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Jornal da Unicamp - Novembro de 2000

Páginas 4 e 5

SERVIÇO

A mendiga que iluminou o Caism

Conheça a história da andarilha que inspirou a criação da Unidade de Cuidados Paliativos do Centro de Atenção à Mulher

Álvaro Kassab

Era um sábado quente de fevereiro de 1994, como costumam ser quentes os sábados de fevereiro. Trôpega, uma maltrapilha balbuciava palavras desconexas, sem ordenamento lógico, na entrada do Centro de Atenção Integral à Saúde da Mulher (Caism), na Unicamp. Uma hemorragia prenunciaria o diagnóstico fechado: câncer em estágio avançado no colo do útero. "Arrigue", dizia ela ao ser indagada pela recepção sobre seu nome. Sem saber, mesmo porque não havia condições de sabê-lo, Arrigue, uma andarilha, inspirou a criação da Unidade de Cuidados Paliativos do Caism, serviço que se tornou referência nacional no tratamento de pacientes sem possibilidade de cura.

Arrigue morreu meses depois, mas sua estada na Unicamp iluminou os corredores da solidariedade e da cidadania. Dois dias depois de sua chegada, uma força-tarefa multiprofissional decidiu investigar a origem daquela criatura diferente. Arrigue não tinha passado, pelo menos na forma como muitas vezes o legado nos é transmitido – linear, amorfo, esmaecido em álbuns de fotografias empilhados sobre guarda-roupas; sua ascendência tampouco registrava nome e sobrenome ou algo que aferisse autenticidade àquele conjunto de pequenas tragédias que se convencionou batizar de história de vida. Arrigue atropelava as convenções, como convém aos solitários.

Seu abrigo era um barracão, informava a assistente social lotada na prefeitura de Santo Antonio de Posse, a 35 quilômetros de Campinas. Nele, um amontoado de madeira situado nos fundos de um casario comercial desativado, convivia com bichos de estimação, dentre eles alguns gatos e cachorros. A rotina de Arrigue era como a de qualquer mendigo, ainda de acordo com o relato da assistente social. Perambulava pelas ruas de Santo Antonio de Posse, onde alguns comerciantes lhe forneciam o kit básico da sobrevivência, sobretudo alimentos enlatados, preteridos por ela pelo pão com mortadela, gosto trazido das calçadas e mantido nos dias de internação no Caism.

O rancho de madeira veio a baixo tão logo foi firmado um acordo de trabalho conjunto entre os profissionais da unidade da Unicamp e os responsáveis pela Secretaria da Promoção Social do município vizinho. No meio dos escombros, pilhas de enlatados vencidos que escondiam cobras, ratos e insetos de toda a espécie. A demolição coincidiu com o início do resgate da cidadã Arrigue, que até então resistia a qualquer interferência na sua vida pessoal, a começar pelas tentativas feitas para interná-la num asilo.

A primeira medida das assistentes sociais foi providenciar uma carteira de identidade. Para que o acordo começasse a ser concretizado, a paciente deixou seu leito para dirigir-se à mesma cidade na qual era vista como mais uma personagem que figurava na lista de tipos exóticos. Arrigue começava a deixar de ser Arrigue. Três dias depois, ela voltava a Campinas como A.F., uma amparense nascida em 29 de abril de 1935, descendente direta da colonização alemã na região, segundo levantamento minucioso feito pelas pessoas envolvidas em seu resgate.

O imprevisível, no caso de A.F., não ficou restrito aos livros cartoriais empoeirados. Dois fatos chamaram a atenção dos profissionais em seu retorno ao Caism. O primeiro foi a evolução do estado geral, apesar da doen-ça que a consumia. Cercada de carinho e cuidados – ganhou roupas, um par de brincos e teve seu cabelo aparado – não demorou para que saísse da letargia em que se encontrava. Começou a se expressar com facilidade, deixando de lado a irritação por não conseguir se fazer entender. Dos hábitos dos tempos errantes, manteve apenas um: o gosto pelo pão com mortadela, levado diariamente pela equipe que a atendia. O desleixo foi substituído pelo zelo, manifestado numa atitude prosaica porém simbólica: todas as noites, antes de pegar no sono, A.F. colocava sua carteira de identidade sob o travesseiro.

O segundo episódio mexeu com todo o corpo clínico. Seu único filho, com quem ela perdera o contato havia muitos anos, foi visitá-la depois de localizado num hospital psiquiátrico onde estava internado por alcoolismo. Testemunhas revelam que o encontro do atávico parou a Unidade de Cuidados Paliativos. De um lado, uma mulher até então esquecida pelo mundo das aparências – mesmo que fosse no microcosmo de uma pequena cidade; de outro, um rapaz perplexo com o reencontro inusitado. As especulações típicas de um caso como esse – a mãe teria ficado assim por causa do filho, ou vice-versa? – deram lugar à emoção.

De resto, mesma emoção registrada na despedida de A.F. do Caism. Em 9 de abril de 94, três meses após sua chegada, A.F. teve autorizada sua alta. Havia pouco a fazer: o câncer avançara e a paciente conseguira, com o esforço de voluntários, um lugar digno para passar os últimos meses de vida. A ambulância que a levaria para o Asilo São Vicente de Paula, na mesma Santo Antonio de Posse do barracão de madeira, foi cercada pelas pessoas que fizeram dela uma outra mulher. Arrigue, que virou A.F., foi enterrada no dia 23 de outubro de 94 em terreno pertencente ao asilo que a acolhera, numa cerimônia acompanhada por muitas pessoas. Sobre o caixão, coroas de flores. Dentro, uma identidade.

Do medo da perda a outros ganhos

A assistente social Marisa Jacobuci não só inventariou como testemunhou a história de A.F. Sua trajetória profissional se confunde com a implantação da Unidade de Cuidados Paliativos e comprova que, em tempos de omissão e insensibilidade, a opção pelo fraternal tem seu preço. Chamada de "louca" por colegas de uma multinacional ao trocar as benesses da estabilidade e dos altos salários por um emprego num hospital psiquiátrico de Itapira, Marisa teve de ser inclemente com a maior de suas inquietações: o medo da morte.

Caçula de 7 irmãos, conviveu desde cedo com os fantasmas da perda. Teve de afugentá-los à força, sob pena de ter comprometido seu futuro na unidade, cuja taxa de óbitos, por conta da natureza dos casos, é a mais alta do complexo hospitalar da Unicamp. Passada essa fase, Marisa arregaçou as mangas e tornou-se a "investigadora" da equipe que cuida dos pacientes sem chance de cura. Cabe a ela coletar informações sobre o paciente, dar todo o suporte aos parentes das vítimas de câncer, e trocar informações com profissionais de outras cidades para, em seguida, repassá-las à equipe da unidade.

Marisa credita o funcionamento da unidade ao trabalho de equipe e lembra-se com detalhes de muitos casos, como o do primeiro atendido oficialmente pelo serviço, o de uma mulher que começou a ser assistida em dezembro de 94, um mês depois da implantação do trabalho. "Uma colega, a enfermeira Edinaura Pereira de Souza, envolveu-se tanto com a paciente, que passou o Natal na casa dela", revela. E é justamente esse envolvimento, na sua opinião, a razão do empenho coletivo. "Fazemos de tudo para que os doentes tenham uma partida mais tranqüila, uma morte digna". O partir de Marisa será outro: ela procura o próximo a ser ajudado.

Golpe - Simone Pollini Gonçalves, diretora do Serviço de Enfermagem em Oncologia, ocupa há quatro anos o cargo de enfermeira responsável pela Unidade de Cuidados Paliativos. Foi difícil, para ela, assimilar a primeira morte. Quase largou a profissão, por se achar "muito fraca" para enfrentar uma situação inédita, inimaginável nos tempos de faculdade. Golpe assimilado, constatou que hoje é privilegiada por atender, semanalmente, pelo menos 10 pacientes sem possibilidade de cura.

Diz que mais aprende do que doa. "As coisas que você escuta de doentes próximos da morte são riquíssimas. Você aprende a gostar de você, aprende a gostar da vida, do seu corpo. Não saio disso nunca mais". Simone foge da onipotência, sabe que os pacientes pressentem a finitude, que eles têm a dimensão da morte. As atitudes heróicas não dizem nada numa hora que deve ser de pequenos atos, de oferecer o bem-estar. Na lista, o último cigarro, um banho de sol, um pão de queijo, a caminhada. "Você precisa fazer com que o paciente encontre um sentido para sua vida", receita.

A tarefa nem sempre é fácil, sobretudo quando se estreitam os laços afetivos entre o profissional e a doente. Uma delas, com metástase pulmonar causada por um câncer de mama, tornou-se amiga da enfermeira, que chegou a pernoitar na casa da paciente. Certo dia, já à beira da morte, mandou o seguinte recado para Simone: "Tenho dó de você. Apesar de tudo, você tenta, tenta, eu não melhoro e mesmo assim você continua tentando". A frase mexeu com a enfermeira. "Tive que dizer a ela que não estava buscando a cura, mas sim atenuar seu sofrimento. Estava tentando ajudá-la, e ela com pena de mim...".

Simone aprendeu que o imprevisível é regra nesse tipo de atendimento. Relembra o caso de uma paciente que, um dia antes de morrer, agradeceu a atenção e pediu para ficar isolada, porque outros doentes estavam precisando, mais do que ela, da ajuda da enfermeira. Simone só podia consentir. E continuar tentando.

A morte tem seus dias contados

A morte está com seus dias contados. É essa, em linhas gerais, a tese de dois médicos que participaram como palestrantes do II Seminário de Reflexões sobre a Vida e a Morte, promovido pelo Caism no dia 26 de setembro. A metáfora pode soar exagerada aos leigos, mas encaixou-se como uma luva no conteúdo programático do evento destinado aos profissionais da saúde: fugir da cantilena que cerca o tema, tratado como tabu ou ignorado nas instituições de ensino.

Para o médico psicoterapeuta João Figueiró, coordenador da área de saúde mental do Centro Multidisciplinar de Dor do Hospital das Clínicas da USP, em São Paulo, a morte é tratada superficialmente e negligenciada nas faculdades. Segundo ele, a partir da segunda metade do século 19, houve uma hipervalorização do desenvolvimento tecnológico e científico em detrimento do estudo das relações interpessoais e de suas conseqüências. Com isso, o conceito de negação da morte passou a predominar. "A morte passou a ser uma coisa hospitalizada, distante dos familiares. Essa negação também afetou o ensino nas escolas da área da saúde", diz.

Para Figueiró, esse estado de coisas passou a mudar, mesmo que timidamente, há duas décadas. Tardou, mas correntes de médicos começaram a desconfiar de que a ciência, sozinha, não seria capaz de resolver os dramas humanos, sobretudo aqueles vivenciados pelo paciente em estado terminal. Por isso, o médico considera fundamental que iniciativas como a do Caism e da USP, onde ele trabalha, passem a ser difundidas. "As descompensações, que são fontes de sofrimento físico, espiritual, psicológico e existencial, devem ser focadas, identificadas e tratadas. A família também fica desamparada, sem saber como proceder", diagnostica.

O receituário de Figueiró para a implantação dos serviços de cuidados paliativos é simples: a aposta na equipe multiprofissional, que engloba profissionais de inúmeras áreas. Assim, acredita ele, a questão transcende em muito o simples diagnóstico e tratamento da doença. "O restante da vida do paciente terminal passa a ser muito melhor", constata.

Lição de anatomia – Transcendência é um termo caro ao neuropsiquiatra e psicoterapeuta Franklin Ribeiro, presidente do Comitê Multidisciplinar de Medicina Psicossomática da Associação Paulista de Medicina. Espírita, Ribeiro vai direto na ferida: para ele, o homem moderno está dessacralizado, é profano e rejeita a condição prévia da existência. Essa resistência torna-se crônica, em sua análise, quando estendida à classe médica, que se vangloria de conhecer o corpo biológico, ignorando olimpicamente a pessoa e suas mazelas. "O despreparo, muito grande, já começa na faculdade de medicina. O primeiro paciente que o estudante recebe é um cadáver, mas não há uma reflexão sobre o que aquele corpo sem alma representa".

Ribeiro fundamenta sua tese em números. Para dimensionar o tamanho do abismo que separa os médicos do vasto mundo das emoções, contabiliza o número de profissionais filiados ao Comitê de Medicina Psicossomática: exatos 273 num universo de 40 mil que atuam no Estado de São Paulo. E vai mais longe: temas relacionados a patologias são usados como isca em seminários que tenham no programa algum enfoque integrativo.

Essa aversão à abordagem interdisciplinar caminha de mãos dadas com a falta de autoconhecimento do profissional, queixa-se Ribeiro, que diz ter uma visão cósmica fomentadora dos opostos e do que ele denomina aspectos sombrios. "A morte não é apenas a morte do corpo físico; o indivíduo pode tê-la em vida", prega esse pesquisador de parapsicologia experimental associada às ciências da religião. Coloca no mesmo caldeirão Alan Kardec, Jung e o professor Ernani Guimarães Andrade, que aos 87 anos está pesquisando, no Instituto de Pesquisas Psicobiofísicas da USP, criado por ele, um novo modelo organizador biológico em bactérias.

Ribeiro coloca esse estudo como prenúncio do que ele chama de nova lei biológica. ‘A pesquisa sugere fortemente a existência da reencarnação para explicar diversas manifestações do corpo".

Na avaliação de Ribeiro, os médicos se transformaram em reféns de laboratórios farmacêuticos e das prescrições impessoais, relegando a investigação defenônemos à esfera do charlatanismo, opção que os aliena dos verdadeiros problemas existenciais e corrompe os serviços públicos de saúde. A saída? Muita pesquisa, sobretudo aquelas que façam o indivíduo pensar. E repensar a morte.

Uma reflexão

No livro Reflexões sobre a vida e a morte –Abordagem Interdisciplinar do paciente terminal (Editora da Unicamp), lançado durante o II Seminário de Reflexões sobre a Vida e a Morte, os profissionais da Unidade de Cuidados Paliativos do Caism narram suas experiências e discutem o sentido de seu trabalho. Organizado pela psicóloga Vera Lúcia Rezende, apresentado pelo jornalista Luiz Sugimoto e prefaciado pelo médico Luiz Carlos Zeferino, diretor do Caism, o livro traz ainda crônicas de Rubem Alves e textos de Regis de Moraes e André Perdicaris. Abaixo, alguns trechos da obra:

"Há necessidade de resgatar o verdadeiro sentido da medicina, na qual nem sempre conseguiremos a cura das doenças...Sempre, porém, deveremos procurar aliviar os sofrimentos do doente"
Nancy Mineko Koseki, oncologista clínica e coordenadora da Unidade de Cuidados Paliativos

"Pensar a morte deve nos ensinar a amar a vida sem ser apegado a ela, vivendo-a em plenitude, de forma autêntica e alegre... A tanatologia... nos faz refletir no apego desmedido que se tem às pessoas, às posições e aos bens materiais. Apego que muitas vezes é confundido com amor e dedicação, mas que, na maioria das pessoas, representa ganância, ânsia de controle e dominação..."
Neusa Júlia Pansardi Pavani, doutora em medicina na área de clínica médica e coordenadora da seção de dor do Serviço de Anestesia do Caism

"As pacientes, em fase final, gostam de falar sobre o que mais amaram. Ninguém se prepara para a morte falando da morte. Há um desejo de transcendência, de semear as próprias palavras, tal como sementes, dentro de um outro que pode ouvi-las, mesmo sabendo que não haverá colheita"
Vera Lúcia Rezende, psicóloga na área de oncologia mamária e ginecológica e responsável pelo atendimento psicológico na Unidade de Cuidados Paliativos do Caism


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