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Tocando conforme a música
Tese de mestrado investiga as relações de Villa-Lobos
com Getúlio Vargas durante o Estado Novo

MANUEL ALVES FILHO

Parte da obra de Heitor Villa-Lobos, apontado como um dos maiores senão o maior compositor brasileiro de todos os tempos, foi colocada a serviço da política, mais precisamente do governo Getúlio Vargas. Durante 15 anos, inclusive no Estado Novo, o artista usou o seu talento para construir um programa de educação musical visceralmente ligado aos interesses do regime. Mas não se tratou apenas de cooptação. Villa-Lobos também tirou proveito dessa ligação com o poder para divulgar a sua música e fundar as bases para a mitificação do seu nome. A faceta pouco conhecida da carreira do autor de “Bachianas Brasileiras” emerge na dissertação de mestrado de Analía Cherñavsky, defendida junto ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp.

Intitulado “Um maestro no gabinete: Música e Política no tempo de Villa-Lobos”, o trabalho de Analía faz um resgate minucioso da atuação do compositor como servidor público. Sua capacidade e talento, revela a pesquisa, serviram a um plano de educação cívico-artísco baseado em princípios derivados de uma vertente do nacionalismo musical filiada ao movimento modernista. O primeiro contato do artista com a política ocorreu no início da década de 30, quando apresentou um programa de educação musical à Secretaria de Educação do Estado de São Paulo.

Dois anos depois, Villa-Lobos foi convidado pelo então secretário de Educação do Estado do Rio de Janeiro, Anísio Teixeira, para organizar e dirigir a Superintendência de Educação Musical e Artística (Sema). Sua missão: ensinar a população a ouvir a moderna música brasileira. Uma das primeiras iniciativas tomadas pelo músico foi introduzir o canto orfeônico (coral) em todas as escolas públicas e particulares, de primeiro e segundo graus, do Distrito Federal. A experiência logo começou a ser reproduzida em outros estados, chamando a atenção de Getúlio, que havia assumido a Presidência da República pela primeira vez em 1930.

Convidado pelo ministro da Educação de Getúlio, Gustavo Capanema, para integrar a Pasta, Villa-Lobos estendeu a sua experiência para o restante do País, por meio da criação do Conservatório Nacional de Canto Orfeônico. Entre as suas atribuições estava a organização dos principais eventos cívicos nacionais, como a Semana da Pátria e do Dia do Trabalho. Para essas ocasiões, como descreve Analía em sua dissertação, o maestro compunha e/ou selecionava obras que faziam uma ode ao presidente e ao regime. Um exemplo da exaltação a Getúlio e seu governo está na peça “O Canto do Page”, cujos versos dizem: Ó Tupan Deus do Brasil/que o céu enche de sol/de estrelas, de luar e de esperança!/Ó Tupan tira de mim esta saudade!/Anhangá me faz sonhar/com a Terra que perdi.

A canção foi executada por um coro orfeônico comandado pelo próprio Villa-Lobos para homenagear o presidente, quando Getúlio se dirigia ao palanque para proferir seu discurso por ocasião das datas nacionais. A propósito dessa peça, cita Analía em seu estudo, o historiador Arnaldo Contier, professor aposentado da USP, fez a seguinte crítica: “A repetição constante de uma mesma estrutura rítmica durante toda a execução desse canto denotava uma das características mais marcantes dos discursos autoritários: a repetição de uma mesma idéia, sempre ligada a uma determinada verdade ou realidade. Essa música recupera o sentido primitivo, tribal, da música, procurando transformar o código num elemento de comunhão e de solidariedade entre todos os homens em torno do ideal de Nação, encarnado na figura do Chefe ou do ditador”.
Conforme o levantamento feito pela autora da dissertação, apesar da dedicação de Villa-Lobos ao regime, a sua ligação com Getúlio foi marcada por algumas discordâncias, tanto no campo educativo quanto no musical. Todas, porém, devidamente superadas em razão da importância que a figura de um tinha para o outro. Tal relação também fugiu à tradição da cooptação e da dominação pura e simples exercida por um governo de exceção, de acordo com a pesquisadora. “Entre Villa-Lobos e Getúlio ocorria uma espécie de relação de negócios ou relação de trocas, onde ambas as partes agiam como parceiras”, afirma.

A pesquisadora Analía Cherñavsky: “Entre Villa-Lobos e Getúlio ocorria uma espécie de relação de negócios ou relação de trocas”

Memória mítica – Mas qual o motivo, afinal, para que uma parte tão importante da trajetória de um dos maiores compositores brasileiros tenha sido desconsiderada por longo tempo pela memória oficial? Para Analía, tratou-se de um movimento deliberado. A pesquisadora observou que as biografias tradicionais escritas sobre o músico baseavam-se em um modelo composto entre 1946 e 1948, pouco tempo depois da derrocada do Estado Novo. Além disso, as primeiras obras tinham como fonte direta ou indireta uma autobiografia escrita por Villa-Lobos.

“Naquele momento, marcado pela crítica internacional ao fascismo, depois do painel trágico revelado durante a Segunda Guerra, qualquer tipo de relação com um regime considerado fascistizante procuraria ser ocultada, principalmente se essa relação fosse marcada por uma indicação para um cargo de confiança relacionado a uma missão de caráter estratégico para a manutenção do poder, qual seja, o controle das massas urbanas”, afirma a autora da dissertação. Somente alguns anos depois, aproveitando a corrente revisionista que dominou o campo das ciências humanas durante as décadas de 1970 e 1980, surgiram novos trabalhos que focalizaram a obra educacional de Villa-Lobos e retomaram a questão da ligação entre a sua música e a política, aspecto negado anteriormente pelos seus biógrafos.


Heitor Villa-Lobos nasceu no dia 5 de março de 1887, no bairro de Laranjeiras, no Rio de Janeiro. Filho de Noêmia, dona de casa, e de Raul, funcionário da Biblioteca Nacional, ele teve o primeiro contato com o mundo da música por intermédio do pai, músico amador. Na casa do futuro maestro, como informa uma breve biografia elaborada pelo Museu Villa-Lobos, nomes respeitados da época se reuniam para tocar, aos sábados, até de madrugada. Aos seis anos de idade, Villa-Lobos aprendeu a tocar violoncelo com o pai, em uma viola especialmente adaptada. 

Foi também nessa época, graças a sua tia Fifinha, que lhe apresentou os Prelúdios e Fugas do “Cravo Bem Temperado”, que “Tuhú”, seu apelido de infância, fascinou-se pela obra de Johann Sebastian Bach, compositor que acabou por lhe servir de f
nte de inspiração para a criação de um de seus mais importantes ciclos, o das nove “Bachianas Brasileiras”. Além da cidade do Rio de Janeiro, Villa-Lobos residiu com a família em cidades do interior do Estado e também de Minas Gerais. Nessas viagens, entrou em contato com uma música diferente da que estava acostumado a ouvir: modas caipiras, tocadores de viola, enfim, uma parte do folclore musical brasileiro que, mais tarde, viria a universalizar-se através de suas obras.

A maturidade artística de Villa-Lobos tem como marco o ano de 1915, quando ele se apresenta oficialmente como compositor, com uma série de concertos no Rio de Janeiro. Na época, casado com a pianista Lucília Guimarães, ele ganhava a vida tocando violoncelo nas orquestras dos teatros e cinemas cariocas, ao mesmo tempo em que escrevia suas obras. Os jornais publicavam críticas contra a modernidade de sua música. A esse propósito, o maestro escreveu o seguinte texto:

“Não escrevo dissonante para ser moderno. De maneira nenhuma. O que escrevo é conseqüência cósmica dos estudos que fiz, da síntese a que cheguei para espelhar uma natureza como a do Brasil. Quando procurei formar a minha cultura, guiado pelo meu próprio instinto e tirocínio, verifiquei que só poderia chegar a uma conclusão de saber consciente, pesquisando, estudando obras que, à primeira vista, nada tinham de musicais. Assim, o meu primeiro livro foi o mapa do Brasil, o Brasil que eu palmilhei, cidade por cidade, estado por estado, floresta por floresta, perscrutando a alma de uma terra. Depois, o caráter dos homens dessa terra. Depois, as maravilhas naturais dessa terra. Prossegui, confrontando esses meus estudos com obras estrangeiras, e procurei um ponto de apoio para firmar o personalismo e a inalterabilidade das minhas idéias”.

 

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