Edição nº 559

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 28 de abril de 2013 a 04 de maio de 2013 – ANO 2013 – Nº 559

Fendas de liberdade


Continuação da página 6

O campo de atuação de Alessandro Pinzani é a filosofia política. Ele ocupa-se, em particular, das teorias da justiça social. O convite da professora Walquiria para participar da pesquisa deveu-se a esse interesse específico. Ao explicar em que aspectos o BolQmília, como objeto de pesquisa, tornou-se importante e trouxe contribuições para as suas investigações, ele observa que, em geral, os estudos de filosofia política no Brasil tendem a permanecer em certo nível de abstração.

Há exceções importantes, frisa, como os projetos de pesquisa social realizados pelo Cebrap ou pelo Centro Brasileiro de Pesquisas em Democracia de Porto Alegre, entre outros. A tendência, no entanto, é a de estudar modelos teóricos sem preocupar-se muito com sua aplicabilidade à realidade social, econômica e política brasileira.

Ainda de acordo com ele, os modelos contemporâneos mais pesquisados no Brasil – como a teoria da justiça como equidade, de Rawls, ou a teoria discursiva do Estado e do direito, de Habermas – partem de pressupostos que no país são dados só parcialmente. Em particular, pressupõe-se que todos os cidadãos tenham alcançado e ultrapassado um nível mínimo de qualidade de vida. “Mas a situação brasileira é diferente, com quase um terço da população que vive perto da linha da pobreza definida pelo FMI. Minha intenção era investigar o que isso significa para a elaboração de uma teoria da justiça mais preocupada com sua concreta aplicação em uma realidade social específica”, salienta Pinzani.

“Ao mesmo tempo, analisar os efeitos de um programa de transferência direta de renda monetária como o Bolsa Família, me ofereceu a possibilidade de estudar a relação entre dinheiro e autonomia individual, que já foi tematizada por Marx e Simmel, entre outros, e que me interessava desde que comecei a ocupar-me da teoria das capabilities de Amartya Sen e Martha Nussbaum”, complementa. Segundo ele, todos esses autores foram fundamentais para elaborar os fundamentos teóricos a partir dos quais foi possível interpretar os dados empíricos recolhidos na pesquisa de campo. Finalmente, era sua intenção voltar a um aspecto importante de uma tradição teórica, na qual ele afirma se reconhecer bastante: a Teoria Crítica.

“Os membros da chamada primeira geração de tal teoria, Adorno e Horkheimer, em primeiro lugar, acreditavam na importância de conjugar pesquisa empírica e teoria social e parece-me que esta visão seja ainda valiosa”, argumenta.

Em relação aos seus achados acerca dos impactos do programa na autonomia das beneficiárias, Pinzani faz questão inicialmente de ponderar que o conceito de autonomia é bastante complexo. Existem, em primeiro lugar, diferentes âmbitos, nos quais é possível falar em autonomia: moral, político, econômico. Em segundo lugar, autonomia é algo que se pode alcançar em diversos níveis. Não há necessariamente uma conexão entre o fato de possuir um alto nível de autonomia econômica, por exemplo, e o de possuir um alto nível de autonomia moral ou política.

“Em nossa pesquisa, partimos de uma definição mínima de autonomia, entendida como a capacidade de elaborar planos de vida e de atribuir direitos e deveres a si e aos outros. Tal definição se aplica aos três âmbitos anteriormente mencionados e deixa aberta a possibilidade de que o indivíduo alcance diferentes níveis de autonomia em cada um deles”, esclarece.

“Ao mesmo tempo, incluímos em nossa visão de autonomia a ideia, defendida em particular por Sen, de que a liberdade individual depende da existência de circunstâncias subjetivas e objetivas que aumentam ou diminuem as opções de ação e de formas de ser que os indivíduos consideram valiosas. Exemplos: a possibilidade de viver livre de doenças endêmicas, como a malária, implica na existência de políticas públicas dirigidas ao combate de tais doenças; a possibilidade de encontrar uma profissão que nos sustente depende da disponibilidade de trabalho na região na qual moramos.” Ao investigar se e em que medida um programa de renda monetária regular como o Bolsa Família contribuía para criar condições materiais capazes de permitir aos beneficiários desenvolver maior autonomia, os resultados coletados deixaram Pinzani moderadamente otimista: pode-se dizer que na vida das beneficiárias abriram fendas de liberdade.

“A experiência de uma renda monetária regular, além de libertá-las da necessidade imperiosz de satisfzazer carências básicas, lhes permite certa autonomia em relação à planificação da vida delas e de suas famílias – não somente em sentido estritamente econômico, mas também no que diz respeito à saída de relações angustiantes de dependência pessoal, particularmente de dependência dos pais, dos maridos, dos irmãos ou cunhados, ou à esperança de uma vida melhor para seus filhos”, constata.

O pesquisador verificou que as beneficiárias passam a assumir uma maior responsabilidade com sua vida, a sentir-se mais “à vontade”, como afirmaram muitas delas nos depoimentos, passam a se perceber como pessoas reconhecidas pela sua comunidade, justamente por causa da regularidade da renda, que faz com que os comerciantes lhes concedam crédito, por exemplo.

“Sem esta possibilidade de planificar pelo menos minimamente sua vida, um ser humano se parece com um animal preocupado somente em caçar comida para si e para seus filhotes”, compara Pinzani.

“Neste sentido, na fala de algumas das mais desprovidas dessas mulheres, emerge a sensação de se ter alcançado somente agora uma realidade plenamente humana. Mas também as outras reconhecem que suas opções existenciais aumentaram significativamente – e isso pode ser lido como um aumento de sua autonomia moral.”

Trecho do livro

Em seguida nos dirigimos para a residência de Dona Madalena, agora com 35 anos. Encontramo-la “batendo feijão” na sua minúscula propriedade. Veio nos atender de modo sorridente, muito diferente do ano anterior, quando a encontramos lacônica, de semblante sombrio, tendo caído em prantos a certa altura da entrevista. Fotografamo-la juntamente com seus filhos, e neste momento ela fez questão de contar que no ano anterior a tínhamos encontrado num dos momentos mais difíceis de sua vida, pois queria se separar do marido. Agora, havia conseguido a separação e a vida havia melhorado muito. Perguntamos-lhe quanto estava recebendo pelo programa BF, e ela muito alegre nos disse: “Estou recebendo R$ 112 com esse pequeno aumento que teve”.

À pergunta sobre o que havia mudado na sua vida após seu ingresso no programa Bolsa Família, Madalena respondeu: “Adoro, porque eu não sei o que seria da minha vida sem ele, né? Ia ficar meio difícil, com três filhos. Acho ótimo, ótimo, porque se não fosse o Bolsa Família, eu não sei o que seria da família pobre”.

Do ponto de vista das mulheres entrevistadas, salta aos olhos seu desejo de garantir um futuro melhor a seus filhos. Pode-se dizer que é essa quase sua única esperança na vida: fazer deles pessoas menos destituídas de capacitações do que elas, enfim, equipá-los melhor para que busquem outro destino.

(Relato em Inhapi-AL, em 2007)