Edição nº 608

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 26 de setembro de 2014 a 05 de outubro de 2014 – ANO 2014 – Nº 608

Começar de novo

Tese mostra como, no auge do sucesso, Ivan Lins se reinventou e redirecionou sua carreira

Na história da música popular brasileira, alguns artistas, mesmo consagrados pelo público e crítica, não receberam até hoje a devida atenção da academia ou da literatura especializada. É o caso de Ivan Lins, um músico pouco estudado, que agora é personagem central de tese de doutorado na Unicamp. A autora do estudo, Thais Lima Nicodemo, revisitou 15 anos da carreira do compositor para tentar entender como Ivan Lins conseguiu estabelecer seu lugar na MPB, e o que a trajetória dele representou no cenário cultural, social e político dos anos de 1970 e meados de 1980, período de recorte temporal da tese.

“Meu trabalho teve três frentes: a canção popular brasileira, sua relação com a sociedade no período da ditadura militar e as transformações da indústria da cultura. O objetivo era entender um panorama mais amplo de um momento de mudanças muito intensas no país”, explica. É uma constatação de Thais a de que Ivan Lins não tem espaço proporcional ao que representa na produção da MPB. “Escolhi estudá-lo na tentativa de fazer jus à ausência dele da historiografia e, principalmente, porque o considero um artista muito emblemático desse momento do Brasil, marcado pela intensificação da industrialização e urbanização da sociedade, dentro do processo de globalização da economia e de internacionalização da cultura”. Para a autora, o compositor processou muito bem esta época, que exigiu do artista uma adaptação a novas formas de atuação frente a uma nova dinâmica organizacional da indústria cultural. 

Thais também tem uma história pessoal com Ivan Lins. É pianista, como ele, e aos 13 anos dedilhou no instrumento as primeiras notas de “Daquilo que eu sei”. A pesquisadora já havia se encantado com outras canções como “Bandeira do Divino” e “Somos todos iguais nessa noite”. Desde os 10 anos frequenta os shows do compositor, que sempre a recebeu no camarim. Desde então, ela o considera uma espécie de padrinho. “Ele sempre me deu muita atenção, me ouviu tocar, incentivou, deu conselhos, participou da minha evolução pessoal. Durante a pesquisa dialogamos muitas vezes”.

Para compor sua tese, Thais procurou periódicos da época. Fez uma extensa investigação em jornais e revistas. “Selecionei tanto entrevistas como matérias e críticas sobre Ivan Lins. Foi um material com o qual dialoguei o tempo inteiro para entender não apenas a recepção da obra dele, mas também como funcionava o processo de legitimação do artista até se tornar um nome consagrado”. Mas o material primeiro, sempre foi a música. Thais partiu das gravações e transcreveu muita coisa, observando, também, a relação entre música e letra.

Nesse aspecto, uma ressalva. Ivan Lins escreve poucas letras, relembra a autora da pesquisa. A maior parte das palavras cantadas por ele é do parceiro Vítor Martins, paulista de Ituverava. “Independentemente de fazer a música ou não, Ivan Lins é um cancionista. Ele dá muita atenção à palavra. E a maneira como amarra a música com o texto é sempre muito cuidadosa. Todo artesanato musical dele é bastante meticuloso”.

Nem todos que acompanham a carreira de Ivan Lins sabem, mas quando ele começou, no final dos anos 1960, foi como compositor ligado ao soul. Foi inclusive um dos grandes expoentes do estilo, muito explorado neste período pelos brasileiros. “Tanto a parte performática quanto a maneira de cantar, rouca e gritada, faziam sucesso no país. Ivan Lins fazia uma praia mais rhythm and blues que tinha a ver com Elton John, Stevie Wonder e Jimmy Webb” comenta Thais. Basta acessar o áudio de seu primeiro LP, “Agora” (1970), e perceber a diferença com o artista que se conhece hoje.

O Ivan Lins soul fez tanto sucesso em 1970 que ultrapassou em vendas Roberto Carlos. Thais tem os dados do Ibope que comprovam o feito. “As gravadoras estavam buscando ampliar o público jovem e o estilo que Ivan Lins fazia ia muito de encontro a este interesse”. O começo de sua carreira se dá pela atuação em festivais universitários, como integrante do MAU – Movimento Artístico Universitário, do qual também faziam parte Gonzaguinha, Aldir Blanc, César Costa Filho, entre outros. “Eram artistas jovens, universitários que começaram a fazer música quando os mais conhecidos como Caetano, Chico e Gil estavam exilados. Havia certa retração no cenário da MPB, pós-AI-5, e eles se apresentavam como um novo movimento, depois da Bossa Nova e da Tropicália”. 

No V Festival Internacional da Canção de 1970, Ivan Lins levou o segundo lugar com a música “O amor é o meu país”. Foi quando a Rede Globo o chamou junto a seus colegas do MAU para fazer o programa Som Livre Exportação. Ivan Lins e Elis Regina se tornaram apresentadores ao longo da exibição, que ocorreu entre 1970 e 1971. Na mesma época o compositor começou a fazer trilhas de novelas para a emissora e, sendo cada vez mais popular, começaram as críticas, e divergências, especialmente entre setores da imprensa, do público e até entre parceiros do MAU.

 

Guinada

As críticas reverberaram e Ivan Lins teve consciência que era hora de mudar. “Ele passa da ascensão ao declínio, entre 1970 e 1972. Havia um olhar bastante contraditório entre o que era fazer algo artístico e o que era fazer algo comercial, e o incômodo ficou mais latente, acredito que também por causa do grande sucesso comercial e do lugar que Ivan Lins ocupou na Globo, e a relação da empresa com a ditadura e o governo militar”. O compositor reage às críticas, salienta Thais, e muda o jeito de cantar distanciando-se do soul. Neste momento a autora da tese percebe uma intenção bastante clara de Ivan Lins de ser um artista de prestígio no meio da MPB.

“A dinâmica que baliza a MPB nos anos 1960 é uma coisa, na década de 1970 é outra”, observa. Os artistas de uma segunda geração precisavam se estabelecer de maneira diferente, uma vez que grandes gravadoras já haviam consolidado sua atuação no país, sobretudo a partir do governo militar, que promoveu o mercado cultural; as empresas passaram a trabalhar com elencos fixos de nomes consagrados nos festivais dos anos 1960. Os artistas que apareciam depois como Ivan Lins e João Bosco, entre outros, já tinham de lidar de outra forma para conseguir um espaço no mercado. Aí entra, como diz a autora, o “jogar o jogo”, que o compositor estudado soube muito bem fazer. “Na visão do artista ele está em busca da verdade dele, mas sua atuação também mostra uma dinâmica do mercado, uma nova organização das indústrias que exige do artista uma postura diferente, muito mais profissionalismo, em meio a um espaço cada vez mais racionalizado”.

Com o título “Modo Livre”, o compositor dá início a uma reviravolta na carreira. O disco foi um fracasso de vendas, como assinala Thais. No entanto foi nesta fase que Ivan Lins conheceu Vítor Martins, seu principal parceiro. Daí começa outro Ivan Lins, em meados dos anos 1970. “Ele grava pela RCA Victor e muda completamente, passando a fazer uma canção crítica, que fala sobre o contexto opressivo”, detalha a pesquisadora. Vem o reconhecimento, mas ainda não o sucesso. “Ele ficou muito taxado pelo soul e pela relação com a Globo e, nesse momento, tenta mudar sua imagem pública”.

Outra guinada na carreira foi a ida do compositor para a EMI Odeon “que já tinha um filão de MPB, com um catálogo reconhecido”. Esse é o momento de consagração de Ivan Lins segundo a autora. “Primeiramente, ele grava o disco ‘Somos todos iguais nessa noite’, bem sucedido comercialmente, mas ele ‘estoura’ mesmo é com ‘A noite’. São as canções do período da abertura política, que dialogam com essa temática. Entre 77 e 80 ele realmente se legitima como artista da MPB”.

Nesse momento, de acordo com Thais, Ivan Lins usa muitos ritmos brasileiros e se aprofunda na pesquisa de estilos nacionais. “A música internacional ocupa um espaço muito significativo no país e existe essa ideia de resgate de um caráter nacional, da autenticidade e preservação da música nacional”. É a fase de “Bandeira do Divino”, quando o carioca da Tijuca se rende ao interior do Brasil e ao Nordeste, acrescentando à sua música o baião, o xote, o repente e outros elementos da cultura popular, como a folia de reis.

 

Da raiz ao estrangeiro

Uma nova década, a de 1980, marca mais uma mudança. Com o fim do AI-5 e com a Lei da Anistia, a MPB passa a diluir seu sentido crítico e se abre ainda mais para o universo da cultura pop. Ivan olha para o mercado internacional e estabelece uma relação com o produtor musical estadunidense Quincy Jones. Artistas renomados como George Benson começam a gravar Ivan Lins. O álbum “Give me the Night”, por exemplo, tem “Dinorah” e “Love Dance”.

O mercado internacional, especialmente norte-americano, pede mais e, em 1984, os instrumentistas de jazz Lee Ritenour e Dave Grusin gravam com Ivan Lins, que excursiona com os músicos pelos EUA. Lembrando que Sarah Vaughan gravou “Madalena”, ainda em 1972. “Acho que o que chama a atenção dos jazzistas são os elementos das composições dele, as harmonias bastante complexas, uma linguagem bem jazzística, mas com o tempero da música brasileira”, reflete Thais.

O recorte que Thais faz na tese termina em 1985 com a participação do compositor no primeiro festival Rock in Rio, muito bem recebida pelo extenso público, e a gravação do LP Ivan Lins, pela Som Livre, que foi seu primeiro disco de ouro. O artista muda sua imagem. “Ele tira a barba, muda o visual, vira meio sex symbol, e também consegue reconhecimento”. Estratégias de um artista de caminhos inusitados, envolvido em uma trama de tensões e contradições diante da reorganização do mercado cultural. “É um artista complexo que vivenciou esse momento de massificação, de globalização da cultura, e conseguiu acompanhar as mudanças e encontrar um espaço de atuação. Um personagem emblemático para o entendimento de novas formas de atuação dentro de uma busca por um espaço em um meio de difícil inserção”.

 

Publicação

Tese: “Começar de Novo: a trajetória musical de Ivan Lins de 1970 a 1985”
Autora: Thais Lima Nicodemo
Orientador: Antonio Rafael Carvalho dos Santos
Unidade: Instituto de Artes (IA)