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Encontro internacional na Unicamp discute
"crimes de honra" contra mulheres na América Latina e Oriente Médio

Para flerte ou adultério, a morte


LUIZ SUGIMOTO



Caso 1

Acusado que, surpreendendo a mulher em situação de adultério, mata-a juntamente com seu acompanhante. A tese de legítima defesa da honra foi aceita por expressiva maioria pelo Tribunal do Júri e confirmada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, que negou provimento ao apelo do Ministério Público, mantendo a decisão do Júri. Uma das argumentações: "Antonio, já antes ferido na sua honra, objeto de caçoada, chamado, agora sem rodeios, de chifrudo por pessoas daquela localidade (...), mal sabia o que o esperava. Entrou em casa e viu sua esposa e J. J. dormindo a sono solto, seminus, em sua própria cama e na presença de seu filho, cujo berço estava no mesmo quarto (...). Saísse ele daquela casa sem fazer o que fez e sua honra estaria indelevelmente comprometida".

Caso 2

O flerte foi erro que custou caro a Samera, que tinha apenas 15 anos quando seus vizinhos de Salfeet, pequena cidade palestina da West Bank, viram-na conversando sozinha com um rapaz. A honra da família estava em jogo e o casamento foi rapidamente arranjado. Aos 16 anos, ela teve um filho. Cinco anos depois, não mais suportando aquele casamento forjado, ela fugiu. Segundo contam, passou de um homem a outro enquanto ia de lugar a lugar. Por fim, em julho de 1999, a família conseguiu alcançá-la. Ela foi encontrada dentro de um poço, com o pescoço quebrado. O pai disse ao médico-legista que a filha se suicidara. Mas todos sabiam que Samera fora vítima de um homicídio em defesa da honra; tinha sido morta pela própria família porque seus atos haviam desonrado seu nome.

O caso 1 está no artigo "Direitos humanos a partir de uma perspectiva de gênero", assinado pelas pesquisadoras Silvia Pimentel e Valéria Pandjiarjian, do Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (Cladem), e publicado na revista do Centro de Estudos da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo. O caso 2 está na reportagem "Mulheres são assassinadas para proteger a família da ‘desonra’", assinada por Sally Armstrong, sobre a dedicação da advogada e criminologista Nadera Shalhoub-Kevorkian à luta pelos direitos das mulheres palestinas, e disponível na página do Centro de Mídia Independente (CMI-Brasil).

A troca de informações sobre a prática dos "crimes de honra" na América Latina e no Oriente Médio foi o objetivo do encontro internacional organizado na Unicamp pelo Centro de Estudos de Gênero – Pagu, em fins de agosto. "Discutimos as diferenças e semelhanças, considerando que nosso continente é majoritariamente católico, onde esses assassinatos não podem ser justificados pelo islamismo", afirma a antropóloga Mariza Corrêa, professora da Unicamp e pesquisadora do Pagu, que coordenou o seminário reunindo representantes do Brasil, Costa Rica, Equador, Alemanha, Inglaterra, Suécia, Líbano, Turquia e das Nações Unidas. O encontro ocorreu no momento em que a ONU fomenta ampla pesquisa mundial contra os crimes contra mulheres – Project on strategies of response to crimes of honour (www.soas.ac.uk/honourcrimes).

Segundo Mariza Corrêa, a diferença marcante é que na América Latina são os maridos ou companheiros que matam as mulheres, ao passo que em países islâmicos a questão da honra é vinculada à família de origem e as mulheres são mortas geralmente por parentes consangüíneos – pai, irmão, primo. "Se, em um caso, trata-se de justificar o orgulho ferido do marido e, no outro, de reconstituir as relações da família de origem da mulher, por que juntar pesquisadores latino-americanos e do Oriente Médio para discutir os chamados crimes de honra? Justamente para desmistificá-los. E, no mesmo movimento, desmistificar a idéia de que a noção de honra teria o beneplácito das religiões muçulmanas como forma de controle da sexualidade feminina, o que os líderes islâmicos negam com veemência", afirma a professora.

A pesquisadora Mariza Correa: relatos de violênciaMariza Corrêa reitera que os crimes contra mulheres estão longe de ter aprovação unânime nos países islâmicos. "São formas de sociabilidade muito arraigadas nos costumes de localidades pequenas e pobres, onde o controle de uns sobre os outros é exercido face a face. As punições precisam ter a aprovação dos líderes religiosos locais e, aparentemente, existe um forte movimento das lideranças de vários países islâmicos para deixar claro que o Alcorão não endossa esse tipo de assassinato", esclarece. A antropóloga diz que, tanto em países de tradição católica como em países de tradição muçulmana, a questão da honra encobre outras questões, sendo objeto de usos políticos. "A constatação comum é que, se o estado de direito for fraco, em qualquer latitude vai imperar a lei do mais forte. No entanto, as mulheres vêm resistindo à posição de vítimas e começam a fazer perguntas incômodas para situações aparentemente estabelecidas".

Símbolo – Mariza Corrêa conta que o assassinato de Samia Sarwar, do Paquistão, em 1999, tornou-se uma espécie de símbolo da luta dos grupos de feministas, mulheres e homens em vários países do Oriente Médio, contra os costumes e as leis que deixam impunes tais crimes. Mãe de dois filhos, a advogada de 29 anos decidira separar-se do marido que a espancava. Como a família não aceitou sua decisão, ela se refugiou num abrigo de mulheres, negando-se a receber parentes homens. A pretexto de lhe entregar documentos para o divórcio, a mãe de Samia convenceu-a ir ao escritório da advogada que cuidava do caso. A mãe chegou acompanhada por seu motorista e um tio de Samia. Foi o motorista quem atirou na cabeça de Samia e acabou morto por um segurança do escritório. A mãe passou por cima do corpo da filha e foi se encontrar com o pai da vítima, que teria perguntado se o trabalho havia sido feito.

Seminário internacional organizado pelo Pagu: troca de informações entre pesquisadores sobre os "crimes de honra"Na ausência de estatísticas oficiais, estima-se que 5.000 mulheres foram mortas no mundo por membros da família (conjugal ou de origem), alegadamente em defesa da honra familiar, sendo 1.000 paquistanesas. Jordânia, Síria e Líbano garantem, no código penal, a absolvição do marido que mate a mulher apanhada em flagrante adultério, além de oferecer outras atenuantes para esses casos. "As leis na Turquia e Iraque também permitem a defesa dos assassinos em nome da honra, ainda que não prevejam a absolvição. Na Turquia, que tem um alto índice de homicídios, cerca de 200 mulheres são mortas todo ano em conflitos envolvendo a honra familiar, incluindo meninas, que nas áreas rurais são obrigadas a se casar antes dos 15 anos", diz Mariza Corrêa.

No Paquistão, que responderia por pelo menos 20% das mulheres assassinadas, os crimes de honra não estão previstos no código, de acordo com a antropóloga. Porém, o recurso à "provocação grave e imediata", introduzido pelos ingleses e abolido posteriormente, continua a ser usado para justificar assassinatos em defesa da honra, fazendo crescer o número de mulheres mortas. "Isto porque os casos registrados pelos pesquisadores apresentam motivos dos mais fúteis encarados como ‘provocação’. Lá coexistem dois sistemas penais: o sistema do Estado, com leis herdadas da tradição indiano-britânica, e o sistema tribal, mistura de tradição e códigos tribais e religiosos", observa.

Artifícios – Em relação à Turquia e outros países, freqüentemente se alega o "crime de honra" para se obter uma pena menor, notando-se ainda a "distinção social" à pessoa que tenha "limpado" a honra da família. "Quando os familiares reunidos decidem que o comportamento de uma menina ou mulher deve ser punido com a morte, muitas vezes a tarefa é delegada a um parente menor de idade, que por isso receberá uma sentença reduzida", acrescenta Mariza Corrêa.

A professora atenta ainda para a hipótese de assassinatos por interesses escusos, como na Índia, onde um antigo costume, de matar a viúva quando o marido morre, estaria servindo de pretexto para obtenção de heranças. "Em inúmeros casos relatados por pesquisadores dessa região, as mulheres são mortas no âmbito de uma disputa de terra, no bojo de um conflito entre famílias, ou por qualquer outra razão, e sua morte é apresentada como ‘crime de honra’. Mais uma razão para ser tão difícil estimar o número de assassinatos cometidos sob esta alegação", afirma.

Termo dos latinos é ‘femicídio’

Durante o encontro de três dias na Unicamp, os pesquisadores do Oriente Médio ouviram muito sobre a implantação das delegacias especializadas no atendimento à mulher no Brasil e sobre jurisprudência. “Temos poucos dados sobre assassinatos de mulheres na América Latina, com exceção da Costa Rica, que por ser um país pequeno permitiu o estudo da totalidade dos casos num período de últimos 20 anos. Pesquisadores deste e de outros países, ao invés de crimes de honra, preferem utilizar o termo ‘femicídio’ para os assassinatos de mulheres no âmbito de uma relação doméstica de violência”, explica a professora Mariza Corrêa, do Pagu.

A antropóloga da Unicamp afirma que, no caso do Brasil, o recurso à legítima defesa da honra vem sendo paulatinamente reduzido pela ação dos tribunais superiores, que têm a competência de enviar a novo julgamento o marido que mata a mulher e é absolvido pelos tribunais do júri. “Este argumento não consta do Código Penal e, enquanto tradição, é sistematicamente combatido pelo movimento feminista desde os anos 1970. Há um número cada vez maior de sentenças invalidadas. Já existe jurisprudência firmada de que a honra é inerente à pessoa, que ninguém pode agredir a honra do outro; se a mulher comete adultério, fere a sua própria honra”, afirma a professora.

Mariza Corrêa é autora do livro “Morte em Família”, a primeira pesquisa trazendo uma perspectiva feminista sobre homicídios entre casais, tendo examinado processos judiciais e o uso da honra como estratégia de defesa pelos homens. “Quando cheguei a Campinas, em 1970, ocorria o julgamento de um rumoroso caso do promotor que matou a esposa adúltera e acabou absolvido. ‘Campinas lavou a sua honra’, foi a manchete do jornal”, relembra. Ela observa que, nos países latino-americanos, os motivos para o assassinato de mulheres por seus parceiros não são menos fúteis do que no Oriente Médio: ciúme, vaidade ferida, prepotência, transformados depois, no julgamento, em “defesa da honra da família, ameaçada pelo comportamento imoral da vítima”.

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