| Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 373 - 24 a 30 de setembro de 2007
Leia nesta edição
Capa
Efluentes industriais
Anemia falciforme
Iniciação científica
Sistemas cromatográficos
Ensino superior
Escravos na indústria
Colonialismo revisto
Painel da Semana
Teses
Livro da Semana
Unicamp na mídia
Destaques do Portal
Biopolítica
Bernardo Caro
 


11

Tese de doutorado mostra como as relações entre
política e polícia geraram a banalização da violência no país

A biopolítica e a vida que
se pode 'deixar morrer'

MANUEL ALVES FILHO

A historiadora Susel Oliveira da Rosa, autora da tese: "As vidas tornam-se descartáveis" (Fotos: Antônio Scarpinetti/Divulgação)A violência e a tortura, duas práticas que se intensificaram durante ditadura militar brasileira, seguem fazendo parte da rotina das instituições policiais do país. O princípio do espancar ou atirar primeiro e perguntar depois continua orientando, com freqüência inquietante, o trabalho dessas corporações, seja no Rio de Janeiro, São Paulo ou Rio Grande do Sul. A constatação é da historiadora Susel Oliveira da Rosa, que investigou em sua tese de doutorado os vínculos entre polícia e política e como essa conexão contribui para a banalização da violência na atualidade. “No Brasil, há uma clara assunção da vida pelo poder”, afirma a pesquisadora, que foi orientada pelo professor Ítalo Tronca, do Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp.

Capital gaúcha é o foco da investigação

A pesquisa desenvolvida por Susel aborda as histórias de vida e morte de oito vítimas da violência policial na cidade de Porto Alegre, entre os anos de 1960 e 1990. Entretanto, ela aproveita o estudo para fazer uma reflexão aprofundada sobre essa problemática no país. De acordo com a pesquisadora, a banalização da violência não é um fenômeno contemporâneo e nem tampouco brasileiro por excelência. “A questão não é nova, pois nos remete ao século XIX, época em que o direito soberano foi cedendo lugar à biopolítica, por meio da qual o Estado passou a gerir a vida da população. Também não é exclusivamente nacional, dado que faz parte de outras culturas. Entretanto, não se pode negar que no Brasil o problema assumiu proporções assustadoras”, afirma.

Dados das Organizações das Nações Unidas (ONU) mencionados na tese da historiadora indicam que 1.295 pessoas foram mortas pelas forças policiais de São Paulo e Rio de Janeiro em 2002. Detalhe: várias delas não tinham passagem pela polícia e apresentavam sinais de execução. Susel lembra que, no período militar, os agentes da repressão aprendiam técnicas de torturas com estrangeiros, como os franceses que lutaram na guerra da Argélia, ou com norte-americanos, como Dan Mitrione. “Atualmente, ao contrário, temos relatos que indicam que os israelenses vêm treinar essas técnicas no Brasil”, diz.

Antonio Clóvis Lima dos Santos, o Doge, reconhece fotos da sessão de tortura a que foi submetido: caso ganhou repercussão (Fotos: Antônio Scarpinetti/Divulgação)A pesquisadora conta que resolveu concentrar sua investigação em Porto Alegre porque, diferentemente de São Paulo e Rio de Janeiro, a capital gaúcha é objeto de poucos trabalhos acadêmicos voltados ao estudo da violência policial. Entretanto, naquela cidade o problema é igualmente antigo e grave. Um dos casos analisados na tese é o do ex-sargento do Exército Manoel Raimundo Soares, militante do Movimento Revolucionário 26 de Março, o MR-26. Após o golpe militar, ele é cassado e muda-se do Rio de Janeiro para a capital gaúcha.

Detido no dia 11 de março de 1966 por dois integrantes da Companhia da Polícia do Exército, em frente ao Auditório Araújo Viana, Manoel Raimundo foi conduzido de táxi até a sede da corporação. No local, foi submetido a diversos tipos de tortura. Mantido incomunicável por vários meses, seu corpo foi encontrando boiando no Rio Jacuí no dia 24 de agosto do mesmo ano. “Esse caso é emblemático no que diz respeito ao uso da violência por parte dos órgãos representativos do Estado. A prática foi incrementada contra os presos políticos, mas depois foi progressivamente estendida aos chamados presos comuns, inclusive nos dias de hoje”, reforça Susel.


Ta lá o corpo estendido no chão
Em vez de rosto uma foto de um gol
Em vez de reza uma praga de alguém
E um silêncio servindo de amém
O bar mais perto depressa lotou
Malandro junto com trabalhador
Um homem subiu na mesa do bar
E fez discurso pra vereador
Veio camelô vender anel, cordão, perfume barato
E baiana pra fazer pastel e um bom churrasco de gato
Quatro horas da manhã baixou o santo na porta-bandeira
E a moçada resolveu parar e então...

João Bosco e Aldir Blanc


Em Porto Alegre, destaca a historiadora, foi instalado logo após do golpe militar um órgão de repressão política, de caráter extra-oficial, que ficou popularmente conhecido como Dopinha, por manter vínculos viscerais com o Departamento de Ordem Política e Social, o temido Dops. A Dopinha, conforme Susel, funcionava em um casarão da Rua Santo Antônio, 600. Em seus porões, muita gente foi torturada e morta. Baseada em reportagens de jornais, sobretudo os alternativos, e em documentos coletados no Acervo do Movimento de Justiça e Direitos Humanos do Rio Grande do Sul e Acervo de Luta Contra a Ditadura, a pesquisadora também esmiuçou os casos de violência policial dos quais foram vítimas Hugo Kretschoer, Luis Alberto Arébalo, Mirajor Rondon, Antônio Clóvis Lima dos Santos, Júlio César de Mello Pinto, Jefferson Pereira e Guiomar Nunes.

Conclusão sobre a morte de Manoel Raimundo Soares: caso emblemático (Fotos: Antônio Scarpinetti/Divulgação)Desses, o de Antonio Clóvis Lima dos Santos, apelidado Doge, ganhou repercussão nacional. Preso na madrugada de 18 de setembro de 1984, aos 18 anos, dentro do barraco onde morava com os pais, o rapaz foi acusado de participar de um assalto a um caminhão de bebidas. Encaminhado à Divisão de Investigações da Polícia Civil, Doge foi torturado para confessar o crime que não cometera. O que aconteceu na “sala do pau”, onde as sessões de sevícias eram perpetradas, é relatado pela própria vítima, em uma entrevista concedida ao Jornal do Brasil, em agosto de 1985: “Fui pendurado durante mais de meia hora. Quem mais batia era um tal de inspetor Enio. Também me batiam nas costas com um pau, oito por oito centímetros, direto nas costas. Quem mais batia era um baixinho, barbudo e de olhos verdes. O carcereiro também me deu uns pontapés”.

Mas o que mais aterrorizou o jovem foi a sessão de afogamento. “Eles enfiaram uma mangueira com um jato forte direto no meu nariz”. Durante a tortura, lembrou Doge, a televisão da sala do carcereiro permanecia ligada a todo o volume, para abafar o grito dos presos. O caso de Doge só veio a público porque um dos inspetores, Arquimedes Ribeiro, fotografou o jovem logo após o espancamento, mas ainda dependurado no pau-de-arara, como mostra foto nesta página. Publicadas pela imprensa, as imagens serviram para comprovar que, apesar da negativa do comando da Polícia Civil, a tortura era prática costumeira entre seus agentes. “O mais incrível é que, a despeito dessa prova material, os policiais continuaram negando os maus-tratos. Disseram que as fotos eram resultado de montagem”, informa Susel.

Um dado surpreendente sobre esse episódio, prossegue a historiadora, é que logo após ser procurado para confirmar a brutalidade dos policiais, Doge admitiu não saber que seus algozes não tinham o direto de torturá-lo. “A idéia do suplício ao corpo, antiga no Brasil, pois remonta ao passado escravista, foi intensificada no período de exceção, avançou no tempo e ganhou legitimidade entre segmentos da população, inclusive o mais carente. Não por acaso, boa parte dessa mesma população, que é a maior vítima da violência policial, também é defensora da pena de morte”, analisa Susel. Apoiada no conceito de “biopolítica”, de Michel Foucault, e de “vida nua” e “estado de exceção”, de Giorgio Agamben, a pesquisadora esmiúça esse entrelaçamento entre polícia e política e busca explicações para a banalização da violência.

Ao refletir sobre esse vínculo, a autora da tese faz a seguinte consideração. “Dentro do ordenamento biopolítico do estado de exceção, em que polícia e política aparecem entrelaçados, as vidas tornam-se descartáveis. São vidas que se pode ‘deixar morrer’ num país onde a polícia exerce cotidianamente o direito soberano de decidir a vida e a morte da vida nua, em locais facilmente transformados em campos de exceção: a ‘sala do pau’ de uma delegacia, o espaço físico da vila ou favela, os locais de repressão ‘extra-oficiais’ como a Dopinha e até mesmo dentro de uma viatura policial, no trajeto entre o local de um crime e o hospital”.

SALA DE IMPRENSA - © 1994-2007 Universidade Estadual de Campinas / Assessoria de Imprensa
E-mail: imprensa@unicamp.br - Cidade Universitária "Zeferino Vaz" Barão Geraldo - Campinas - SP