194 - ANO XVII - 14 a 20 de outubro de 2002
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O professor Dermeval Saviani, da Faculdade de Educação da Unicamp: "O grande problema do ensino superior é que o Estado deixou de assumi-lo como prioridade"  Domínios, dominadores e dominados

Dermeval Saviani propõe duplicação
do percentual do PIB investido em educação

Sem dominar aquilo que os dominantes dominam, os dominados não chegam a se libertar da dominação. O aforismo do professor Dermeval Saviani era uma crítica endereçada a teóricos e educadores que pregavam, nas décadas de 1970 e 1980, uma escola voltada às chamadas experiências populares em detrimento do saber sistematizado. Reconhecido como um dos maiores especialistas em educação no país, com contribuições tidas como fundamentais na confecção da LDB e da Constituição, Saviani avalia que o eixo da discussão mudou a partir da década de 1990, quando o ensino ficou a reboque, no seu entender, do assistencialismo, da maquiagem estatística e da onda de privatizações. Saviani, que recebe no dia 15 de outubro (terça-feira) o título de professor emérito da Unicamp, explica na entrevista que segue por que propôs a duplicação imediata - de 4% para 8% - do percentual do PIB investido em educação.

No último Cole (Congresso de Leitura), realizado na Unicamp, foi consensual a opinião de que a escola está há muito deixando de lado o seu papel de educar e de formar o cidadão. O senhor concorda?

O que eu tenho constatado e também tem sido um dos vetores das lutas que travamos desde a segunda metade da década de 70, é uma certa tendência a deslocar aquilo que me parece ser o papel principal da escola. Entendo que ela tem a ver com o saber sistematizado, com a cultura letrada, com o saber científico. Não com o senso comum, o saber espontâneo, o saber da experiência, ou aquilo que é chamado de cultura popular. Por quê? O que se pode constatar é que, para desenvolver a cultura popular, não se precisa da escola. Agora, na medida em que se desenvolveu uma tendência que desvalorizava ou secundarizava a cultura erudita e valorizava a cultura popular e, por conta disso, passou-se a taxar a escola como alienante, como instrumento de dominação por estar ligada à norma culta, comecei a me perguntar: em que grau isso é realmente transformador? Em que grau isto não vai fazer o jogo da dominação existente? A escola seria uma forma do homem do povo ter acesso ao saber elaborado, sem o que esse tipo de saber fica privilégio das elites.

Houve reação a esta posição?

Passei a me bater contra a tendência a diferenciar as escolas: a das massas e a das elites, esta última qualitativamente mais desenvolvida. Isso me colocou num certo momento num embate com os seguidores do Paulo Freire, que viam nas minhas formulações uma contraposição a esse educador, embora minha crítica não se dirigisse propriamente a Paulo Freire, mas a essa visão de escola que secundarizava a importância do saber elaborado.

Como o senhor reagiu?

Essa visão de escola sempre me intrigou, porque era como se você nas escolas devesse fazer discurso político. Como esse discurso vai se sustentar se não existe conteúdo das várias áreas que os alunos viriam a dominar? Então esse discurso acaba deixando os trabalhadores sempre na dependência dos intelectuais. Isso me chocava. Os defensores da escola centrada no saber elaborado eram acusados como tendo uma visão vanguardista. A crítica era na seguinte direção: o povo é que deve estar na direção do movimento e os intelectuais têm que se deixar dirigir pelas próprias massas. É aí que reside o problema: como as massas podem exercer a função de dirigentes se elas não estão instrumentalizadas? A democracia deve ser buscada, mas ela não está no ponto de partida e sim no ponto de chegada.

O senhor poderia explicar?

Quando vou, por exemplo, me relacionar com os analfabetos, é uma falácia acreditar-se que posso ter uma relação democrática com a criança ou aluno. Não há democracia aí porque ele está numa posição em que depende do meu auxílio para adquirir determinados instrumentos. O processo pedagógico é que deve elevá-lo. No ponto de chegada, sim. Uma vez alfabetizado, ele se torna capaz não apenas de se expressar oralmente, como também por escrito. E o que funda a relação pedagógica é exatamente essa diferença. Aí sim a diferença é removida e a igualdade se estabelece. Aí pode ser travada uma relação democrática. É claro que essas coisas têm níveis diferentes de análises. Foi essa discussão que se travou nas décadas de 1970 e 1980.

E na década de 1990?

Ao longo da década de 1990, esses problemas tenderam a se deslocar para um plano secundário, ou até mesmo foram superados. Aí surgiu esse fenômeno que está sendo constatado agora, ou seja, os próprios agentes governamentais assumindo essa visão de que a escola deve ter mais uma função assistencial do que propriamente de formação intelectual, de preparo cultural.

O senhor poderia exemplificar?

A função assistencial não é específica da escola. Se você considera que é preciso políticas sociais nesse campo porque as famílias não estão mais dando conta de sobreviver, trata-se de política compensatória que você pode fazer via secretarias de assistência social.

O senhor acha que existe essa confusão hoje no Brasil?

Não só acho que há uma confusão, como acho que as políticas educacionais governamentais no nível do MEC têm estimulado esse viés assistencialista. Acho que há aí um componente econômico-financeiro associado ao ponto de vista ideológico. Do ponto de vista econômico-financeiro, como se trata de ajustar o país à hegemonia do capitalismo financeiro, que envolve fazer ajustes e garantir o serviço da dívida, os recursos têm que ser canalizados para essas prioridades. E como é que você atende às necessidades sociais? Você apela para a comunidade, para o voluntariado... Há um componente ideológico também no seguinte sentido: entende-se que a integração da população se daria por esses mecanismos, mais ou menos informais, porque numa sociedade que atingiu alto nível de desenvolvimento tecnológico, transfere-se para as máquinas boa parte dos processos de trabalho, de produção, de comunicação. E o gerenciamento dessas máquinas, assim como a direção do processo social, depende de um conjunto relativamente restrito de técnicos, de intelectuais...A população de um modo geral não precisa ter acesso aos conhecimentos sistemáticos e nem é conveniente que tenha porque isso é custoso e não seria necessário.

O senhor acredita que essa política é deliberada?

Sim. Um outro componente dessa visão ideológica é que os conhecimentos que a população precisa dominar são mais os do dia a dia. O importante não é estar empregado, mas ser empregável. Ser empregável significa ter flexibilidade e capacidade de adaptação. E você se adapta na medida em que você convive, se relaciona. Então os conhecimentos sistemáticos tendem a ser secundarizados. A questão que se põe, que precisa ser pensada, é se isto tenderia a alterar substantivamente o caráter da escola. Se isto é um indicador de que a sociedade está mudando e que, com a mudança da sociedade, a natureza da escola também está mudando.

O que pode ser feito?

Termos que resistir a essa tendência dominante. Mas essa resistência vinha se manifestando a meu ver de forma passiva e individual. Então eu postulei a resistência implicando duas características: 1) que ela seja organizada e coletiva e 2) que ela seja propositiva. Não adianta resistir na base do não concordo. O governo baixa um decreto e eu manifesto minha discordância. Isso não se impõe. Quando muito, pelo que tenho observado, se a grita é mais ou menos geral, o governo faz recuo tático. Para dar eficácia a esse movimento de resistência, propus a estratégia que chamei de resistência ativa. E é um pouco nessa linha que o Coned –Congresso Nacional de Educação- se organizou para discutir o Plano Nacional de Educação, contrapondo uma proposta àquela do governo. De minha parte fiz algo parecido: formulei as linhas básicas do Plano Nacional de Educação, ao mesmo tempo em que confrontei a proposta do MEC com a posição que surgiu no Coned, com a qual a minha proposta tem várias afinidades e objetivos comuns, mas tem alguns aspectos diferenciados, seja do ponto de vista das diretrizes e de algumas medidas...

Quais seriam?

Do ponto do financiamento, por exemplo. O Coned divulgou a passagem para 10% do PIB investido na educação. Mas aquilo era uma referência arredondada, que ia de 6,9% até 9,1% ao longo dos 10 anos. Ao divulgar 10% já provocou reações negativas. Fiz uma proposta diferente: propus a duplicação imediata do percentual do PIB investido em educação. Se hoje é de 4%, passaria para 8%.

Fundamentado em quê?

Peguei os dados que o próprio MEC tinha de outros países que mostravam que com isso o Brasil apenas se nivelava aos países que mais investiam em educação: casos dos EUA, Canadá, Noruega e Suécia que investem respectivamente 7,5%; 7,6%; 8,7% e 8,8% do PIB em educação. Mas com uma diferença: esses países já tinham o sistema consolidado, além das diferenças de PIB per capita. No Brasil, nem se implantou ainda um sistema nacional de ensino. Isto significa, portanto, que o Brasil teria que fazer um esforço ainda maior investindo, por um certo período, maciçamente em educação de modo a viabilizar a implantação do sistema para depois, com os recursos orçamentários definidos na Constituição, manter e desenvolver o sistema. No entanto, em vez disso, o que está acontecendo no Brasil? O MEC se vangloria de que universalizou o acesso ao ensino fundamental. Diz que 96% das crianças estão na escola...

O senhor discorda dessa política?

Isso não é universalizar o ensino fundamental. Universalizar significa não apenas garantir o acesso, mas também a conclusão. Só acontece isso quando todos não só ingressaram, mas também concluíram. Quando o MEC concluiu que o acesso tinha sido universalizado, decidiu que precisava universalizar a conclusão. Mas como fazer isso sem precisar investir muito? Aí vêm esses mecanismos todos de promoção automática, maquiagem estatística, os ciclos... A questão passa a ser segurar as crianças nas escolas para ostentar índices estatísticos que preencham os critérios do Banco Mundial para se obter financiamentos.

Quando essa diretriz foi adotada?

Começou com o Collor, com os Ciacs e depois teve continuidade ao longo da década de 1990, quando essa política tendeu a ser incorporada ao sistema abrangendo a rede geral do ensino fundamental. Mas veja: fiz referência a essas questões por conta da minha proposta de duplicar imediatamente o percentual do PIB investido em educação. Mas ao fazer essa proposta passei ao seu detalhamento. Qual é o impacto disso? A lei que criou o Fundef determina que os Estados e municípios constituam um fundo composto por 60% dos recursos destinados à educação, ou seja, daqueles 25%, 15% vão para o fundo para custear o ensino fundamental. Isso significa que os municípios só ficam com 10% para custear a educação infantil que a LDB diz que é prioridade municipal. E os Estados só ficam com 10% para atender ao ensino médio. Então eu digo: se eu duplico, o ensino fundamental vai ter o equivalente a 30%, não 15%, portanto mais do que o total, que hoje seria de 25%¨. Os municípios, por sua vez, vão ter 20% e não 10% para a educação infantil. Os Estados vão ter 20% e não 10% para o ensino médio. Ora, com isso você já pode começar a pensar em ter uma rede consistente de ensino fundamental, pode ter uma rede consistente de educação infantil mantida pelas prefeituras com a coordenação e o apoio técnico do Estado, e já pode começar a pensar na universalização do ensino médio.

Os professores são contemplados nessa proposta?

O raciocínio a ser aplicado é o mesmo. Pela lei do Fundef, 60% dos recursos destinam-se à remuneração e qualificação dos professores. Com a duplicação proposta, chega-se a 120% dos recursos atuais. Já se pode, então, pensar em instituir a jornada de tempo integral. É o grande gargalo. E o governo ainda cobra que os professores participem da gestão da escola, do projeto pedagógico, de apoio à comunidade...Mas que escolas e comunidades são essas, se os professores têm de dar aulas em três, quatro estabelecimentos?

E no nível superior?

Aí está aquele drama, porque o MEC argumenta que quase todos os recursos – 75% - são para manter as 52 universidades federais. E ele tem que manter também as escolas técnicas. Mas se você duplica os recursos, você pode manter as federais e a rede técnica. E com a outra metade o que você faz? Eu propus que fosse dividida em duas partes: com 50%, na primeira parte, o MEC cumpriria o seu papel de apoio aos Estados e municípios mais necessitados na forma de apoio técnico-financeiro aos sistemas municipais e estaduais, previsto em lei. E com a outra metade, se constituiria um fundo a partir do qual se financiariam projetos que envolveriam fortemente as universidades federais no cumprimento das metas do Plano Nacional de Educação.

Qual tem sido o comportamento do Estado?

Creio que o grande problema do ensino superior hoje é a tentativa do Estado de deixar de assumi-lo como uma das prioridades do campo educacional. O próprio MEC reconhece o atraso do país, já que não chega a 12% o contingente dos jovens de 18 a 25 anos com acesso ao ensino superior. Isso nos coloca numa das últimas posições do ranking. E aí o MEC propõe como meta, dentro de 10 anos, de chegar ao nível da Argentina. Isso significa triplicar o número de vagas, tanto públicas quanto privadas. Como conseguir isso? Não está previsto o acréscimo de nenhum recurso. Ele pretende, como primeira medida, racionalizar os recursos existentes. Segunda possibilidade: estabelecer parcerias com entidades comunitárias. Outra: instituir cursos de curta duração; instituir curso pós-médio. O gargalo está aí: a não-disposição de dimensionar as necessidades que o país tem no ensino superior e verificar os recursos previstos e de que fontes poderão provir os recursos adicionais para tratar com seriedade o assunto, que é um problema de ordem pública.

Essa política teve reflexos na educação?

Na medida em que a educação passa a ser tratada segundo os mecanismos de mercado, ela passa a ser assumida como uma mercadoria. O governo assume essa política no Decreto 2.306, de 19 de agosto de 1997, em que admite explicitamente que as instituições de ensino superior podem ser organizadas na forma de empresas privadas com fins lucrativos. Nesse caso, elas estarão sob jurisdição do direito comercial. Nesse sentido, pode mudar inclusive o próprio caráter dos cursos. Até meados do século 20, o ensino superior era destinado a formar profissionais para as atividades que requeriam formação científica. Agora, o critério é apenas o da mercadoria vendável. O ensino superior já não tem mais aquela característica da formação de intelectuais de alto nível, de profissionais cujas atividades requerem uma base científica para atuar nos chamados ramos tecnológicos ou naquelas áreas de humanidades que envolvem uma alta elaboração cultural, como é o caso da língua e da literatura, da filosofia e das ciências sociais. Se for analisar os catálogos de cursos que são abertos por aí, você vê uma diversidade enorme em que os critérios já passam por outros âmbitos. Não se sustenta mais o caráter teórico, científico, epistemológico e cultural. São critérios de mercado.

QUEM É DERMEVAL SAVIANI

Formação
Bacharel e Licenciado em Filosofia, pela PUC-SP, 1966
Doutor em Filosofia da Educação, pela PUC-SP, 1971
Livre -Docente em História da Educação, pela Unicamp, 1986

Carreira científica e docente
Conclusão do Doutorado em filosofia da Educação na PUC-SP em 1971.
Professor Titular da Universidade Federal de São Carlos-UFSCar, em 1975.
Professor Titular da PUC-SP em 1979.
Concurso de Livre-Docência em História da Educação na Unicamp em 1986.
Concurso de Professor Adjunto na Unicamp em 1990.
Concurso de Professor Titular na Unicamp em 1993.
Pesquisador Senior I-A do CNPq.

Livros
Educação Brasileira: estrutura e sistema, São Paulo, Saraiva, 1973. (8a. Ed. Campinas, Autores Associados, 2000).

Educação: do senso comum à consciência filosófica. São Paulo, Autores Associados/Cortez, 1980. (13a. Ed. Campinas, Autores Associados, 2000).

Escola e Democracia. São Paulo, Autores Associados/Cortez, 1983 (34a. Ed. Campinas, A. Associados, 2001). Obs.: traduzido para o espanhol: Escuela y Democracia. Montivideo, Monte Sexto, 1988.

Ensino Público e algumas falas sobre Universidade. São Paulo, A. Associados/Cortez, 1984. (5a. Ed., 1991).

Política e Educação no Brasil. São Paulo, A. Associados/Cortes, 1987(4a. Ed., Campinas, Autores Associados, 1999).

Sobre a Concepção de Politécnia. Rio de Janeiro, Fiocruz, 1989.

Pedagogia Histórico-Crítica. São Paulo, A. Associados/Cortez, 1991. (7a. Ed., Campinas, A. Associados, 2000.).

Educación: Temas de actualidad. Buenos Aires, Libros del Quirquincho, 1991 (em Português: Educação e Questões da Atualidade. São Paulo, Cortez/Livros do Tatu, 1992.

A Nova Lei da Educação: trajetória, limites e perspectivas. Campinas, Autores Associados, 1997 (7a. Ed., 2001).

Da nova LDB ao novo Plano Nacional de Educação: por uma outra Política Educacional. Campinas, Autores Associados, 1998 (3a. Ed., 2000).

Para uma história da educação latino-americana (Org.). Campinas, Autores Associados, 1996.

Formação de Professores: a experiência internacional sob o olhar brasileiro (Org.). Campinas/São Paulo, Autores Associados/NUPES, 1998 (2a. Ed., 2000).

História e História da Educação: o debate teórico-metodológico atual (Org.). Campinas, Autores Associados/HISTEDBR, 1998 (2a. Ed., 2000).

História da Educação: Perspectivas para um intercâmbio internacional (Org.). Campinas, Autores Associados/HISTEDBR, 1999.