Edição nº 608

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 26 de setembro de 2014 a 05 de outubro de 2014 – ANO 2014 – Nº 608

À espera do direito à cidade

Estudo aponta que políticas de desenvolvimento urbano não alteraram o contexto dos municípios brasileiros

Os avanços proporcionados pelas políticas públicas voltadas ao desenvolvimento urbano no Brasil, executadas no período de 1988 a 2013, não foram suficientes para alterar de forma significativa o contexto das cidades brasileiras. A conclusão faz parte da dissertação de mestrado do economista Raphael Brito Faustino, defendida no Instituto de Economia (IE) da Unicamp, sob a orientação do professor Marcelo Weishaupt Proni. De acordo com o autor, os programas levados a cabo nos 25 anos considerados no estudo refletem em boa medida a forma como o capitalismo foi estruturado no país. “As desigualdades que verificamos no campo social também foram reproduzidas em relação às cidades”, afirma o pesquisador. Vídeo

Raphael Faustino explica que o período tomado para análise concentrou alguns marcos importantes em relação às políticas brasileiras de desenvolvimento urbano. O primeiro deles foi a promulgação da Constituição de 1988. Pela primeira vez, a Carta contemplou artigos que trataram expressamente da política urbana, além das políticas setoriais. “A questão do saneamento e da mobilidade aparecem em vários capítulos e artigos, algo que não havia ocorrido anteriormente. Além disso, a Constituição também classificou de forma inédita o tema da habitação como um direito social, o que conferiu uma nova dimensão aos programas para o setor”, elenca o economista.

Outra medida relevante adotada no período foi a aprovação, em 2001, do Estatuto da Cidade, um conjunto de normas voltadas à regulação do “uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental”, como está definido em seu parágrafo único. O terceiro marco destacado pelo autor da dissertação foi a criação, em 2003, do Ministério das Cidades. “No conjunto, esses três acontecimentos proporcionaram avanços quanto à aprovação de marcos regulatórios, estruturação institucional e até mesmo ampliação de recursos para a execução de programas. Ocorre, porém, que essas iniciativas não foram suficientes para mudar o padrão de desenvolvimento urbano de nossas cidades”, reforça.

De acordo com Raphael Faustino, o Estatuto da Cidade foi sancionado com o objetivo de regulamentar os artigos constitucionais. A sua análise pelo Congresso refletiu os embates de forças presentes no Legislativo. A matéria foi aprovada rapidamente pelo Senado, mas tramitou por mais de uma década na Câmara dos Deputados. “Ao mesmo tempo em que existiam segmentos progressistas que defendiam que o Estatuto deveria garantir a ampliação de direitos à sociedade, outra frente, comprometida com o capital imobiliário, trabalhava em sentido contrário. A versão final da legislação espelha esse embate. Embora tenha sido o avanço regulatório mais importante após a Constituição, o Estatuto também apresentou algumas limitações”, analisa.

O economista cita o fato de a legislação ter sido criada para orientar as políticas locais. Desse modo, o Estatuto definiu instrumentos importantes como as operações urbanas e o IPTU progressivo, entre outros mecanismos que seriam regulamentados no plano municipal. “Ocorre que a implementação das medidas ficou muito dependente das forças políticas e sociais de cada cidade. Assim, mesmo tendo sido considerado uma lei de excelência, o Estatuto não foi aplicado da mesma forma nos diferentes municípios. Isso criou, obviamente, uma grande assimetria entre as cidades brasileiras”, diz.

Não por outra razão, prossegue Raphael Faustino, decorridos 13 anos da sua criação o Estatuto ainda é questionado quanto à sua eficácia. “Alguns dos profissionais que discutem as políticas urbanas consideram que a legislação não foi incorporada pela grande maioria dos municípios, o que limita os programas de desenvolvimento urbano. Uma forte evidência disso é que o cenário de crise urbana tem se aprofundado nos últimos anos”, pontua. Uma consequência dessa crise, conforme o autor da dissertação, foram as manifestações populares de junho de 2013, ocasião em que os moradores de várias cidades foram às ruas. No início, o alvo das manifestações foram as deficiências na área da mobilidade urbana. Posteriormente, outras reivindicações foram assimiladas pelo movimento, que também passou a exigir mais investimentos em educação, saúde e habitação, além do fim da corrupção.

A insatisfação popular, ratifica o economista, também é um claro sinal de que as políticas públicas de desenvolvimento urbano definidas nas últimas décadas não conseguiram romper com o padrão de intervenção do Estado e nem tampouco assegurar aos cidadãos o direito à cidade, como consignado no Estatuto da Cidade. “Temos um modelo de política muito vinculado aos interesses do capital privado. O Minha Casa, Minha Vida é um exemplo disso. Embora esteja espalhado por todo o país e possa ser considerado o maior programa da história na área da moradia, tanto em número de unidades quanto nos recursos financeiros envolvidos, levando em consideração que existe há apenas cinco anos, ele está diretamente ligado aos interesses do capital vinculado à construção civil. Em outras palavras, esse capital está na base da estruturação do programa”, adverte.

Na mesma linha, Raphael Faustino chama a atenção para o problema da crise hídrica que afeta diversos Estados, São Paulo de maneira mais pronunciada. Tal cenário, a seu juízo, está associado à forma como as companhias de saneamento são geridas, fundadas em um modelo desenhado ainda no período da ditadura militar. “As políticas de saneamento são muito dependentes dessas empresas, cuja estrutura varia muito de um Estado para o outro. Além disso, a avaliação dos resultados apresentados por elas se baseia muito mais no desempenho econômico-financeiro que se reflete na Bolsa de Valores e nos dividendos que distribuem, do que na capacidade que têm de realizar obras de saneamento ou expandir a cobertura dos serviços”, critica. 

Outro nó ainda não superado, aponta o autor da dissertação, é o da terra urbana. Os instrumentos previstos no Estatuto da Cidade, destinados à construção de cidades menos desiguais, têm sido constantemente desconsiderados pelos gestores públicos, quando não pelo Judiciário. Um desses mecanismos possibilita, por exemplo, o adensamento de regiões centrais que sofreram processos de esvaziamento. Entretanto, em vez de estimularem a ocupação de um espaço já dotado de infraestrutura urbana, as políticas públicas têm privilegiado a construção de núcleos habitacionais na periferia das cidades, em áreas frequentemente desprovidas de serviços como saúde, educação e transporte.

Em momento algum, afirma o economista, as políticas de desenvolvimento urbano romperam com os proprietários de terras ou com os rentistas. “A decisão tem sido pela construção de mais unidades habitacionais, postura que está aliada aos interesses de especuladores. Em nenhum momento tem se questionado o fato de o país ter mais imóveis vazios que o total do seu déficit habitacional. Ou seja, se é preciso ter uma política de construção de unidades habitacionais, também é necessário ter outra voltada ao aluguel social, de modo a estimular a ocupação dessas unidades ociosas. Isso contribuiria para reduzir o número de deslocamentos da população, bem como reduziria os investimentos para levar serviços e infraestrutura para pontos distantes dos municípios”, pondera o autor da dissertação.

Um olhar mais atento para toda essa problemática, observa Raphael Faustino, já seria suficiente para revelar que as políticas de desenvolvimento urbano se sobrepõem às ações setoriais nas áreas de mobilidade, saneamento, habitação etc. “Todos os problemas urbanos estão inseridos em algo maior, que é a dificuldade de superação do subdesenvolvimento brasileiro. Esses entraves estão diretamente relacionados com a forma como o capitalismo brasileiro se estruturou. Assim, se a questão da desigualdade se reflete na renda, ela se reflete também nas cidades. Os avanços que registramos nos últimos dez anos, como a redução do desemprego e o aumento da renda de parte da população, não foram suficientes para alterar a realidade urbana brasileira. O modelo econômico nacional,  marcado pela desigualdade, não tem permitido a execução das mudanças estruturais que garantiriam a superação das nossas desigualdades no que diz respeito às cidades”, avalia.

Instigado a fazer uma análise em perspectiva sobre o tema, tendo como pano de fundo o atual processo eleitoral, o pesquisador diz que nada indica que o padrão em vigor deverá mudar nos próximos anos, a despeito de quem vença a corrida presidencial. “A política urbana já teve mais destaque no debate eleitoral em outros pleitos. Ademais, quando o assunto é abordado pelos atuais candidatos, as manifestações são no sentido de se manter o que aí está. Todos prometem, por exemplo, que vão preservar ou ampliar o Minha Casa, Minha Vida. Não há questionamentos ao modelo. Ninguém tem discutido possíveis mudanças estruturais. Nenhum dos presidenciáveis fala sobre o papel das companhias estaduais de saneamento ou sobre um novo arranjo que solucione os problemas regulatórios. Infelizmente, tudo indica que não teremos mudança de padrão. Uma ou outra prioridade pode ser alterada, mas o modelo em vigor não deverá ser substancialmente modificado”, antevê.

 

Publicação

Dissertação: “Avanços e limites das políticas de desenvolvimento urbano no Brasil (1988-2013)”
Autor: Raphael Brito Faustino
Orientador: Marcelo Weishaupt Proni
Unidade: Instituto de Economia (IE)