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Médicas veterinárias realizam experimentos com larvas
de mosca varejeira em linha de pesquisa do IB

Larvas contra feridas, na
volta da secular bioterapia

LUIZ SUGIMOTO



As médicas veterinárias Fernanda Leme Silva Bastos Varzim (à esq.) e Maria Lúcia Marcucci Torres: testando a ação de substâncias químicas esterilizantes sobre os ovos e o efeito de antibióticos sobre as larvas (Foto: Antoninho Perri)Em ciência não se torce o nariz, mesmo que a hipótese da pesquisa contrarie o senso comum. É senso comum, por exemplo, que moscas são nojentas e trazem doenças. Entretanto, a aplicação terapêutica de larvas da mosca varejeira – aquela que provoca um escarcéu quando aparece na cozinha – diretamente sobre feridas em humanos e animais, é o objeto de pesquisa das médicas veterinárias Fernanda Leme Silva Bastos Varzim e Maria Lúcia Marcucci Torres, que acabam de apresentar suas dissertações de mestrado no Instituto de Biologia (IB) da Unicamp. A idéia de que ambas se introduzissem na bioterapia, também chamada de biocirurgia ou terapia larval, partiu do orientador Angelo Pires do Prado, professor do Departamento de Parasitologia.

Idéia partiu de orientador de dissertações

 (Foto:Reprodução)A bioterapia consiste na utilização de larvas vivas de moscas para limpeza de feridas crônicas ou infectadas, visando à remoção do tecido necrosado (que as larvas ingerem) e diminuindo o risco de infecção. Essas e outras vantagens têm levado ao reaparecimento e crescimento da terapia larval em vários países como Estados Unidos, Inglaterra, Alemanha, Bélgica e Israel. Lá fora, quase todos os casos registrados na literatura se referem à aplicação em humanos. Aqui, a aceitação seria muito difícil, como admite Lúcia Torres. “A mosca está associada demais à sujeira e desperta repugnância. Mas é boa nossa expectativa quanto ao uso da bioterapia em animais, devido ao custo menor do tratamento em comparação com os medicamentos veterinários, que por vezes também interferem na qualidade da carne ou do leite, no caso dos bovinos”, esclarece.

Graduadas na Unifeob (Centro Universitário da Fundação de Ensino Octávio Bastos) de São João da Boa Vista, e especializadas em clínica e cirurgia de pequenos animais, Lúcia Torres e Fernanda Varzim têm como próxima meta promover experiências de bioterapia no hospital veterinário daquela cidade, inclusive com bovinos e eqüinos. Para o mestrado, elas capturaram, criaram e manipularam moscas em laboratório e, a partir da mesma cultura, cada qual desenvolveu sua dissertação, como será descrito nesta página.

A família das varejeiras tem o nome de Calliphoridae, mas foram trabalhadas larvas de uma das espécies, a Chrysomya putoria. Fernanda Varzim justifica a escolha desta espécie por ela se alimentar de tecido morto. “Há outras espécies, mesmo entre as varejeiras, que ingerem também o tecido sadio, comprometendo o propósito de remover a parte necrosada e promover a cicatrização da ferida. Também procuramos uma espécie de fácil captura na região. Nos Estados Unidos, utiliza-se a Lucilia sericata, mais comum no clima daquele país”, explica. Fernanda acrescenta que moscas da família Calliphoridae são consideradas mais eficientes em virtude de serem facilmente criadas in vitro e desenvolverem rapidamente as larvas. Além disso, suas larvas não costumam invadir órgãos internos.

Na guerra – Antes de detalhar suas pesquisas, as médicas veterinárias contam a história da bioterapia, que é interessante. Há evidências de que a técnica já era usada por tribos aborígines da Austrália e pelos maias na América Central. No exército de Napoleão, em 1829, o cirurgião Dominic Larrey percebeu e descreveu a ação das larvas na cicatrização de feridos na batalha, mas não se atreveu a utilizá-las terapeuticamente. O primeiro médico ocidental a introduzir intencionalmente as larvas em feridas de combatentes teria sido J. Zacharias, do exército confederado da guerra civil americana. No entanto, o precursor da bioterapia moderna, por ser autor do primeiro estudo científico, foi William Baer, professor clínico de cirurgia ortopédica da Faculdade de Medicina Johns Hoptkins, em Maryland.

Durante a 1ª Guerra Mundial, Baer observou dois soldados que sobreviveram com fraturas expostas e grandes ferimentos no abdômen, depois de ficarem perdidos no campo de batalha por sete dias, sem alimentação e medicamentos. Apesar disso, seus ferimentos apresentavam granulações róseas, sem evidências de febre e infecção sistêmica. Os ferimentos estavam infestados com milhares de larvas. O professor refletiu sobre a experiência por dez anos e, em 1927, tratou quatro crianças com osteomielite no hospital, recorrendo a larvas que, mesmo não-esterilizadas, levaram à cicatrização das feridas em seis semanas.

William Baer persistiu com esse tipo de tratamento, mas como muitos pacientes desenvolveram tétano, concluiu que seria necessário esterilizar as larvas. Artigos da época descreviam porque era difícil ou mesmo impossível que as larvas resistissem à assepsia. Veio então a idéia de esterilizar os ovos de mosca, a fim de que as larvas eclodissem já limpas, e mesmo que vários métodos que destruíam as bactérias também fossem letais para os ovos. “A bioterapia foi muito disseminada durante a década de 1930, particularmente nos Estados Unidos, aonde larvas de Lucilia sericata chegaram a ser comercializadas em larga escala por uma indústria farmacêutica. Depois, com o uso de antibióticos na década de 40, essa terapia foi deixada de lado. Hoje, com a resistência aos antibióticos, a bioterapia reaparece como forma alternativa de tratamento, principalmente para feridas graves”, informa Fernanda Varzim.

Resultados – De acordo com Lúcia Torres, ainda não são totalmente compreendidos os mecanismos pelos quais as larvas promovem a cicatrização. “Mas podemos incluir a produção natural de agentes semelhantes aos antibióticos, a secreção de agentes com propriedades cicatrizantes como alantoína e uréia, a alcalinização do pH da ferida por meio da secreção de amônia e carbonato de cálcio, a liquefação de tecido necrosado e a ingestão e destruição de bactérias como parte normal de seu processo de alimentação”, afirma.

Nas décadas de 30 e 40, a terapia larval era utilizada principalmente no tratamento da osteomielite, mas atualmente é indicada também para feridas de pele, pós-cirúrgicas, decorrentes de diabetes e necrosadas ou crônicas, bem como para úlceras de pressão, lesões traumáticas, gangrenas intratáveis e alguns tumores. Por outro lado, o tratamento é contra-indicado em feridas que sangram com facilidade, que tenham comunicação com cavidade ou órgão interno, e naquelas que estão muito próximas de grandes vasos sanguíneos.

Fernanda Varzim e Lúcia Torres pesquisaram sobre inúmeros experimentos e relatos de casos a respeito da eficácia da terapia larval. Um levantamento no Reino Unido, no final da década de 90, registrou que a bioterapia estava sendo utilizada em cerca de 350 hospitais e clínicas. Mais recentemente, na Inglaterra, 70 pacientes acompanhados em nove hospitais foram tratados com sucesso por meio da bioterapia. “Na Universidade da Califórnia, Sherman, que talvez seja o maior entusiasta dessa técnica, acompanhou 18 diabéticos com feridas que não cicatrizavam. Alguns receberam tratamento convencional, com antibióticos tópicos, hidrogel e desbridamento cirúrgico. Outros se submeteram à bioterapia, que foi mais seletiva e eficiente em desbridar as feridas, o que ocorreu em 80% a 95% dos casos”, diz Lúcia Torres.

Esterilização e antibióticos

Para os mestrados no Instituto de Biologia, Fernanda Varzim e Lúcia Torres capturaram e criaram moscas Chrysomya putoria em laboratório com dois propósitos: testar a ação de substâncias químicas esterilizantes sobre os ovos e a ação de antibióticos sobre as larvas. As moscas adultas depositam seus ovos nas partes de mamíferos e aves mortos, em carne crua ou cozida, em ferimentos abertos e, ocasionalmente, em fezes e frutas. Por isso, a superfície externa dos ovos é muito contaminada com as bactérias, sendo que a esterilização é a forma de fazer eclodir larvas assépticas, prevenindo sérias complicações durante a terapia larval. “Há relatos de que existem aproximadamente 250 espécies diferentes de bactérias na superfície de uma única mosca”, ilustra Fernanda Varzim, responsável por essa parte da pesquisa.

Os esterilizantes testados foram formoldeído, hipoclorito de sódio, permanganato de potássio, digluconato de clorexidina, Farmasept, Farmasept 800, Farmasept-plus e Ultrasept, em diferentes concentrações e por tempos variados. “Eu removia os ovos depositados pelas moscas em um pedaço de fígado, lavando-os nessas substâncias. Depois, observava a taxa de eclosão das larvas”, simplifica Fernanda Varzim. Ela afirma que os melhores resultados foram obtidos com o hipoclorito de sódio, formoldeído e Farmasept-plus. “Esses esterilizantes praticamente não afetaram a taxa de eclosão. Também realizei o teste microbiológico, sem detectar qualquer crescimento bacteriano, o que dá a segurança para a utilização desses três anticépticos”, conclui.

Lúcia Torres, por sua vez, explica que os testes com antibióticos foram motivados por relatos na literatura, tanto de medicina humana como veterinária, da necessidade de avaliação dos riscos à sobrevivência das larvas durante a bioterapia, dependendo do tipo e da concentração do fármaco. “Se a ferida estiver muito infeccionada é necessário usar antibióticos sistêmicos, que podem matar também a larva que está se alimentando do tecido”, explica. Foram testados os quatro antibióticos mais aplicados na rotina de tratamento de animais: Ampicilina, Amoxicilina, Cefalexina e Cefalotina, em forma de pó, misturado ao meio onde as larvas se alimentam (com substâncias como leite em pó, levedo de cerveja, caseína e ágar). “Dentre os quatro fármacos, o melhor foi a Amoxilina, que mais apresentou larvas sobreviventes, seguida da Ampicilina. Os piores resultados foram com a Cefalexina e a Cefalotina, que devem ser descartadas”, afirma.

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Foto: Antoninho PerriFoto: Neldo CantantiFoto: Antoninho PerriFoto: Gustavo Miranda/Agência O GloboFoto: Antoninho Perri