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A filosofia e a linguagem
do conhecimento


MANUEL ALVES FILHO


O professor Arley Moreno, autor de Introdução a uma pragmática filosófica: "Obra que trata de problemática filosófica universal" (Foto: Antoninho Perri)Acaba de chegar ao mercado o mais novo livro do professor Arley Ramos Moreno, diretor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. A obra, intitulada “Introdução a uma pragmática filosófica”, dá prosseguimento às reflexões do autor a partir do pensamento de variados filósofos, particularmente do austríaco Ludwig Wittgenstein. Lançada pela Editora da Unicamp, a publicação trata de importantes elementos relacionados à linguagem, procurando demonstrar que papéis eles desempenham no estabelecimento do sentido dos conceitos. Na entrevista que segue, Arley Moreno fala sobre essa filosofia da linguagem, mas também acerca da importância do ensino e do exercício da filosofia no cotidiano das pessoas.

Jornal da Unicamp – O que é essa filosofia da linguagem?

Arley Moreno – Em primeiro lugar, seria importante situar o domínio do conceito de pragmática, como relativo a reflexões sobre a linguagem. Na tradição filosófica mais recente, que remonta ao final do século 19 e começo do século 20, foi feita uma distinção dentro da linguagem, em três domínios: o da sintaxe, que é o estudo das regras; o da semântica, que é a análise do sentido; e o da pragmática, que se ocupa de investigar os usos da linguagem em relação a elementos diversos das situações de produção dos enunciados, tais como os próprios interlocutores e suas complexas relações sociais, objetos empíricos, ações etc. Simplificando, vamos tomar o seguinte exemplo: está um dia ensolarado e eu digo, com um sorriso no rosto, “olha que temporal!”. Nós podemos distinguir este enunciado do ponto de vista da sintaxe e da semântica, mas também da pragmática. Obviamente, ao fazer esta afirmação, eu estou sendo irônico com meu interlocutor e esperando que compreenda uma mensagem para além da literalidade do enunciado, pois, de fato, estou usando o sentido literal para dizer exatamente o oposto. A pragmática, então, é o estudo da linguagem do ponto de vista dos enunciados enquanto situados em suas circunstâncias de produção.

JU – E como a filosofia é empregada nesse sentido?

Arley Moreno – Existe uma oposição tradicional, na história da filosofia, entre dois domínios: o dos objetos empíricos e o do pensamento. Os pré-socráticos haviam notado que ao descrevermos as transformações sofridas pelos corpos sensíveis, seja mudanças em sua forma, seja mudanças no espaço, chega-se inevitavelmente a contradições. Por exemplo, se um determinado objeto está em um estado a e passa para um estado b esta passagem corresponde àquela de um determinado estado de ser para outro estado que é sua negação. Se o objeto existe no primeiro estado, o segundo estado corresponde ao de não-existência desse mesmo objeto. Nesse sentido, a passagem entre os estados indica que o objeto que existe em a passa a não-existir em b, e que é nisso que consiste a mudança, cuja descrição vai, assim, gerando contradições. Entretanto, se você fecha os olhos e apenas pensa nesse mesmo objeto como existindo, as contradições desaparecem. A partir desse exercício de pensamento você pode evitar toda contradição ao descrever as propriedades do que existe, ao dizer que o que existe, existe; e o que não existe, não existe, assim como que o que existe difere do não-existente. Ou, em linguagem mais enxuta: o ser é e o não-ser não é, assim como o ser é incompatível com o não-ser, i.e., chegamos a formular os princípios mais elementares sobre os quais está fundamentado todo nosso conhecimento científico. Pois bem, essa idéia de dois domínios incompatíveis percorreu os séculos e chegou aos dias de hoje. Atualmente, essa oposição toma a forma da oposição entre corpo e pensamento ou alma, fundando afirmações tais como a de que com a morte do corpo a alma sobrevive. Do ponto de vista da linguagem, essa oposição chega até nossos dias por um conceito introduzido por Kant [Immanuel Kant, filósofo alemão que viveu entre em 1724 e 1804].

JU – Que conceito é esse?

Arley Moreno – Kant mostrou que o discurso da matemática, considerando aí a geometria e a aritmética, é constituído por enunciados que ele chama de “sintéticos a priori”. Do ponto de vista da linguagem, isso concentra uma oposição interessante. De fato, o discurso das ciências empíricas é constituído pelos chamados juízos “sintéticos a posteriori”. Um exemplo: quando se diz que a elevação da temperatura de um corpo faz com que ele se dilate, isso proporciona um conhecimento novo que deve ser comprovado por experimentos.Nesse sentido, é um juízo denominado de “sintético a posterior”. Sintético por trazer novo conhecimento e a posterior por depender de consulta à experiência. No caso da lógica, os juízos são, pelo contrário “analíticos a priori”, por exemplo quando dizemos que “ Sócrates é mortal”, em que o conceito de mortalidade já está contido na compreensão do sentido de Sócrates sendo, apenas, uma explicitação desse sentido sem necessidade de qualquer recurso à experiência. Voltando agora à matemática, esta tem algo de aparentemente misterioso, que são os juízos “sintéticos a priori”, i.e., uma composição entre propriedades que parecem ser excludentes. Um exemplo é o fato de sabermos que a menor distância entre dois pontos, numa superfície plana, é uma linha reta. Esse juízo traz um conhecimento novo, mas não requer nenhum experimento para ser comprovado, não havendo qualquer experimento que possa falsifica-lo. Reconhecemos a necessidade do novo conhecimento que introduz.

JU – E como esses conceitos se aplicam à linguagem?

Arley Moreno – A idéia do “sintético a priori” pode ser considerada como a expressão lingüística de uma forma peculiar de conhecimento, aquele em jogo na matemática. Note-se que essa idéia concentra oposição equivalente entre pensamento e experiência, apenas que em termos lingüísticos. O grande desafio é explicar essa convivência no mesmo bloco do inteligível e o sensível. Ora, a idéia do “sintético a priori” pode ser melhor compreendida se interpretarmos pragmaticamente esse “a priori”. Exemplo: consideremos um objeto empírico qualquer para ser usado como regra lingüística, por exemplo, como regra para a aplicação da palavra “caneta”. Note-se que tal objeto qualquer não será escolhido por suas propriedades empíricas, mas, apenas, a partir de convenções estabelecidas por outras razões e motivos. Assim, esse objeto, independente da sua cor, tamanho ou peso, permite descrever inúmeros outros objetos como sendo canetas, o que vem a acrescentar novos conhecimentos. Todavia, como esse conhecimento depende apenas da aplicação de uma regra, e não de uma experiência qualquer, ele pode ser classificado como “a priori”. Quando utilizo os elementos pragmáticos, i.e., fragmentos quaisquer de situações empíricas, como regras lingüísticas normativas, eu passo a organizar a experiência segundo essas regras, o que me permite obter conhecimentos que independem da empiria, ainda que colhido em seu interior. Deixa, aqui, de haver a oposição entre dois domínios, mas uma extensão esclarecedora a respeito da importância e do papel constitutivo de nossas ações envolvidas com a linguagem na construção do conhecimento.

JU – O objetivo dessa filosofia da linguagem, então, é esclarecer o emprego dos conceitos?

Arley Moreno – Sim. No começo do século 20, um grupo de filósofos que integravam o Círculo de Viena participou e muito contribuiu para a consolidação da chamada “guinada lingüística” da filosofia. Ou seja, eles começaram a tratar dos problemas tradicionais da filosofia, levando seriamente em conta o papel constitutivo da linguagem no conhecimento, no pensamento e na percepção. Após vários desenvolvimentos, chegamos à fase do pensamento maduro de Wittgenstein, que introduz a dimensão pragmática na reflexão sobre o sentido dos conceitos e sobre os seus fundamentos. Por exemplo, quando alguém diz que está com dor, Wittgenstein procura investigar como está sendo aplicado o conceito de dor, qual a explicação que fornece o interlocutor a esse respeito. Várias respostas são possíveis: dor é um estado mental característico e específico, ou é um estado cerebral cujo processo físico-químico pode ser descrito pelo cientista, ou é um estado a respeito do qual não posso ter dúvidas, ou um estado privado, inacessível a outras pessoas, etc. Ao procurar descrever as regras que fundamentam a aplicação feita do conceito, Wittgenstein lança mão de elementos de natureza pragmática, inclusive, mostrando, com isso, seu papel regulador e normativo na organização da experiência através de conceitos.

JU – Seu livro está voltado para um publico especializado, não?

Arley Moreno – Sim. É um livro dirigido aos filósofos e estudantes de pós-graduação em Filosofia e Lingüística, por exemplo. É uma obra que trata de problemática filosófica universal.

JU – Nos dias atuais, marcados por denúncias de corrupção e pela discussão acerca da ética, que papel a filosofia pode desempenhar?

Arley Moreno – A filosofia não muda os fatos. Não é filosofando que alguém vai alterar a realidade. A filosofia muda o pensamento, que tende a ser mais crítico. O que se faz o tempo todo em filosofia é tomar uma afirmação, seja do político, do artista ou do próprio filósofo, e analisar os seus pressupostos implicitados – note você que não disse implícitos, mas refiro-me a algo realizado ativamente: ocultar o que não se quer dizer, ou o que não se é capaz de dizer. É a análise dos fundamentos, geralmente ocultos ou ocultados pelo que é dito literalmente nos discursos. A partir disso é possível mostrar que uma determinada afirmação está baseada em interesses ideológicos, econômicos, religiosos ou outros. Então, a filosofia não muda a realidade, mas muda o pensamento através do esclarecimento de situações conceituais. E o pensamento crítico pode levar a uma mudança de atitude, repercutindo nas ações. Você me pergunta qual seria o papel da filosofia na atualidade brasileira, ou em qualquer outra situação social semelhante, e eu diria que não terá resultados espetaculares, mas, e mais uma vez, apenas poderá esclarecer situações que nos afligem para orientar o pensamento e, no melhor dos casos, implementar alguma clareza nas ações. Para tanto, seria, está claro, permitir que a voz da reflexão filosófica fosse divulgada e ouvida pelas pessoas, o que está longe de acontecer – aliás, estou tendo essa forte experiência a partir das atividades que exerço atualmente como diretor de unidade, em nossa universidade.

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