Edição nº 565

Nesta Edição

1
2
3
4
5
6
8
9
10
11
12

Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 17 de junho de 2013 a 23 de junho de 2013 – ANO 2013 – Nº 565

Quando a piada reforça o estereótipo

Estudo desenvolvido no IEL demonstra como anedotas podem ampliar preconceito

Alan Lobo de Souza saiu de Salvador para morar fora. Ingressava no mestrado em Linguística, na Unicamp e, quando desembarcou em São Paulo, levou um susto. Ele sabia da existência das piadas sobre os baianos, mas se surpreendeu ao constatar que os estereótipos a eles associados vão muito além daqueles relacionados à preguiça. “Descobri estereótipos que eu nem sabia que existiam”, diz Alan, autor da dissertação de mestrado “Estereótipos em piadas sobre baiano”.

O ponto de partida de seu o trabalho foi um livro de piadas, desses vendidos em bancas. Não que ele tivesse qualquer dificuldade para encontrar muitos exemplos.

Há muitos que consideram as piadas ou “enunciados” politicamente incorretos, preconceituosos, sem graça. “Qual discurso se constrói a partir da leitura dessas piadas? Como essa piada circula, e de que forma as pessoas se manifestam sobre aquele enunciado, foram algumas das minhas indagações iniciais”, diz. O método para estudar as piadas veio da Análise do Discurso (AD), um campo da Linguística que estuda o funcionamento dos sentidos na relação da língua com a história, isto é, objetiva analisar as condições de produção de determinado discurso. Para as teorias da AD, todo discurso é construído historicamente.


Preguiça histórica

Como foi construído historicamente o estereótipo que relaciona o baiano ao sujeito preguiçoso? Uma das possíveis explicações Alan encontrou em estudos sobre o período de escravidão. Salvador, capital baiana, é a cidade com maior número de negros fora do continente africano, e os escravos eram comumente chamados de preguiçosos.

Outro estereótipo verificado nas piadas analisadas pelo autor é o do baiano ignorante. É possível, ressalta, que o estereótipo esteja relacionado com a migração em massa do nordestino para outros cantos do país a partir da década de 50. “A Bahia oferecia mão de obra barata, sem estudo, que acabava ocupando dessa forma sempre cargos marginais. Nesse caso, o baiano é caracterizado a partir do outro escolarizado, detentor de cargos socialmente valorizados e bem remunerados”, assinala.

Nas piadas, a figura que está sendo tratada como objeto do riso já sofreu retaliações e, por isso, quem reconhece a história não acha graça na piada, mesmo tratando-se de humor, acredita o autor, que também ressalta um dos aspectos do humor. “O texto humorístico é voltado para o riso, mas não é bem isso que acontece. Nem todo texto humorístico é encarado como tal”.

De acordo com Alan, nos últimos anos o texto humorístico, por ter como base o estereótipo, passou a ter a ênfase do preconceito. “Vários teóricos do humor afirmam que o humor trabalha com o rebaixamento, o mote inicial do humor é rebaixar seu adversário por vias de terceiros que ouvem e compartilham daquele riso. Hoje isso é encarado como politicamente incorreto”. O autor observa, no entanto, que as tentativas de impor limites ao humor vem desde a Antiguidade – rir das autoridades e políticos locais poderia ser um mau negócio. Na Idade Média, por exemplo, a Igreja era um dos alvos preferenciais. “A cada dia que passa, os grupos sobre os quais não se pode fazer piada defendem a existência do preconceito. É controverso porque os judeus, por exemplo, fazem piadas de judeus, brasileiros fazem piada sobre si mesmo”, afirma.

Alan enumerou algumas piadas e as dividiu em três grupos. As que trabalham com o estereótipo do baiano preguiçoso, as que tratam o baiano como ignorante, indesejado ou marginal e um terceiro tipo foi postulado, que seria chamado de “piada de resistência”, que trabalha com o estereótipo do baiano esperto, que sabe “dar o troco”. Porém, o pesquisador encontrou apenas um exemplar desta forma de piada.

“Nesta piada, o baiano está deitado numa rede, passa um paulista suado, de terno e gravata, e diz: ‘você sabia que a preguiça é um dos pecados capitais?’. Ao que o baiano responde: ‘a inveja também.’ ” Alan já decorou os enunciados: “nesse caso, se constrói um estereótipo a partir do estereótipo do outro”, acrescenta.


Não é só na piada

Qualquer forma de manifestação do estereótipo relacionado a quem nasce na Bahia interessou a Alan durante a pesquisa. Menciona um caso que repercutiu na mídia, envolvendo a cantora Gal Costa, que reclamou da suposta preguiça de um técnico contratado para um conserto em sua casa e que não foi realizado. “Ela é baiana e se sentiu no direito de dizer que os baianos são preguiçosos”. O enunciado teve tanto nos jornais como no twitter uma recepção enorme de repúdio (a grande maioria), mas também de apoio, mesmo por parte de alguns baianos. Outro exemplo de enunciado estudado por Alan, afora as piadas, veio da prefeitura de Salvador cujo slogan era “Salvador: cidade sede do trabalho”. Para o autor da dissertação, a afirmação de uma característica associada ao baiano, nesse caso a relação com o trabalho, implica, entre outros sentidos, a leitura de um discurso que objetiva contrariar o estereótipo associado à população da cidade, que é o da preguiça.

Além de considerar em suas conclusões que nem sempre o texto humorístico é visto como tal e que a piada de resistência não se sustentaria, Alan sintetizou algumas de suas ideias em paráfrases como “a preguiça baiana seria o simulacro da lentidão”. “Em comédia a gente vê o baiano lento; a preguiça seria a forma pela qual também está caracterizada essa lentidão”.


Publicação
Dissertação: “Estereótipos em piadas sobre baiano”
Autor: Alan Lobo de Souza
Orientador: Sírio Possenti
Unidade: Instituto de Estudos da Linguagem (IEL)