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Edgar de Decca leva a Lisboa
o Brasil que descobriu Portugal

ÁLVARO KASSAB



O professor e historiador Edgar de Decca assume nesta semana uma cátedra da Unicamp no Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE), em Lisboa. Escolhido através de concurso, De Decca leva na bagagem uma tese de mestrado inédita de Sérgio Buarque de Holanda, descoberta por ele em garimpagem feita no acervo confiado à Unicamp pela família do intelectual paulistano.

Defendida em 1957 na Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo, a peça, intitulada Elementos formadores da sociedade portuguesa na época dos descobrimentos, é mais que um relato detalhado da atmosfera cosmopolita que impulsionou a grande aventura levada a cabo pelos colonizadores. Na avaliação do próprio De Decca, o documento aprofunda, 20 anos depois, aquilo que a obra buarquiana esboçara em Raízes do Brasil, clássico que trouxe à luz os elementos formadores da nossa sociedade. "Há uma linha de continuidade fantástica entre as duas obras", avalia De Decca.

A tese de Sérgio Buarque integra o programa que o historiador levará a Portugal, cujo recorte cronológico contempla o período compreendido entre a Independência e as obras dos intelectuais que emergiram na década de 30 na historiografia brasileira. A literatura, sobretudo os autores do Romantismo e do Modernismo, ocupa da mesma maneira um papel importante no curso a ser ministrado de outubro a dezembro pelo professor do Departamento de História da Unicamp. O professor vislumbra na ficção um elemento imprescindível para as coisas do rigor historiográfico.

Em síntese, De Decca vai transitar física e intelectualmente no território que forjou nossa identidade, embutidas aí as contradições de uma relação marcada pela tensão permanente, como ele próprio lembra. Estão nela, ainda segundo De Decca, "o amor e a hostilidade, o pai que nos aconchega e o pai que nos vira as costas". Nessa gincana dialética, o filho nem sempre assimila o legado sugerido pelo pai. Muitas vezes rebela-se contra o mandato que prevê o surgimento de uma nova civilização, rompe com as tradições e parte em busca de uma linguagem e de uma cultura que o distancie das matrizes ibéricas.

Um problema insolúvel? Seria, diz o professor, caso não existisse o universo da história. É a reboque dele, e de sua respectiva narrativa, que De Decca constrói seu trabalho. O historiador não esconde o fascínio que nutre pelos elementos que constituíram nossa identidade. "Tenho um interesse especial pela maneira como essa história foi contada e construída para nos aproximar e nos distanciar desse pai que ora idealizamos, ora rejeitamos", revela.

Tal afinidade permeia a trajetória intelectual do pesquisador. Em 1981, por exemplo, De Decca lançou 1930 - O Silêncio dos Vencidos (Brasiliense, 8º edição), obra que colocou em suspeição parte das abordagens de então. De Decca subverteu a ordem ao mergulhar em arquivos e privilegiar fatos que marcaram a história da Revolução de 30 a partir de uma outra ótica, a do movimento sindical, desprezando a versão difundida pelas elites.

Uma aposta, revela o historiador, desenvolvida no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, cujo papel foi paradigmático no cenário da historiografia brasileira a partir de meados da década de 70. A história passou a ser contada de uma outra maneira. Inclusive pela voz dos vencidos excluídos.

Entrevista: Edgar de Decca

Jornal da Unicamp -
O senhor vai se ater em que período da história na cátedra?

De Decca - O ponto de partida é o momento chave da questão da formação dessa idéia de Brasil, que ocorre a partir do século 19, quando o país se transforma numa nação independente Ainda que seja com o concurso de um imperador português. Entra aí a figura do pai...

JU - Avança para o terreno da psicanálise?

De Decca - É quase isso. Trata-se de uma figura importante. A própria nacionalidade brasileira tem que ser construída por um imperador que ficaria por um certo tempo e nos deixaria com o herdeiro, para que a continuidade dessa relação, quase que de cunho freudiano, se mantivesse. Essa idéia da identidade constituída no momento da formação do estado nacional brasileiro é o que mais me atrai. O ponto de partida é esse. Todos os movimentos que de uma certa maneira culturalmente nos aproximam, nos distanciam ou nos dilaceram, são oriundos desse momento de instituição da idéia de nação, de território, de povo, que o século 19 vai procurar forjar. Evidentemente vou cotejar todo esse movimento cultural até aquilo que mais me atrai, que é exatamente a década de 1930, quando os pensadores brasileiros atuam sistematicamente. Essa é outra parte da minha pesquisa, que revisita por exemplo a obra de Sérgio Buarque de Holanda, sobretudo quando ele escreve Raízes do Brasil. Ao buscar nossas raízes, Sérgio vai encontrá-las no mundo ibérico.

JU - Onde o senhor vai buscar os elementos que acabaram por constituir a nossa identidade?

De Decca - Busco nessa longa trajetória que vai da formação do estado nacional até um repensar do Modernismo brasileiro na figura de Mário de Andrade e Oswald de Andrade, em Gilberto Freyre, Caio Prado Júnior e, sobretudo, em Sérgio Buarque.

JU - O senhor incursiona também no território da literatura.

De Decca - Sem dúvida, desde o Romantismo brasileiro, que teve como tarefa construir uma literatura que se distinguisse da literatura portuguesa. Pelo menos se pretendeu vincular nossa literatura aos cânones do Iluminismo, do Romantismo e de outras praças e de outros centros culturais, como foi o caso da França, que nos serviu como modelo literário durante todo o século 19. Analiso o romance histórico brasileiro, principalmente a partir de José de Alencar até chegar ao século 20, a Euclides da Cunha, Lima Barreto e ao Modernismo, a partir de Macunaíma. Serão justamente os símbolos dessa literatura, que ao mesmo tempo busca um lugar e tenta ser a escrita do Brasil. É uma ficção que quase que se envergonha de ser ficcional. Para ser ficção ela tem que estar nesse lugar novo da identidade. O caminho percorrido pela literatura brasileira me fascina muito. É quase que uma vergonha da ficção, da suposta alienação da realidade, da evasão. Ela tinha que estar vinculada à idéia do nacional.

JU - Como o senhor vê a separação do discurso histórico do discurso literário?

De Decca -É um erro, porque são duas narrativas que, do ponto de vista dos seus atributos, são muito semelhantes. O que as separa são os aspectos referenciais, mas, como narrativas, são banhadas dos componentes da imaginação e da ficcionalização. Portanto me interessam os enredos, são as histórias que se contam. Não me interessa se são literárias, se são ficcionais ou historiográficas.

JU - O senhor poderia explicar o porquê do recorte na década de 30?

De Decca - Um dos pontos importantes dessa pesquisa vem se casar a uma coisa muito feliz. No ano passado, presidi a comissão do centenário do Sérgio Buarque de Holanda, em Campinas. Pesquisando seu acervo que está no Arquivo Central, descobri uma tese inédita. Num primeiro momento nem acreditei que pudesse existir algum escrito inédito, muito menos do porte de uma tese. Como você pode imaginar que uma tese de um dos mais importantes intelectuais do século 20 pudesse ser desconhecida do grande público? E de fato é. Nem sequer acreditei que era de fato um diploma de mestrado. Bons biógrafos do Sérgio, que eu conheço e respeito muito, como a Maria Odila Dias, Franciscos Iglesias e Sueli Robles, ainda que soubessem, nunca deram divulgação. A razão ainda estou por descobrir.

JU - O que o senhor pretende fazer com esse material?

De Decca - Nós estamos negociando sua publicação com a família, mesmo tendo a priori a autorização para publicá-la. Essa minha ida a Portugal também é importante porque talvez eu possa fazer uma pesquisa mais apurada sobre essa obra, que Sérgio Buarque defendeu como tese de mestrado na Escola Livre de Sociologia e Política, de São Paulo, onde se formou Florestan Fernandes. Essa instituição criada por Roberto Simonsen, que é um dos meus personagens principais em O Silêncio dos Vencidos, sempre me fascinou. Uma grande geração de intelectuais de São Paulo se formou lá e até hoje é muito pouco estudada. Descobri que Sérgio Buarque defendeu a tese de mestrado em 1957, dois meses antes de defender a de doutorado na USP, que era sobre o famoso livro A visão do paraíso [1958].

JU - Sobre o que basicamente trata a tese?

De Decca - O título já é surpreendente. A tese chama-se Elementos formadores da sociedade portuguesa na época dos descobrimentos. O que significa dizer o seguinte: aquilo que está esboçado em Raízes do Brasil como os elementos formadores da nossa sociedade, é esmiuçado 20 anos depois.

JU - Pode-se afirmar que se trata de uma abordagem mais madura do ponto de vista intelectual e do rigor acadêmico?

De Decca - Sim. Inclusive a minha hipótese, que está cada vez mais se confirmando, é a de que há uma linha de continuidade fantástica entre Raízes do Brasil e essa tese de mestrado. Em Raízes do Brasil ele esmiuça de uma maneira muito rica aquela que é a vertente da década de 50, que é a história social. Aquilo que foi trabalhado à exaustão no território do imaginário em Visão do Paraíso, ele dedica ao estudo de uma história social muito ao estilo da Escola francesa dos Annales ao pesquisar os aspectos da cultura e da sociedade portuguesa que vem a fazer a grande aventura do descobrimento.

JU - Qual a chave da tese?

De Decca - É a seguinte indagação: como se formou essa cultura que não gosta de olhar para dentro da sua própria terra e prefere se aventurar pelo mar? Por que Portugal é vazio no interior, como também o é o Brasil? É um pouco essa idéia que Sérgio coloca em Raízes do Brasil de que nós somos um povo de caranguejos que só fica beirando o litoral e não se adentra no interior em que as entradas e bandeiras são, portanto, a grande experiência de constituição do território, de redefinição da fronteira. E fronteira da cultura, não a fronteira geográfica e territorial.

JU - O senhor acha que essa tese vai oferecer uma nova dimensão para a obra do próprio Sérgio Buarque de Holanda. Qual a sua importância para a historiografia brasileira?

De Decca - Sem dúvida que vai redimensionar o papel de Sérgio Buarque. A importância não é só para a história, mas também para a nossa literatura. Trata-se de um texto literário ainda não trabalhado. E me interesso muito por isso. Os meus dois últimos artigos sobre Sérgio Buarque são para estudar seu texto, as metáforas e as imagens que são produtoras de seu universo narrativo. As figuras de linguagem são muito poderosas na sua obra: o ladrilhador e o semeador em Raízes do Brasil, por exemplo. São sempre pares de oposições conflitantes, são metáforas de uma força interpretativa que abarcam grandes territórios do passado e da nossa própria cultura. Seu texto merece essa atenção, sobretudo nesse viés sobre o qual ninguém se debruçou para estudar a sua composição.

JU - Quais foram as fontes usadas pelo historiador?

De Decca - O que fascina nesse texto é que ele me parece que só foi possível por ter sido escrito pelo olhar de um espião, daí meu interesse pela metalinguagem. As fontes que são capazes de desnudar aquela Lisboa e outras cidades portuguesas da época dos descobrimentos são viajantes venezianos infiltrados, que faziam relatórios secretos.



"A escrita biográfica do Brasil tem uma inscrição longínqua"


JU - Com que objetivo?

De Decca - Os mercadores estavam interessados no comércio do Mediterrâneo e nas praças comerciais da Península Ibérica. Eles entravam por Sevilha e chegavam até Lisboa. Há toda uma troca de impressões e de informações que vão circulando. Eles eram muito bem-informados. Na outra linha, os portugueses visitavam as praças de Londres, Antuérpia, Hamburgo etc. Esse meta-texto me fascina inclusive pelo lado ficcional. É muito interessante porque os documentos históricos que vão fundamentar esta narrativa buarquiana retratam a sociedade portuguesa a partir de uma visão quase clandestina, isto é, o olhar do espião. Acho muito rico esse jogo de metáfora, de composição narrativa. A abertura da tese também é muito bonita. É uma homenagem a Leopold von Ranke, um autor que reescreve a história da Europa. Sérgio se sente seu seguidor. Ele abre seu texto mostrando como Ranke tenta dizer como foi possível formar o território europeu com tantas guerras e tantas disputas. Sérgio indaga onde estão as fronteiras da Europa. Uma delas é Portugal.

JU - Quais são os elementos do texto que colaboram para uma nova abordagem sobre o Portugal da época?

De Decca - Sérgio amplia o horizonte, mostrando como se estabelece esse contexto do descobrimento. O mais rico é justamente a montagem da obra. Ele pesquisou documentos em Portugal e em Veneza. Ele morou dois anos em Roma na década de 50. Tenho um amigo, Ettore Finazi Agró, um crítico literário da Universidade de Roma, que está num grupo do qual faço parte e que estuda o cruzamento da literatura com a história no plano da narrativa, que me aconselhou a ir a Veneza caso eu quisesse percorrer todo trajeto do Sérgio. Com certeza, os arquivos venezianos vão me dar também uma dimensão muito grande do que foi essa navegação do Mediterrâneo. É muito interessante como, na pesquisa histórica, essas coisas vão se juntando. Anos atrás, quando Peter Burke sequer era conhecido no Brasil, eu estava na cidade de Veneza e vi um livro que me fascinou muito, chamado Veneza e Amsterdã. Era uma história comparada das duas cidades comerciantes - uma, Amsterdã, da liga hanseática e a outra, Veneza, importante cidade do comércio do Mediterrâneo. Comprei o livro em Veneza e trouxe para o Brasil. E, logo depois da publicação de O Silêncio dos Vencidos, ofereci à Brasiliense a tradução. E a editora me pediu o prefácio do livro, que foi publicado no Brasil porque me fascinava como se formaram as elites comerciantes dessas duas cidades republicanas. É interessante você ligar pontos que no passado estavam esgarçados. De repente Lisboa e Veneza foram se juntando pela obra do historiador Peter Burke e, agora, quase como uma ficção, na minha própria experiência de historiador, Veneza está chegando perto de Lisboa.

JU - Onde essa tese se diferencia de Raízes do Brasil?

De Decca - Diria que Raízes do Brasil é um insigth, um ensaio de interpretação histórico-sociológico do Sérgio Buarque, embora vários capítulos sejam baseados em fontes primárias, sobretudo literárias. Ele nos indica essa imensa riqueza da utilização das fontes literárias no trabalho historiográfico. Mas o forte em Raízes do Brasil é menos esse burilar do historiador frente ao documento e mais o esforço interpretativo. É mais um ensaio, o que é muito diferente de uma monografia, isto é, de sua tese de mestrado, cuja adesão ao documento, a enorme cumplicidade do historiador com relação às fontes e a empatia com relação a elas transforma o historiador. Às vezes você se vê emaranhado pelo universo documental e passa a traçar o seu veio narrativo em interfaces e em intersecções. Em Raízes do Brasil, Sérgio não amadureceu ainda este trabalho. No seu mestrado, temos já essa tessitura de interface, de intertextualidades documentais com a escrita da história, essa narrativa que vai se constituindo quase em um território hermenêutico novo.

JU - Como o senhor pretende abordar a tese na cátedra?

De Decca - Quando a gente se refere ao Sérgio Buarque sempre vem a imagem do pai de Chico Buarque. A secretária do presidente do ISCTI, por exemplo, se surpreendeu com o fato de existir uma tese sobre a sociedade portuguesa. Isso sempre causa espanto. Assim como recentemente a Editora da Unicamp publicou o Abel Barros Baptista, um crítico literário português procurando reequacionar o lugar de Machado de Assis no território literário brasileiro. A riqueza desses intercâmbios é justamente a possibilidade de flagrar o inusitado.

JU - Como mostrar a sociedade portuguesa da época...

De Decca - O mais interessante é trazer alguma coisa que não é aquilo que se imagina. A tese tem pontos muitos importantes. Por exemplo, mostrar o caráter cosmopolita de Lisboa. Portanto, aquilo que de uma certa maneira é esse mundo urbano cujas hierarquias são muito mais tênues do que as do antigo regime. Lisboa carregava uma multiplicidade e diversidade culturais muito grandes. Havia a presença de várias nacionalidades - africanas, árabes, muçulmanas, italianos... Para Sérgio Buarque, trata-se de um elemento importante para as negociações culturais que virão na frente. O aventureiro português é um aventureiro que está acostumado a lidar com a diferença. Ele tem menos dificuldade de enfrentar a negociação, o conflito, a diferença. Seus lugares são menos fixos do que o de outras culturas. Apesar do antigo regime português, o desenvolvimento burguês comercial tinha criado uma sociedade menos estratificada, segundo Sérgio Buarque. Isso possibilita ao sujeito social uma mobilidade vertical e horizontal muito forte, o que o habilita a uma aventura dessa natureza. Justamente por sua mobilidade e pela aventura, a questão do trabalho passa a ser uma questão séria. Por isso, o território português é um território vazio. A sociedade do trabalho, cuja ética protestante tanto apregoa o vínculo do trabalhador com o solo e com a terra, com o artesanato e com o comércio, não vai acontecer em Portugal. É um país do vazio. As descrições do Sérgio Buarque são muito bonitas. O que são os interiores portugueses? É um deserto. É um povo que se educou para a aventura.

JU - Quais seriam os elementos identitários comuns ao nosso povo?

De Decca - Temos elementos quase que atávicos. Por exemplo, a saudade. O português está sempre partindo, sempre distante de si mesmo. Partir no sentido de deixar uma parte de você em todos os lugares. Esse componente na obra é muito importante para você ver como é que Sérgio vai constituindo esse lugar que é aquele em que a gente vai inscrever a nossa origem. Há um deslocamento. A historiografia brasileira de uma certa maneira acaba colocando o lugar da fundação na Primeira Missa e na Carta de Caminha. Ali você recorta o lugar fundacional. De repente, você vê na obra dele que o lugar da origem está mais distante daquilo que você imagina. Você vê o futuro no passado. O próprio título é surpreendente. A palavra “formação” nas décadas de 40 e 50 tem um significado muito forte. São as primeiras obras de origem marxista que estão sendo publicadas cujo termo formação, que vem do alemão “formen”, começa a aparecer em obras como a de Caio Prado Júnior, Formação do Brasil Contemporâneo, por exemplo. Mas formação também pode ser lida no sentido da Minha Formação, de Joaquim Nabuco. Tem aí um jogo de imagens e de linguagens que remete também à questão da origem. Tanto no sentido da concepção marxista dialética, como também na idéia da formação da biografia. A escrita biográfica do Brasil tem uma inscrição longínqua. Está lá. O Brasil surgiu muito antes do descobrimento, como idéia, como sonho. E Visão do Paraíso consolida todo esse arquétipo.

JU - Poderia ser um desfecho de uma linha de pensamento?

De Decca - Sim, que vem com Raízes, A Formação da sociedade portuguesa e Visão do Paraíso. Mas ao mesmo tempo, Sérgio se dedica aos interiores. Aí você consegue ver a complementaridade destas obras citadas com Caminhos e Fronteiras, de Monções. Mas sempre o movimento, também em sua obra póstuma, O Extremo Oeste... São as três obras que estão entremeando aquelas outras. Visão é posterior a Monções, e a Caminhos e Fronteiras. Mas é interessante notar que há dois projetos que se complementam. Um projeto para entender a origem, e outro para entender a constituição do território, a constituição de uma cultura do adventício. Caminhos e Fronteiras é aquilo que move e aquilo que limita; Monções, também é algo que te leva; O Extremo Oeste que é até onde essa fantasia pode se estender. Existe claramente uma unidade.

JU - O senhor chegou a conhecê-lo?

De Decca - Um dos meus livros, O Silêncio dos Vencidos, dei ao Sérgio Buarque pessoalmente. Este livro, de uma certa maneira, era uma homenagem à geração que havia se aposentado quase que compulsoriamente pelo AI-5. Eu pertencia à primeira geração que se doutorou desta geração da qual fez parte Sérgio Buarque. Nós éramos alunos da época da efervescência da Maria Antonia. Comecei Física e depois me tornei historiador. Estivemos juntos dentro do prédio da Maria Antonia nos defendendo do Comando de Caça aos Comunistas. Quando defendi o doutorado, eu, até por uma questão de deferência, entreguei em mãos o livro ao Sérgio Buarque e ao Caio Prado Júnior. Era uma dívida que a minha geração tinha com eles. O gesto significava que nós continuávamos uma empreitada.

JU - É sabido que O Silêncio dos Vencidos rompe com alguns dos cânones da historiografia, sobretudo por fazer uma análise da Revolução de 30 a partir do sindicalismo. Como sua obra foi recebida?

De Decca - É uma coisa muito complicada, porque meu livro é muito crítico com relação às interpretações feitas comumente no Brasil, que sempre partiram do ponto de vista de uma cultura daqueles que são da elite. Meu livro tentou resgatar o silêncio que se abateu sobre experiências históricas que são, no caso, do mundo do trabalho no Brasil depois da escravidão. Nós éramos da Unicamp quando estava concebendo o livro. O Arquivo Edgard Leuenroth estava sendo formado. Chegava com ele a grande documentação das experiências dos imigrantes estrangeiros, os jornais anarquistas... Havia toda uma expectativa de se reescrever a história do Brasil levando em consideração as pressões que vinham de baixo. E isso foi de uma certa maneira um momento decisivo da historiografia brasileira. De fato, nos estávamos apontando para uma nova abordagem. Isso foi em meados da década de 70 e é claro que poderia causar uma certa animosidade. Essa nova geração poderia negar a nossa herança. Mas acho que do mesmo jeito que O Silêncio dos Vencidos encerrava com uma indagação sobre a formação do PT, Sérgio Buarque estava ali na fundação do partido. Marilena Chauí, que também estava, prefaciou meu livro. Nós tínhamos a mesma indagação, a mesma vontade de reescrever a história para projetar uma nova sociedade, um novo futuro. O Silêncio dos Vencidos tinha um quinto capítulo com uma questão que era delicada na época, e ainda é: esse lugar em que o PT ora tem que oscilar no plano das alianças com o arco constituído dos partidos, e/ou ora tem que aderir aos movimentos sociais que quebram a legalidade.

JU - Como o senhor vê isso?

De Decca - É natural. Os movimentos sociais são poderosos porque eles invadem o território do constituído. É essa coisa do presidente tirar o chapéu do MST, de pôr na cabeça o chapéu do MST, essa coisa de você lidar com essa ambigüidade da política da esquerda no Brasil. De como se pode ser o porta-voz dos movimentos sociais e, ao mesmo tempo, operar no plano da legalidade, quando você no plano social tem que reconhecer que a luta pode quebrar o território institucional e legal. O risco é grande. Estudando o movimento operário da década de 20, vim a descobrir que havia discussões dessa natureza.

JU - Até que ponto a historiografia brasileira ignorou esse movimento?

De Decca - Nunca havia levado em consideração. Esse livro é de 1981, exatamente quando o PT estava se formando. Não é por acaso que, no quinto e último capítulo, propositadamente dei o título de "O Partido dos Trabalhadores e a questão democrática". É um estudo sobre um partido que se pretende porta-voz dos anseios populares e dos movimentos sociais e como ele pode jogar na esfera da legalidade. Era um problema que o PT enfrentava em 1981 e enfrenta hoje. Fiz questão de abordar esses impasses. O livro começa com uma metáfora do Borges de que a realidade nada mais é do que o mundo que a gente constrói no território da linguagem e como é que tem falas que vão esgarçando esse território que parece tão homogêneo, até que outras vozes começam a surgir. É o momento da abertura política no Brasil. O livro tem uma meta-história que é a história da fala no Brasil. Isso foi percebido pelos lingüistas. Perceberam que o livro era um desafio, uma indagação sobre o território da linguagem, ou seja, onde o discurso estava produzindo o seu silêncio. E não era um problema do passado, mas sim do presente. Como é que nós constituíamos o silêncio no discurso político, no discurso historiográfico. Não é um livro que pudesse apelar para um certo messianismo de dar voz aos desfavorecidos, essa coisa quase que religiosa. É o contrário. Era uma indagação sobre as artimanhas do poder e da linguagem. E como você pode se auto-silenciar. Quer dizer: o discurso pode ser constitutivo do seu próprio silêncio.

JU - Dar voz àquele que não pode contar a história.

De Decca - Sim, mesmo porque a história de 1930 é contada por aquele que assumiu o poder. Há várias camadas de silêncio. Não é um livro que tenha uma dimensão maniqueísta, mas sim uma amarração na qual vão se construindo territórios epistêmicos aos quais, uma vez você aderindo a um sistema discursivo, silencia a sua própria constituição. Você nega a si mesmo, abre mão da sua convicção. O fato histórico é duplamente silêncio. Porque o poder o narra. E porque ao narrar, o outro se identifica com o narrado, esquecendo e colocando no seu próprio silêncio a experiência do vivido. Em resumo, a velha história de que o vencedor sempre conta a história. Por incrível que pareça, eu estudo um vencido que foi incluído pela legislação trabalhista, e com o peleguismo, os sindicatos oficiais passaram a recrutar os trabalhadores para vestir a camisa do governo Vargas.

JU - O senhor disse que estava havia pouco na Unicamp na ocasião do lançamento do livro e que o momento era decisivo para a historiografia brasileira. Qual a importância da Unicamp nesse contexto?

De Decca - Havia uma urgência de construir a figura dos outros sujeitos sociais na historiografia de meados da década de 70 e do início da década de 80. A lacuna era muito grande, ainda que você possa dizer que existissem grandes trabalhos, como Casa Grande e Senzala. Mas esse viés do Gilberto Freyre era da casa grande, muito diferente da abordagem que se pretendeu na historiografia que a Unicamp estava começando a constituir.

JU - Qual seria?

De Decca - Era descobrir a lógica da história daquele sujeitos sociais. Quando estudávamos a fábrica, não queríamos entendê-la na lógica do capital. Queríamos entender a fábrica na lógica do trabalhador. Nós não queríamos estudar a fábrica na lógica daquele que domina, mas sim estudar como é que é possível trabalhar dentro daquelas regras, dentro daquelas normas; como você reage, como você acomoda, como funciona o universo dentro e fora da fábrica para você se constituir como sujeito social. É uma abordagem totalmente nova, inédita. Comparado ao avanço que houve na historiografia brasileira, e a Unicamp teve um papel fundamental nisso, é similar na década de 70 ao papel desempenhado pela historiografia inglesa, americana, francesa e italiana. São testemunhos desta inovação historiográfica, dentre tantos colegas, os professores Michael Hall, Stella Bresciani, Ítalo Tronca e o falecido professor Lapa, que tanto se empenharam na criação do Departamento de História da Unicamp.

JU - Pode-se afirmar então que a Unicamp passou a ser um paradigma?

De Decca - Sem dúvida. Para você ter uma idéia, dirigi na Editora Paz e Terra uma coleção que teve muito sucesso que se chamava “Oficinas da História”, cuja linha priorizava essa perspectiva do mundo do trabalho. E eu me dispus a traduzir para o Brasil o livro A Formação da classe operária inglesa, do Edward Palmer Thompson. Muitos tentaram traduzir e não tinham conseguido até o momento, em 1987. O boom dessa nova historiografia no Brasil era tão grande que todos os grandes jornais deram matéria justamente porque era uma nova perspectiva do mundo do trabalho sendo trazida. Para se ter um idéia, em 1989 cheguei à França e lá havia sido recém-publicada a versão do Thompson. Publicamos antes que os franceses. E foi a partir da Unicamp que surgiram obras que são hoje formadoras de gerações da graduação e da pós-graduação no Brasil. Foi o nosso grupo que trouxe obras pouco conhecidas de Hobsbawm sobre o mundo do trabalho. Houve também uma renovação imensa nas pesquisas sobre a escravidão do Brasil. Os estudos sobre o mundo dos escravos e das culturas urbanas do século 19 possibilitaram novas abordagens.

JU - Nessa época, o IFCH reunia vários departamentos e unidades das Ciências Humanas.

De Decca - Sim. E aí quero prestar uma homenagem ao fato de a Unicamp ter oferecido e ainda oferecer um Instituto de Filosofia de Ciências Humanas, no qual não só a história desempenhou um papel fundamental, mas também a antropologia, a sociologia, a política, a economia e a teoria literária. Essa historiografia jamais se firmaria sem a atuação dos outros departamentos que formavam este instituto. A maior herança que a Unicamp pode produzir é justamente o IFCH. Porque foi só pelo fato de estarmos juntos, atravessando a rua, que tudo isso foi possível. Era um instituto de uma vitalidade fantástica. Acho que não só consolidou uma nova tradição, como também a historiografia surgida depois da Unicamp passou a ser outra. Que universidade na América do Sul, por exemplo, tem um arquivo do porte do Edgard Leuenroth? Ou que reitor, vendo a necessidade de nós pensarmos as novas fronteiras das humanidades, tenha adquirido acervos como o de Sérgio Buarque de Holanda?

JU - Como era atmosfera da época?

De Decca - Havia esse lado transgressor. Não é à toa que hoje vejo nomes de cientistas políticos que se tornaram psicanalistas. Havia em todos nós um ideal. Para nós, a Unicamp era a “visão do paraíso”, quando soubemos que tinha uma universidade no meio do mato em que se podia tentar de tudo. Havia um convívio que se estendia das reuniões de departamentos e das salas de aulas para as noitadas prolongadas nos bares e restaurantes campineiros.

JU - Como o senhor vê o momento político atual?

De Decca - Acho que tem dois problemas que gostaria de abordar nessa questão. Tenho uma predileção pelos anarquistas, apesar de ter participado no campo das idéias das discussões que culminaram na formação do PT. Tenho uma certa percepção muito cuidadosa no território da política. Acho que existe na nossa cultura, é importante frisar, uma crença no partido e no Estado muito exacerbada. A sociedade civil parece que precisa de um projeto gestado pelo estado brasileiro, cujo arquétipo é muito forte. Há que se ter um certo cuidado, eu já vi essa história outras vezes. Não é a primeira vez que um partido chega ao poder e se espera mundos e fundos dele. Foi assim na época das diretas-já, no primeiro governo civil pós-ditadura, com Collor e com o Plano Real. O caso do PT, pelos prós e pelos contras, também carregara o mesmo problema. Deposita-se no partido e no Estado uma esperança que eu acho desmedida. Isso revela a fraqueza da sociedade civil. Essa crítica exacerbada, seja na oposição ou dentro do próprio ideal do partido, revela uma crença exacerbada na demiurgia da política. Sou um pouco cético. Talvez eu sempre tenha gostado do PT não por aquilo que ele realmente é, mas por aquilo que ele um dia virtualmente apontou.

JU - Para onde?

De Decca - Para a utopia, por exemplo. Tudo que acontece na política está aquém do sonho que você tem. A política tem essa capacidade de nos decepcionar sempre. É um jogo de alianças, enfim é o território do institucional. Nós respeitamos a democracia e as regras têm que ser jogadas nesse território. Mas acho que é bom que a gente não guarde tanta expectativa quanto a isso. O que mais importa, e isso eu gostaria de esperar de um governo do PT, é que se constitua uma sociedade civil mais forte. Essa é a minha visão com relação ao momento atual, sem entrar no mérito de juízo de valor, se eu gosto ou não da política do governo.

JU - Quais são, para o senhor, os pontos fortes e fracos do governo?

De Decca - Na área em que mais atuo, que é área educacional, me frustra a gestão do Cristovam Buarque. E aí sim o papel do estado é decisivo. Se em outras áreas a importância do estado é menos importante porque ele se desembaraçou dos processos econômicos para deixar que o mercado se mova com mais facilidade, há áreas estratégicas em que a gente está esperando uma melhor definição do programa de governo. Mas isso também é uma coisa para outra discussão.

JU - Por quê?

De Decca - Acho que no cerne de O Silêncio dos Vencidos continua o problema que o PT vive hoje. Os maiores críticos do PT com certeza estarão dentro dele. Quanto mais o partido assume a esfera da legalidade, mais aparecerá o lado que o formou e que é a sua identidade originária, ou seja, seu vínculo com os movimentos sociais.

JU - Como administrar essa tensão?

De Decca - Ela é insolúvel. Em outras experiências históricas prevaleceu a força do partido e os movimentos sociais foram sufocados. O comunismo comprova isso. Essa tensão está na origem dos partidos de esquerda. Eles sempre estarão no fio da navalha entre a legalidade e a adesão a uma esfera de lutas, de reivindicações, de expectativas e de mudanças que às vezes ferem o estatuto da legalidade.

JU - Os vencidos têm alguma chance?

De Decca - O vencido é uma condição do universo do discurso. O excluído é do universo do social. São duas coisas. No movimento de 30, as elites paulistas foram vencidas momentaneamente, mas nunca foram excluídas socialmente. O movimento operário em 30 foi vencido e, entretanto, foi incluído na política pela legislação trabalhista de Vargas. Essa questão é muito importante para que possamos perceber o ponto de vista daquilo que queremos designar. Nem sempre o vencido é um excluído. Agora, há excluídos e que estão à margem da história do Brasil. Tenho um livro praticamente pronto sobre Euclides da Cunha, esse sim um autor que toca a esfera da exclusão.

JU - O que será do Brasil se essa exclusão continuar nesse ritmo?

De Decca - Aí é um caldeirão. Violência urbana, desemprego, injustiça... todo o estudo que tenho feito nos últimos três anos sobre Euclides da Cunha me colocou de frente para o terreno da exclusão. Quando você vê as andanças do MST, se comparadas à de Antonio Conselheiro, a preocupação é grande. Conselheiro estava confinado num território pequeno lá na Bahia. Hoje são dezenas de Antonios Conselheiros, pululando. Você pode não ter o mesmo perfil religioso, mas se você for ver do ponto de vista da caracterização do movimento e da composição social e organizacional, sociologicamente falando é a mesma coisa. E isso está crescendo. Canudos está se expandindo. Apesar de nós acharmos um jargão o fato de a liderança do MST querer montar um acampamento como o de Canudos no Pontal do Paranapanema, ela sabe do que está falando.

JU - Por que Canudos?

De Decca - O fascínio dos Os Sertões é a sociedade sem estado. Comparo a figura do Conselheiro com a de Zaratrusta, de Niestche. Me fascina no mundo da exclusão a sociedade sem estado. Quem domina o morro da Rocinha? O Estado? Ao mesmo tempo que é assustador, é fascinante.

JU - Todos os dogmas são desestruturados...

De Decca - Sem dúvida. A nossas categorias analíticas apontam para novas formas de organização. Você tem que reler tudo.

JU - A chegada do PT ao poder faz parte de uma linha evolutiva na política brasileira?

De Decca - Não. Acho que em história o acaso predomina. Eles também não esperavam chegar onde chegaram. Não é uma redenção. Não tenho uma visão messiânica da história. O impasse está em que não há um lado bom da história quando o vencido vence. Isto não é um jogo de palavras, na história é uma nova configuração que se torna realidade. Existem arquétipos na nossa política que são iguais, do PFL ao PT. Mostro em Silêncio dos Vencidos que a interpretação de esquerda de 30 é idêntica à da direita. A lógica é a mesma com a chegada do PT ao poder. É muito prematura uma análise histórica, sociológica e antropológica desse movimento. A despeito da organização nacional do PT, que do ponto de vista de um partido nacional é admirável a capacidade de estar estabelecido em todo o território nacional, existe uma figura que é o Lula.

JU - Que avaliação o senhor faz do papel desempenhado pelo presidente nesses primeiros meses de governo?

De Decca - A população brasileira não milita no PT. Há aí também um componente messiânico, onde a força do populismo é muito forte. Trata-se de um populismo que, ao contrário do que sempre foi feito pelas elites burocráticas, vem de baixo. É no mínimo assustador. Há experiências históricas de populismos que vêm de baixo que precisam ser reavaliadas. Elas têm outras nuances. Muitos que se fascinaram por Collor alguma vez, agora se fascinam por Lula. Existem alas do PT que aprisionaram a imagem de Lula a seu favor; o problema é que o nosso líder veste várias camisas ao mesmo tempo. É por isso que o chapeuzinho roda o tempo inteiro... Acho que, simbolicamente, para quem trabalha no universo da política, precisa ser levada a sério essa configuração simbólica. Há uma complexidade antropológica e de cultura política que é muito pouco explorada e analisada. Ao mesmo tem uma característica que é o caso de se perguntar se é o PT que está no poder. Há tantos desafetos e desgostosos que é o caso de se perguntar se é mesmo o PT que chegou ao Planalto. Na verdade, existem grupos que conseguem tecer um arco de alianças que dão sustentação política institucional ao Lula.

JU - Como o senhor avalia o comportamento do presidente diante dessa estratégia?

De Decca - Ele passa por cima disso. Ele é um líder sindical, passa por cima da legalidade. Talvez os defeitos e as qualidades estejam justamente nesse comportamento. Ele é um político que para se tornar a liderança que é, teve sempre que trabalhar nessa margem. Por isso que ao invés de dar entrevistas, ele vai ao púlpito e fala às massas; trabalha com esse território da legalidade. Agora, quando a legalidade tende a fazer algo que ele não quer, ele vai às bases e fala a elas. É de uma tremenda habilidade. E está no cerne daquilo com que trabalhei: o populismo que venceu no Brasil é um populismo formado nas elites burocráticas, que vem de cima para baixo. O populismo no Brasil nasceu nas antecâmaras do Estado brasileiro e agora experimentamos uma experiência nova, com este populismo que vem de baixo.

JU - O que fazer com a grande massa de vencidos excluídos?

De Decca - Que o grande capital produz a zona do desemprego isso é historicamente sabido. Todo mundo tem a idéia, por exemplo, de que a Revolução Industrial, com a descoberta das máquinas a vapor e as grandes unidades fabris, modificou todo o sistema de trabalho e de relações de trabalho, gerando emprego. Na verdade, ela excluiu muito mais do que incluiu. Quem faz a inclusão é muito mais a pequena iniciativa do que a grande. É essa capacidade que a sociedade tem em não se transformar em mercadoria e em mercado. As políticas sociais vão ser a chave dessa inclusão. Não há outra alternativa. Elas não dão lucro, não são vistas como respostas automáticas ao mercado capitalista, mas é a nossa única saída. E isso em qualquer lugar do mundo. A política neoliberal tende ao fracasso.

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