Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 267 - de 27 de setembro a 3 de outubro de 2004
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A criação do mundo e
   outras histórias
 

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Tese de doutorado resgata narrativas feitas
pelos Apurinã, povo indígena da região amazônica

A criação do mundo
e outras histórias


MANUEL ALVES FILHO



Foto: DivulgaçãoParte da memória dos Apurinã, povo indígena com presença mais marcante no Estado do Amazonas, acaba de ser resgatada por meio de pesquisa desenvolvida para a tese de doutorado da antropóloga Juliana Schiel, defendida no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. No estudo, ela procurou entender e traduzir, para a compreensão da sociedade em geral, o universo dos índios a partir das narrativas feitas por eles. A pesquisadora percorreu cerca de 20 locais ao longo Foto: Divulgaçãodo médio rio Purus, como aldeias, povoados etc. Em suas andanças, colheu histórias suficientes para a gravação de 70 CDs. Entre os temas mais freqüentes abordados pelos Apurinã estão a criação do mundo, a relação que mantêm com a natureza e a forma como se dispersaram ao longo do tempo.

O contato de Juliana com os Apurinã teve início em 1994, quando ela participou de uma equipe de saúde coordenada pela União das Nações Indígenas (UNI) do Acre e Sul do Amazonas. O trabalho foi realizado junto a várias comunidades. Naquela oportunidade, ao demonstrar interesse pelas históriasFoto: Divulgação narradas pelos índios, a antropóloga foi incentivada por um cacique Apurinã a gravar os relatos. Anos mais tarde, a pesquisadora resolveu colocar a sugestão em prática, dentro do seu trabalho de doutorado. Para isso, ela valeu-se de parte do material utilizado em sua dissertação de mestrado: imagens antigas, algumas do início do século passado, nas quais os índios aparecem caçando, pescando e em várias outras situações.

Além disso, a antropóloga fotografou objetos indígenas pertencentes ao acervo do Museu Nacional. Ao colocar essas imagens diante dos Apurinã, Juliana constatou que elas funcionavam como “evocadores de memória”. “Foi uma experiência muito interessante. Alguns dos objetos fotografados, que não estão mais em uso, remeteram os Apurinã ao passado, fazendo com que lembrassem de coisas que viram ou ouviram falar”, conta a pesquisadora. De acordo com a autora da tese, a história mais recorrente narrada pelos índios tinha como enredo a criação do mundo, em variadas versões. Elas falavam de Tsora, o “Deus” dos Apurinã, “criador de todas as coisas”.

Também surgiram narrativas sobre a migração daquele povo. Uma delas falava da saída de uma terra sagrada, esta última Foto: Divulgaçãolocalizada para além do mar. Encantados pelas frutas que encontraram pelo caminho, vários indivíduos optaram por se estabelecer antes de alcançar o destino final, decisão que teria lhes custado a imortalidade. Um aspecto que chamou a atenção de Juliana, que se valeu de um tradutor Apurinã, foi a beleza das histórias, construídas com sutilezas e contadas com habilidade dramática pelos índios, principalmente os mais velhos. Ao se referirem a animais, por exemplo, eles imitavam os sons dos bichos. “Em Apurinã, as histórias são quase que só onomatopéias”, revela.

Atualmente, destaca Juliana, ocorrem reuniões cotidianas em comunidades e aldeias, durante as quais são feitas narrativas. Nessas ocasiões, os índios mascam uma folha denominada katsoparu, que poderia ser uma variedade da folha da coca, e tomam rapé (awire, em Aurinã), uma mistura de tabaco com cascas de árvores. Assim, experimentam um estado de alteração de consciência. Outro aspecto que chamou a atenção da pesquisadora foi o interesse dos Apurinã pela própria memória. A antropóloga lembra que alguns povos indígenas da América do Sul têm posição contrária, em razão de suas crenças religiosas. “Para eles, a memória dos mortos precisa ser apagada”, diz.

Já os Apurinã, segundo ela, destacam a própria genealogia ao se apresentaremA antropóloga Juliana Schiel, autora da tese de doutorado sobre os Apurinã: "Para eles, a memória dos mortos precisa ser apagada" (Foto: Antoninho Perri) como filhos de fulano e netos de sicrano, numa fala ritual denominada sanguiré. “A memória genealógica tem grande importância para os Apurinã. Através dela, eles reconhecem vínculos e conflitos”, afirma Juliana. A antropóloga destaca que, embora a tese seja sua, ela é o resultado de uma co-produção intelectual com os indígenas. “O estudo só foi possível porque os índios o fizeram comigo”. O próximo objetivo da pesquisadora é editar os CDs, para que sirvam como material de consulta a estudantes, pesquisadores e aos próprios Apurinã. “O estimulante desse tipo de trabalho é justamente isso: fazer com que ele tenha uma utilidade”, afirma a pesquisadora, que foi orientada pelo professor Mauro William Barbosa de Almeida, do Departamento de Antropologia (DA) do IFCH, e contou com bolsa concedida pela Fapesp.

Perfil – Segundo estimativas de organizações indigenistas, o povo Apurinã contaria atualmente com 2,2 mil a 2,8 mil indivíduos, mas estes números podem estar defasados. Ocupam principalmente o Estado do Amazonas, na região dos rios Juruá, Jutaí e Purus. Em seu estudo, Juliana Schiel percorreu comunidades e povoados localizados no médio Purus, imediações do município de Pauini. Naquela região, vivem cerca de 1,2 mil índios dentro das Terras Indígenas reconhecidas, mas existem inúmeros fora das áreas oficiais. Conforme a tese de doutorado da antropóloga, o Apurinã é uma língua Maipure-Aruak, ramo Purus, sendo a língua mais próxima a Piro, conhecida como Manchineri no Brasil. Os Apurinã reconhecem como sua autodenominação a palavra popukare.


Fragmentos de histórias

Tsora1 (Zé Capira, Xamakuru)

“No tempo que o mundo incendiou, aí ficaram três mulheres no galho de jenipapo. Elas escaparam. Aí uma macetona de mulher desceu do céu. Nome dela: Mayoroparo. Ela machucou os ossos que ia achando, aí jogou na boca. “Você não obedeceu sua mãe, não obedeceu seu pai: é por isso que eu vou machucando sua osso, vou comendo.” O que obedeceu pai e mãe, o osso é duro. Aquele que não obedeceu pai e mãe, o osso é mole. Aí ela pegava: “você não obedeceu sua mãe, seu pai: por isso seu osso é mole!” Aí ela machucava, punha na boca. “Aquele que obedeceu mãe, pai, esse eu vou colocar na minha tipóia aqui do lado, esse eu vou plantar. Macaxeira, batata, vai ser este aqui.”

Kairiko2

“Primeiramente, no começo do mundo, quando a gente se formou-se para ir embora. Porque na nossa língua, tem uma terra sagrada: aqui, no rumo deste Rondônia, naquele meio de mundo. Tem uma terra que é a terra que ninguém não morre. Tem esta terra por nome Kairiko.

Entãoce, muitos dos meus parentes vinheram embora, formaram um grupo de gente. Aí convidaram homem, tudo, para ir embora para cá. “Minha gente, nós vamos s’imbora. Vamos conhecer outro mundo, vamos conhecer! Só nós aqui mesmo, nesta terra aqui. Que esta terra não está mais cabendo...E assim, nós vamos viajar.”


Comentário

“Quem é o Deus de vocês?”

“Não sei. Só sei que o nome dele é Tsora.”

Artur Brasil Apurinã, Mipuraru, Artur Pajé, assim fala de Tsora, ou, como ele traduz: Deus, Jesus. Tsora é o criador de todas as coisas há e é por isso chamado de Deus, em português.

A história de Tsora, história do começo do mundo, do começo de tudo, sempre se inicia por Mayoroparo, ou depois que a terra incendiou. Mayoru é urubu e Mayoroparo é uma mulher monstruosa, uma velha que come os ossos das pessoas. Na versão de José Manoel, Xamakuru, Zé Capira, é ela que descobre Yakonero, mãe de Tsora, e suas irmãs no galho de jenipapo. É ela, nesta versão, a responsável pela existência da macaxeira e da batata: são os ossos que guardou na tipóia.

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1 Narrador: José Manoel da Silva, Zé Batata, Zé Capira (Xamakuru)

Transcrição e tradução: Camilo Manduca da Silva Apurinã (Matoma)
Edição: Juliana Schiel ((tumaro).


Comentário

Quando voltei da aldeia Canacuri, no Tumiã, Abel, que ajudara a transcrever narrativas, me acompanhou. Permaneceu comigo na aldeia Mipiri e conversou com Otávio. Otávio ficou muito feliz com a conversa e com a presença de Abel: eram parentes. Contou-me, então, do parentesco entre eles; de como todos haviam saído juntos de Kairiko; das brigas que começaram as divisões entre os Apurinã.
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1 Narrador: Otávio Avelino Chaves Apurinã, Atokatxu

Trascrição e tradução do Apurinã: Camilo Manduca Apurinã, Matoma e Marechal

Transcrição em português e edição: Juliana Schiel, (tumaro

A narrativa, em português, que utilizo aqui, é a edição daquela feita em português por Otávio, com a tradução que Camilo fez do Apurinã. Deve mais à narrativa em português que achei mais rica em detalhes, mas complementei com algumas informações.

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