| Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 370 - 3 a 9 de setembro de 2007
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Tese revela personagens assumidas pelo escritor paulista em correspondência
trocada com destinatários em diferentes fases de sua vida e traz anexo de
250 páginas com cartas publicadas na íntegra, muitas das quais inéditas

‘Missão epistolar’ desnuda as
múltiplas personas de Lobato

ÁLVARO KASSAB

O escritor, jornalista e advogado Monteiro Lobato: interlocução variava de acordo com o destinatário. Foto: Reprodução de “Monteiro Lobato - Furacão da Botocúndia”, de Carmem Lucia de Azevedo, Marcia Camargos e Vladimir Sacchetta (Editora Senac, 1997)  De cartas seiscentistas ao clássico A barca de Gleyre. De Erasmo de Rotterdam a Godofredo Rangel. De Bolonha a Taubaté. Mais que dar um salto cronológico e esquadrinhar escalas cartográficas imaginárias, o pesquisador Emerson Tin ergueu pontes concretas ao impor-se um desafio.

Em seu mestrado, orientado pelo professor Alcir Pécora no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), Tin pesquisou as Cartas familiares do escritor português Francisco Manuel de Melo (1608-1666). Os estudos resultaram no livro A arte de escrever cartas (Editora da Unicamp, 2005).

A obra reúne a tradução de três tratados de epistolografia: um medieval, atribuído a um anônimo de Bolonha, e dois renascentistas – Erasmo de Rotterdam e Justo Lípsio. Os textos são precedidos de uma introdução por meio da qual Tin situa-os na tratadística sobre o gênero epistolar. Feito e tanto para um jovem pesquisador graduado em letras no IEL.

Tin, entretanto, queria mais. Buscava caminhos para o doutorado antes até de apresentar a dissertação. A unir o projeto já concretizado e o que estava por ser gestado, uma única certeza: pôr em seu devido lugar o gênero epistolar, tirando-o da categoria dos sub-temas que tratam as cartas como mero suporte (hoje, com certo alívio, o pesquisador constata que sua área de estudo ganhou musculatura na academia).

Outras convicções vieram na seqüência: o desejo de trabalhar com fontes primárias e o interesse por algo mais próximo do ideário contemporâneo. O acaso daria uma mão ao pesquisador. Em 2001, a família de Monteiro Lobato (1882-1948) doou o acervo do escritor ao Centro de Documentação Cultural “Alexandre Eulalio” (Cedae), ligado ao IEL. Na massa documental que mais tarde formaria o Fundo Monteiro Lobato, estavam cerca de 400 cartas.

Era o que faltava para Tin decidir-se sobre os rumos do doutorado. Orientado pela professora Marisa Lajolo, o pesquisador consultou manuscritos no arquivo do Cedae e em outra dezena de instituições. O resultado está na tese Em busca do “Lobato das Cartas”: a construção da imagem de Monteiro Lobato diante de seus destinatários, recém-defendida no IEL. A investigação põe em cena as representações do escritor ao longo de sua atribulada trajetória, por meio da análise de cartas trocadas com uma miríade de destinatários.

Em cada um dos seis capítulos da tese, surgem múltiplos Lobatos (leia texto na página 7). O escritor conduzia a prosa, confessional ou não, ancorado na condição de momento do interlocutor e, óbvio, dele próprio. O tom e a tinta –carregada, muitas vezes – oscilavam ao sabor dos fatos e das circunstâncias. As cartas são reveladoras do lirismo, da ironia, da militância, dos receios e dos destemores do escritor. A correspondência forja, enfim, a veia do polemista que não raro abusava do coloquial.

No campo teórico, Tin recorre a Jung e a cartas de outros escritores, sobretudo novecentistas. De quebra, o pesquisador insere um anexo de 250 páginas contendo centenas de cartas na íntegra, cumprindo uma tarefa que passou batida pelo grosso dos estudos anteriores sobre a correspondência lobatiana – a maioria ficava circunscrita ao pontual. Esse corpo integralizado vai certamente municiar pesquisadores em busca da compreensão do todo e de sua devida contextualização histórica.

Boa parte dessa correspondência permanecia inédita. Seis das missivas, por exemplo, foram cedidas ao pesquisador por duas irmãs que na infância se correspondiam com o escritor. A troca de figurinhas foi mantida na gaveta por décadas.

Tin desdenha ao ser instado a aferir uma gradação de ineditismo ao seu trabalho, dividindo os méritos com colegas e docentes. “Não há nada de absolutamente novo no mundo”, desconversa.

Modéstia em excesso. A tese transcende com folga o desejo de seu autor em conferir autonomia às epístolas. Tin colocou a lupa nas entrelinhas de um intelectual que abraçava no calor da hora uma série de atividades e afazeres, extraindo desse exercício as máscaras (personae) tão caras àqueles que se dedicam ao gênero epistolar.

De posse delas, Tin promove o seu cruzamento com os respectivos papéis – cênicos e sociais – mimetizados e desempenhados pelo escritor. Emergem desse esforço, traduzido num texto equilibrado entre a clareza e a erudição, novos Lobatos. Eles estavam sob as vestes – vetustas? – de um velho conhecido. Tin desnudou-os.

JU – Sua dissertação de mestrado já havia sido sobre o gênero epistolar, mais precisamente sobre cartas do século XVII. Quando, como e por que surgiu o interesse por Lobato?

Tin – Até então minhas pesquisas tinham me levado apenas até o século XVII. E eu me perguntava: e o que mais? E o que veio depois disso? Foi aí que, ao começar a planejar uma pesquisa de doutorado, acabei chegando ao século XX e às cartas de Monteiro Lobato.

Acho que o interesse por Lobato e, conseqüentemente, o meu projeto de doutorado nasceram da confluência de três fatores. Um deles, como disse, era avançar no estudo do gênero, cronologicamente falando. Queria ter contato com a produção epistolar posterior ao século XVII. Daí a escolha recair sobre um autor mais próximo do nosso tempo.

Um segundo fator dizia respeito ao tipo de pesquisa. Até então, eu havia trabalhado com cartas publicadas em livro e, embora tenha sido fascinante trabalhar com uma edição seiscentista, eu não havia tido a oportunidade de trabalhar com manuscritos, com um material que exigiria todo um preparo de pesquisa.

Eu tinha esse objetivo e a idéia de trabalhar com um acervo de manuscritos e datiloscritos me atraía. Por fim, ligado a isso, o último fator, de ordem pragmática. Em dezembro de 2001, num gesto louvável, a família de Monteiro Lobato decidiu depositar uma série de documentos pessoais do escritor no que viria a constituir o Fundo Monteiro Lobato do Centro de Documentação Cultural “Alexandre Eulálio” (Cedae).

Entre recortes de jornais, objetos de uso pessoal e fotografias, estavam algumas centenas de cartas, material que demandaria pesquisadores dispostos a trabalhar com todo esse acervo. Assim, acabei chegando ao Lobato. É claro que eu já conhecia o escritor, com quem havia tido contato durante o meu curso de graduação, também no IEL, nas aulas da professora Marisa Lajolo, que viria a ser a minha orientadora do doutorado.

Aliás, é curioso que minha trajetória através da obra lobatiana ocorreu no sentido inverso: em geral, os leitores de Lobato passam primeiramente pela literatura infantil do escritor, para somente depois, eventualmente, chegarem à sua literatura adulta; meu percurso se iniciou na literatura adulta e só depois é que cheguei à infantil. E dentre os livros da literatura adulta, o meu predileto é sem dúvida A barca de Gleyre, a reunião de cartas de Monteiro Lobato ao amigo Godofredo Rangel.

JU –Qual a maior contribuição de sua tese para a compreensão da obra lobatiana?

Tin – Eu penso que uma tese sozinha não traz grandes contribuições. Na minha opinião, toda tese é um texto que dialoga com o que foi escrito antes e com o que vem sendo produzido no momento em que ela é construída. Assim, penso que a minha tese, por um lado, aparece num momento em que temos vários trabalhos acadêmicos emergindo sobre correspondência, temos dezenas de publicações de cartas, ou seja, num momento em que parece haver uma valorização de trabalhos sobre a “história em cousas miúdas”, para parafrasear o título de um livro recente publicado pela Editora da Unicamp sobre crônica, outro gênero bastante valorizado atualmente.

Por outro lado, minha tese é fruto de um grupo de pesquisa. Está inserida dentro do projeto temático “Monteiro Lobato (1882-1948) e outros Modernismos brasileiros”, financiado pela Fapesp – que também financiou a minha pesquisa de doutorado –, e dialoga com os trabalhos produzidos no âmbito desse grupo de pesquisadores. Nesse sentido, se há uma contribuição para a compreensão da obra lobatiana, ela é coletiva e resulta dos diversos trabalhos que têm sido elaborados sob a orientação da professora Marisa Lajolo.

JU – Em que medida sua pesquisa se diferencia dos estudos anteriores, principalmente daqueles tidos como os mais importantes sobre Lobato? O que ela revela de inédito?

Tin – Do ponto de vista do estudo da correspondência lobatiana, o que tínhamos em geral eram obras de cunho biográfico – como a já clássica biografia de Lobato escrita por Edgar Cavalheiro, Monteiro Lobato: vida e obra, com algumas notas explicativas e precedidas de estudos de caráter genérico – que é o caso, por exemplo, das Cartas escolhidas, organizadas também por Cavalheiro, ou de Monteiro Lobato vivo, cuja organização ficou a cargo do professor Cassiano Nunes. Dele também são alguns opúsculos que tiveram o mérito de apontar a existência de um grande manancial de cartas lobatianas, sem algumas vezes, contudo, transcrevê-las na íntegra ou consignar de modo específico em que arquivos ou centros de documentação se encontravam depositadas.

Nesse sentido, minha tese pretendeu tornar disponível aos leitores o maior número possível de cartas de Monteiro Lobato: não só elas aparecem transcritas na íntegra, mas também são registrados os arquivos e centros de documentação a que pertencem. A tese também procura apresentar, sempre que possível, as condições de produção da correspondência, por meio de notas explicativas.

JU – E para a compreensão da personalidade de Lobato?

Tin – Lobato parecia ser um homem de múltiplas facetas. E não sou eu quem diz isso. Nelson Palma Travassos, que conheceu e conviveu com o escritor, escreveu um livro intitulado Minhas memórias dos Monteiros Lobatos. Isso mesmo. Parecia não haver um Lobato, mas múltiplos Lobatos, de forma que o verso de Mário de Andrade – “eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta” – bem se poderia empregar para descrever Monteiro Lobato.

A tese procura, assim, apresentar alguns desses Lobatos, algumas dessas personae ou personas por meio das cartas, ou seja, como cada um desses Lobatos surge a partir da sua correspondência. Assim, acabei levantando seis Lobatos: o familiar, íntimo, que escrevia ao pai, à mãe e à noiva; o escritor e o editor; o Lobato dos Estados Unidos; o Lobato do ferro e do petróleo; o Lobato do cárcere e, por fim, o Lobato das crianças. Cada um desses seis Lobatos aparece de uma maneira diferenciada, moldada não só pelas circunstâncias de tempo e lugar mas também pelo destinatário a que se dirige.

JU – A segunda parte de seu trabalho é dedicada à reprodução de parte da correspondência de Lobato. Há cartas inéditas nessa massa de documentos? Se sim, em que medida?  

Tin – Sim. Há algumas cartas inéditas – considerando como inéditas aquelas cartas que até o presente momento não haviam sido publicadas. Nesse sentido, a tese traz cartas inéditas a Antonio Salles e a Rodrigo Otávio Filho, entre outros. Quanto ao seu número, confesso que não tive essa preocupação de quantificação. O que posso afirmar é que a tese tem em torno de 250 páginas de cartas transcritas, a maior parte delas não tendo sido publicada até o momento.

JU – Quais os referenciais teóricos que embasaram seu trabalho? Outras trocas de correspondências entre escritores, por exemplo, são mencionadas. Quais são mais importantes no âmbito da tese?

Tin – Até um pouco por conta do meu histórico de pesquisa, meu ponto de partida acabou sendo a retórica, mais especificamente os tratados de escrita de cartas. Também lancei mão do conceito de personae encontrado na obra de Jung e da mais recente bibliografia – sobretudo de origem francesa – acerca do gênero epistolar. Além disso, procurei cercar a correspondência lobatiana de outros exemplos do gênero, como as cartas de Baudelaire e de Álvares de Azevedo para suas mães; as cartas de Victor Hugo e de Eça de Queirós para suas noivas; as cartas trocadas entre Proust e seu editor Gallimard; e as cartas de Lewis Carroll e Beatrix Potter para alguns de seus leitores infantis, apenas para citar alguns exemplos.

JU – Percebe-se que houve um cuidado em contextualizar os períodos históricos abordados na pesquisa. O que emerge desse mergulho?

Tin – Considerando que a carta é, por excelência, um escrito inscrito no tempo, acho que o que emerge desse mergulho é uma possibilidade de uma leitura mais próxima do contexto em que foram produzidas. A contextualização permite uma aproximação maior do leitor ao que é dito na carta e facilita a sua decodificação.

JU – Em que medida o “exercício de civilidade” praticado por Lobato, segundo definição feita por ele mesmo, jogou luzes sobre a historiografia e sobre a literatura brasileiras?

Tin – Acho que Lobato viveu num tempo em que escrever cartas ainda era uma atividade social. A carta era o meio de se fazer presente nas mais diversas ocasiões, alegres ou tristes. Mas era também um meio de intervenção. Daí o Lobato mais aguerrido da década de 1930, em torno das campanhas pelo ferro e pelo petróleo. É talvez na melhor compreensão desse “exercício de civilidade” – que não era exclusivo de Lobato, certamente – que possamos entender melhor a historiografia e a literatura brasileiras.

JU – Há quem afirme que campanhas deflagradas por modernistas tiveram um papel fundamental para que a obra e as idéias lobatianas fossem relegadas a um plano secundário. Você concorda com esta tese? Em que patamar você coloca o conjunto da obra de Lobato, tanto no campo da literatura como no das idéias?

Tin – Não sei até que ponto esse tipo de campanha foi feito de modo consciente, se é que existiu de fato. O que vejo, muitas vezes, são manifestações isoladas, aqui e acolá. O que sabemos é que não apenas a obra de Monteiro Lobato mas toda a obra de autores de um período que ficou conhecido como “Pré-Modernismo” submergiu diante do fenômeno do Modernismo.

Aliás, o próprio termo “Pré-Modernismo” acaba por dizer muito mais do que diz: definir alguma coisa como “pré” ou “pós” acaba por lançar luz a um outro período que não aquele que é assim definido. O que tenho visto, nos últimos tempos, é justamente um movimento de resgate da obra desses autores “pré-modernistas”. Eles ficaram muito tempo esquecidos na poeira das bibliotecas. Hoje já não é estranho encontrar pesquisas sobre Coelho Neto e Júlia Lopes de Almeida, por exemplo, para ficar em apenas dois nomes, coisa que, há 15 ou 20 anos, poderia ser bastante difícil.

De maneira que acredito que a obra de Lobato tem se beneficiado por conta desse movimento de resgate do “Pré-Modernismo”. Quanto a um patamar para a obra lobatiana, acho difícil essa espécie de rotulação, seja para a obra dele, seja para qualquer outra. Teria Lobato sido um reacionário? Teria sido um moderno à sua maneira, sui generis? E o que seria ser reacionário ao tempo de Lobato? E o que seria ser moderno? Acho que podemos estudar a literatura sem precisar de rótulos.

 
JU – Nesse âmbito (do modernismo), o que diferencia a “missão epistolar” de Lobato daquela assumida por Mário de Andrade, outro exemplo emblemático do gênero? Dá para fazer essa comparação ou ela seria muito forçada?

Tin – Acho que dá para fazer essa comparação, sim, e creio que os estudiosos de ambos os autores ganham com isso. Acho que a “missão epistolar” de Lobato parece ter sido um pouco mais descosida, mais desalinhavada que a de Mário.

Mário parece ter concebido um projeto pedagógico dentro do ideário modernista – conforme defende o professor Marcos Antonio de Moraes, da USP –, diferentemente de Lobato, que não estava ligado a um movimento específico, mas que também exercia, tanto na juventude quanto na maturidade, uma função pedagógica, fosse recomendando a leitura de Nietzsche aos jovens colegas da Faculdade de Direito, fosse aconselhando os jovens escritores sobre os caminhos da literatura.

Mas ambos construíram um monumento epistolar que ainda está por ser desencavado, o que certamente poderá nos ajudar a compreender muito mais a literatura e a sociedade da primeira metade do século XX.

Continua na página 7 - O escritor em capítulos

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