| Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 336 - 11 a 17 de setembro de 2006
Leia nesta edição
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Pedagoga mostra o dia-a-dia de Adriana Fraga,
que consegue dos alunos um rendimento acima da média

Professora surda
alfabetiza crianças ouvintes

A pedagoga Marília da Piedade Marinho Silva: rota de correção no projeto de  doutorado depois de conhecer Adriana Fraga, a professora que perdeu a audição (Foto: Antoninho Perri)A professora pega o livro, fica de frente para a classe e diz:
– Vou ler uma história. Atenção.
E os alunos, em coro:
– Oba, história.
– Uma fábula. De quem?
– Do Monteiro Lobato.
– Quem é Monteiro Lobato?
– Quem escreveu a história.
– Escreveu a história e também tem uma coisa dele na televisão. O que é?
– O Sítio do Picapau Amarelo.
– Isso mesmo, o Sítio do Picapau Amarelo.

O diálogo ocorrido numa escola rural de Taquaraçu, pequeno município a 100 quilômetros de Belo Horizonte, passaria por algo corriqueiro entre uma professora do ensino fundamental e seus alunos, não fosse por um detalhe: Adriana Aparecida Fraga, a professora, é surda. E as crianças, dez ao todo, falam, ouvem e não conhecem a língua dos sinais. Como, então, uma professora que perdeu a audição ainda na infância consegue ensinar crianças na fase de pós-alfabetização, a ponto de extrair delas um aproveitamento acima da média?

Leitura labial e estratégias pedagógicas pessoais

Foi para tentar responder a esta pergunta que a pedagoga Marília da Piedade Marinho Silva iniciou, em 2002, a pesquisa que resultaria em sua tese de doutorado defendida recentemente no Departamento de Lingüística Aplicada do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL). Mais que uma abordagem acadêmica, o trabalho, orientado pela professora Inês Signorini, remete a uma história de superação. E à constatação de que o deficiente auditivo não está limitado à linguagem dos sinais.

O pai é taxista; a mãe, dona de casa. O casal teve três filhos. Adriana é a do meio. Nasceu saudável, em 1980, na pequena Santa Luzia, região metropolitana de BH. Aos 6 anos, porém, aconteceu o inesperado. A menina perdeu a audição rapidamente, sem jamais ter apresentado qualquer sintoma. Os médicos não conseguiram identificar a causa, mas a audiometria constatou perda total da capacidade auditiva. A vida de Adriana começava a mudar. Em casa, na escola, na rua, ela agora teria de descobrir um jeito novo de se relacionar com mundo.

A trajetória natural seria buscar ajuda com um fonoaudiólogo e aprender a Língua Brasileira de Sinais (Libras). Mas Adriana optou por outro caminho, desenvolvendo uma extraordinária capacidade de leitura labial. “Eu comecei a aprender a Libras porque meu irmão, que é surdo, faz muito bem os sinais, mas parei por achar muito difícil”, relatou a professora à autora da tese. “Embora partilhe com o irmão a herança da surdez, Adriana não a assume, e decidiu permanecer surda no mundo dos ouvintes, uma surda híbrida”, explica a pesquisadora.

(Foto: Antonio Scarpinetti)Com o apoio da família, a menina seguiu nos estudos e formou-se em pedagogia no Centro Universitário de Belo Horizonte, campus de Diamantina. Foi lá que Adriana e Marília se encontraram pela primeira vez. A primeira ainda como aluna do quarto ano e a segunda como professora. Àquela altura, Adriana já lecionava em duas escolas, uma da rede municipal e outra da rede estadual, ambas para alunos normais. “Fiquei impressionada com o caso e resolvi estudá-lo”, diz Marília.

Caso atípico – Autora do livro “A construção de sentido na escrita do surdo”, Marília Marinho Silva já tinha larga experiência no tema e preparava-se para o doutorado. Até então, seu projeto seria voltado para as estratégias que o professor ouvinte utiliza para alfabetizar o aluno surdo. “No entanto, Adriana estava numa situação atípica: uma professora surda trabalhando com alunos ouvintes”. Munida de uma filmadora, a pedagoga passou a registrar o dia-a-dia da professora na sala de aula. Suas estratégias pedagógicas, a comunicação com os alunos, o comportamento das crianças diante dela que, a despeito de não escutar, jamais deixava de ouvi-las. E os resultados dessa interação, refletidos no aproveitamento acima da média dos pequenos estudantes.

“Chamaram atenção as estratégias de Adriana para interagir com os alunos, as formas de vencer dialeticamente a distância imposta pela surdez e o fato de ser uma professora alfabetizadora”, conta Marília. “Considerando que a alfabetização põe em pauta escrita e leitura, e que é a professora quem lê e serve de modelo para os alunos, achei que seria interessante investigar os efeitos de uma fala marcada pela surdez na constituição dessa leitura”, completa. As cenas e os diálogos captados revelam um processo de comunicação praticamente sem os ruídos que prejudicassem o papel de Adriana enquanto mediadora no processo de aprendizado das crianças.

Adriana Fraga fala como uma pessoa ouvinte, com fluência e boa dicção. Não há vestígios das características típicas da fala de deficientes auditivos. Isso não chega a surpreender, já que ela aprendeu o português como língua materna antes de perder a audição. Mas também escreve perfeitamente, mesmo tendo sido alfabetizada após a surdez, e sua caligrafia faz inveja a muitos que vivem deste ofício. A professora consegue entender o que as crianças dizem e sua capacidade de leitura labial vai além da mera técnica. “Ela lê o corpo inteiro de quem está falando: os gestos, as mímicas, as posturas”, diz a pesquisadora.

Estratégias – Além disso, Adriana desenvolveu estratégias pedagógicas para facilitar a comunicação com a classe, a começar pela disposição das mesas e cadeiras, colocadas em meia-lua para que todos fiquem sempre de frente para ela. O uso freqüente de referências visuais permite uma linguagem comum entre ela e os alunos. A professora prepara cuidadosamente os planos de aula, escreve roteiros, elabora exercícios. Não há improviso. Os trabalhos manuais são expostos nas paredes e a avaliação sempre vem acompanhada de um incentivo verbal. Em cima do quadro negro, uma faixa: “Crianças, sejam bem-vindas!”.

Segundo a pedagoga Marília Silva, a empatia é ponto central no processo ensino-aprendizagem e, muitas vezes, determina o envolvimento ou não do aluno. No caso de Adriana foi decisiva para alcançar a interação com a classe. “As crianças assimilaram a situação e desenvolveram afeto e respeito pela professora”, conta a pesquisadora. Os alunos aprenderam a falar sempre de frente para que ela possa ler os lábios e a tocá-la para chamar sua atenção caso esteja de costas. “Adriana não escuta, mas não é surda”, disse uma mãe em depoimento. Para Adriana, o silêncio nunca é vazio.

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