invenção, um desenhista se apropria de elementos externos, de códigos artísticos, soluções formais e modela seus gestos no caminho do efeito que deseja imprimir ao resultado final.

Nesse sentido, a iniciativa dos Cadernos de Desenho publicados pela Editora da Unicamp, sob a coordenação de Lygia Eluf, vem prestar um múltiplo serviço, se podemos dizer assim, ao debate sobre o tema. Em primeiro lugar, porque o “devir” do desenho, a garantia do seu futuro e a permanência no repertório visual – seu tempo de permanência na berlinda das artes – é menor entre nós. A depender dos esforços de exibição, um desenho pode desaparecer por 50, 100 anos em uma mapoteca ou reserva e jamais ser considerado entre as obras que compõem o “arco” de imagens oficiais de um artista. Coleções menosprezadas, tais como as de desenhos anatômicos, botânicos, exercícios de notação topográfica e mesmo as coleções efetivas de artistas, são um manancial amplo, mas pouco valorizado no Brasil. Os catálogos e livros são uma maneira de reconsiderar esses objetos e criar um lugar para sua apreciação e circulação no país.

O sétimo volume da coleção, dedicado a Iberê Camargo, é, de certa forma, uma demonstração do que tentamos analisar acima. A seleção revela os desenhos associados à sua formação – mas já cheios do sentido dramático que caracterizaria o trabalho desse gravador e pintor – e conclui com os esboços para as últimas obras do artista, particularmente a série dos Ciclistas e as demais pinturas dos anos 1990. O texto de Eduardo Kickhöfel trata de criar as balizas para que compreendamos a articulação da formação de Iberê Camargo a uma grande tradição histórico-artística, propondo a compreensão da obra desse artista à luz da tradição humanística do Renascimento. Sob esse ponto de vista, seria curioso publicar, também, uma coleção dedicada a cópias dos assim chamados “grandes mestres” pelos artistas do século XX brasileiro: Iberê, por exemplo, é o autor de uma bela cópia de A família de Lot deixando Sodoma, de P. Paul Rubens. Seria revelador para a compreensão dos limites entre tradição e vanguarda, ainda um tema no estudo da arte no Brasil do século XX.

O que nos marca, finalmente, é o sentimento trágico da seleção de desenhos. Artista único, Iberê Camargo cultivou a literatura, expressando-se em breves contos, em esboços de memórias ou no registro textual cuidadoso dos procedimentos artísticos por ele desenvolvidos, particularmente no campo da gravura. Sua biografia trágica, incluindo o assassinato de um engenheiro, em 1990, a prisão e todo o processo que se seguiu, parece ter deixado marcas em sua obra. Assim, não é sem compaixão que abrimos as páginas deste Caderno de Desenho e passamos os olhos sobre os desenhos que resultaram na série dos “idiotas”. Dos guaches, aguadas e nanquins sobe a consciência da precariedade da condição humana e a força de um artista que não temeu sondar seu espírito em busca de uma saída.

 

André Tavares é desenhista, mestre em história da arte e doutor em história pelo IFCH-Unicamp. É também doutor em artes pela Universidade Federal de São Paulo, onde é professor no curso de História da Arte da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (EFLCH-Unifesp).

 



Serviço

Livro: Cadernos de Desenho – Iberê Camargo
Organizadora: Lygia Eluf
Texto: Eduardo Kickhöfel
Coedição: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo
Preço: R$ 70,00