| Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 337 - 18 a 24 de setembro de 2006
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Para o físico Ennio Candotti, a América Latina
deve buscar projetos comuns em ciência e tecnologia

Integrar para sobreviver

(Fotos: Neldo Cantanti)"Ou os países latino-americanos se integram em projetos de ciência e tecnologia, ou estarão fadados a permanecer como apêndices das nações soberanas”. Vinda de Ennio Candotti, a frase passa longe de mera especulação. Mais que isso, ganha o peso de um veredicto. Na visão do presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), a integração em C&T tem importância estratégica para a América Latina, mas para chegar a esse estágio os países terão de superar o isolamento cultural e recuperar suas raízes históricas. No último dia 14, Candotti foi um dos principais convidados do 3º Seminário Internacional Ciência e Tecnologia na América Latina – A Universidade como Promotora do Desenvolvimento Sustentável, organizado pela Coordenadoria de Relações Institucionais e Internacionais (Cori). A seguir, a entrevista que ele deu ao Jornal da Unicamp.

Presidente da SBPC participou de seminário na Unicamp

Jornal da Unicamp – Como integrar projetos de ciência e tecnologia na América Latina levando em conta que se trata de uma região cuja maior parte dos países ainda não consolidou nem mesmo um projeto de nação?
Ennio Candotti – Discordo um pouco da idéia de que não há projeto de nação. O que pode não haver é uma adequada integração dos projetos nacionais ao mundo globalizado e às suas dinâmicas, que são definidas por uma forte influência da economia de mercado. A economia de mercado define correlações de forças em torno do desenvolvimento tecnológico. No entanto, estes projetos que sustentam a globalização dos mercados têm mostrado sérias dificuldades em desenhar perspectivas para o mundo. Os conflitos têm crescido e não decrescido. Esse modelo não foi capaz de oferecer soluções para a maioria dos povos. Ofereceu soluções para os agentes destes mercados. Então, eu diria que o projeto de integração latino-americana deve passar pela criação de um espaço cultural e pela compreensão da história da América Latina. O que é e o que foi. Afinal, o que veio primeiro? A história ou o mercado? E essa integração deve se dar pelo mercado ou deve ser uma integração das histórias? Enquanto a integração com a Bolívia, por exemplo, for uma integração do gás, nós perderemos – o Brasil e a Bolívia. Não se trata de um jogo, se trata de uma história social e natural. Temos uma história comum, de culturas que começaram bem antes da presença dos europeus. Como entender o Brasil hoje sem entender as populações indígenas e suas culturas? Veja a dificuldade imensa que temos para lidar com a Amazônia. Nós nos conhecemos muito pouco. Somos todos órfãos de uma história que nos une.

JU – Pelo que o senhor está dizendo, estaríamos diante de uma equação cultural de difícil solução.
Candotti – Seria de fácil solução se conseguíssemos romper as marcas de uma dominação cultural com a qual ainda não aprendemos a lidar. Somos, ainda, influenciados por modismos, por definição de padrões e até mesmo definições das prioridades na pesquisa. São determinadas por padrões do mercado, voltados ao atendimento de demandas muito alheias à nossa realidade. Quem disse que os mercados europeus têm as mesmas prioridades que os mercados latino-americanos? Quem disse que as doenças da América Latina são semelhantes às européias. Por que as nossas pesquisas farmacológicas devem se subordinar às regras que estabelecem o jogo internacional? Claro que a ciência é internacional, mas há um imenso campo de trabalho que não vem sendo explorado porque não interessa aos grupos econômicos com forte influência no financiamento da pesquisa mundial. Não se pode negar, por exemplo, que a indústria farmacêutica tem peso na área médica. Quem disse que essas indústrias têm os mesmos interesses que nós deveríamos ter, coerente com a nossa situação sanitária, nossa saúde, da nossa América. Quem se interessa pelas doenças tropicais? Elas parecem até fantasias e, no entanto, são fundamentais. Isso vale também para o meio ambiente, os ecossistemas complexos, a história natural. Temos um território que vai do México até a Antártica. Esse território é único no mundo, com suas diversidades climáticas, sua biodiversidade, reservas minerais, etc. Isso tudo é um imenso laboratório que nós mal conhecemos. E, por falta de recursos humanos suficientes, jogamos sempre obedecendo aos parâmetros externos.

JU – Mas, então, como conciliar a necessidade de ações integradas para o desenvolvimento de C&T numa região como a América Latina com a cultura da globalização, que tem como base a economia de mercado?
Candotti – Acho que deveríamos ter a coragem de abandonar a economia de mercado e nos dedicar à preparação de nossas forças. Pensar quem somos, o que podemos fazer e o que devemos fazer para explorar as nossas vantagens. Uma vantagem é a enorme quantidade de jovens, que não se mobilizariam pelo mercado, mas se mobilizariam na busca de sua própria identidade e da criação de um projeto de longo prazo para a região. A partir daí, teremos a juventude mobilizada para tentar as batalhas do conhecimento, que começam pela própria casa e não a partir dos mercados. Aí os economistas vão dizer: “mas como é que você vai financiar isto?” Vamos abandonar essa nossa cultura do serviço à la carte e fazer um bandejão básico, porém bem feito. Vamos concentrar a nossa formação acadêmica naquilo que realmente importa. Precisamos de engenheiros, de médicos, de sanitaristas. E vamos dimensionar estas áreas mais qualitativas para uma segunda etapa. Tóquio inteira tem mil advogados, enquanto São Paulo tem cem mil. É uma desproporção muito grande e um gasto imenso. Temos de ajustar o foco às nossas realidades.

JU – Para ajustar o foco às nossas realidades seriam necessárias políticas públicas adequadas. Em sua opinião, o Brasil conta com políticas públicas capazes de incentivar esse ajuste?
Candotti – Aos poucos estamos percebendo que as políticas públicas que nos convêm são um tanto diferentes daquelas determinadas pelas exigências do mercado. O mercado não incentiva, por exemplo, a educação, mas de uns anos para cá até os banqueiros perceberam que um povo mais educado melhora a sua capacidade de rentabilidade e de investimentos. Então, estamos caminhando nessa direção. Infelizmente, a exploração dos produtos naturais, que marcou a história de nossa economia, ainda está presente. Veja, por exemplo, a dificuldade de se agregar valor aos produtos da agroindústria. Todos percebem que nossa condição de exportadores de soja não nos levará muito longe. Se este é o nosso projeto de nação, a resposta será um claro “não”. Esta é a grande mudança que está em curso, eu diria em toda a América Latina. Há países que estão se preparando para abandonar o seu papel de exportadores primários, o caso do Chile com o cobre, da Argentina com a carne e o trigo; a própria Venezuela está se preparando para não depender mais das exportações de petróleo. Isso está em curso, mas deveríamos desenhar juntos esse projeto.

Público no Seminário Internacional Ciência e Tecnologia - A Universidade como Promotora do Desenvolvimento SustentávelJU – Até que ponto a variável ideológica atrapalha esse projeto de integração?
Candotti – A variável ideológica é, para ser curto e grosso, a variável neoliberal, ou seja, a dependência da política ao mercado e não a dependência do mercado à política. Essa inversão corrói. Os governantes se sentem obrigados a atender as pressões do mercado e sem apoio popular para abandonar essas prioridades e introduzir a variável política em primeiro plano. Sem desconhecer a importância do mercado, é preciso fazer com que ele seja funcional aos interesses da sociedade. O Mercosul, por exemplo, é mais importante que o espaço político e cultural. Pensar que a Europa foi construída sobre o mercado comum é um equívoco. A Europa foi construída sobre centenas de anos de integração cultural e filosófica. Mozart talvez faça mais pelo Mercado Comum Europeu do que a Volkswagen ou a Siemens. Nós também temos isso. A cultural latino-americana é riquíssima.

JU – Mas aí voltamos à primeira pergunta: quais as chances de conseguirmos um projeto comum de ciência e tecnologia se estamos tão distanciados cultural e socialmente?
Candotti – Ou fazemos ou morremos. Não há outra alternativa. As soluções fora desta linha só nos condenam ao segundo time. Ou fazemos assim ou seremos subjugados. Perderemos o jogo como nações soberanas e seremos apenas apêndices.

JU – Nesse processo, qual seria o papel do Brasil, que responde por 50% da produção científica na América Latiana?
Candotti – O Brasil pode ser um dos locomotores desta transformação, desde que saiba pensar grande. Investir na cooperação e no entendimento, sem objetivo de tirar proveito a curto prazo. Isso acontecerá, por exemplo, se a Petrobrás se preocupar mais em ajudar na formação dos engenheiros bolivianos do que em negociar a rentabilidade de seus investimentos a curto prazo. É preciso uma visão mais generosa, a longo prazo, e a construção de um espaço comum em que se possa explorar e defender os recursos naturais.

JU – Quais os erros que o Brasil tem cometido nesse contexto?
Candotti – O primeiro deles é não ter introduzido a ciência, a tecnologia, a educação superior e o intercâmbio de jovens na agenda de construção dessa integração latino-americano. A meu ver, isso é o mais importante. E não é um erro só do Brasil, mas de todos os outros governantes da região.


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