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Quatro breves histórias de superação

Fabiana Bonilha: código musical em braile (Foto: Talita Matias) Os pesquisadores Fabiana Bonilha, Manoel Freire, Márcio Vallim e Vinicius Garcia concluíram ou cursam o doutorado na Unicamp. Embora oriundos de diferentes áreas do conhecimento, todos têm algo em comum: a obstinação. São trajetórias de vida emblemáticas no que diz respeito ao poder transformador da educação e à possibilidade de acesso a ferramentas e programas inclusivos.
Fabiana possui deficiência visual e tornou-se doutora em musicografia braile. Freire, que concluiu os estudos secundários por meio de supletivo a distância, é hoje doutor pelo Instituto de Estudos da Linguagem (IEL). Vallim perdeu a visão em 2000, mas isso não o impediu de continuar o doutorado em Química. Garcia, que tem tetraplegia, analisa em sua tese a relação entre mercado de trabalho e pessoas com deficiência.

1 O estudo da musicografia braile está diretamente ligado à trajetória de Fabiana Fator Gouvêa Bonilha. No último dia 10 de fevereiro, a pesquisadora se tornou a primeira cega congênita a defender uma tese de doutorado na Unicamp, no Instituto de Artes (IA). Fabiana estuda piano desde os sete anos de idade. Ao conhecer o código musical em braile, pôde aprender a ler partituras com a ponta dos dedos e tornar seu aprendizado da música similar ao de outros alunos sem deficiência.

Fabiana ingressou no curso de Música da Universidade em 1997 e, ao mesmo tempo, fez Psicologia na PUC-Campinas. Mas cursar duas faculdades simultaneamente não foi sua principal dificuldade e sim a escassez de material bibliográfico transcrito para o braile, sobretudo na área de partituras. Fabiana conta que a decisão de fazer o mestrado e doutorado na área de ensino e difusão da notação musical em braile foi motivada justamente por esta carência. Antes da inauguração do Laboratório de Acessibilidade da Biblioteca Central Cesar Lattes (BC-CL), em 2002, todas as partituras que usava tinham que ser transcritas pela fundação Dorina Nowill para cegos, localizada em São Paulo. Antes de descobrir a existência desta fundação, sua professora de música recorria a métodos peculiares para que a leitura fosse tátil: desenhava as notas em alto relevo ou perfurava os contornos com agulha de costura.

Esta ideia partiu da mãe de Fabiana, a professora Vera Bonilha que, na época do ensino fundamental e médio, transcrevia seus livros didáticos para o braile. O material era feito quase manualmente por meio de uma máquina de datilografia em braile. A experiência de Vera no magistério também influenciou a aluna a seguir a carreira acadêmica, assim como ao único irmão de Fabiana, Leonardo Bonilha, médico formado pela Unicamp e hoje professor em uma universidade do Estado da Carolina do Sul, nos Estados Unidos.

O braile é um sistema de escrita para cegos com 63 caracteres, formados por pontos em relevo. Esses mesmos caracteres são usados no código musical em braile, que, de modo diferente ao do código em tinta, pode ser escrito apenas na horizontal. O sistema não usa claves e pentagramas. Intervalos e altura das notas também são representados por sinais. Como a leitura das partituras está na ponta dos dedos, torna-se necessário que o músico as decore. Segundo Fabiana, sendo a musicografia braile complexa, sua decodificação exige um conhecimento musical aprofundado.

O doutorado foi orientado pelo professor Claudiney Rodrigues Carrasco, do IA, com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Durante a pesquisa, Fabiana investigou três casos de pessoas do ensino regular, que aprenderam a ler e a escrever partituras em braile: dois alunos com deficiência visual adquirida, que estudavam violão e teclado, e um professor de música, que enxergava e começou a dar aulas de piano para um aluno cego. Os encontros foram realizados durante um ano, no Laboratório de Acessibilidade.

Fabiana desenvolveu atividades para acompanhar o processo de aprendizado deles e no caso do professor também estratégias para capacitá-lo a dar aula para alunos com deficiência visual. A pós-graduanda destaca que pôde confrontar a experiência destas pessoas com o seu próprio aprendizado. “Foi importante vivenciar essas situações concretas para ter outro referencial de aprendizado, além daquele que eu já tinha.”
No processo de ensino desta linguagem musical, afirma Fabiana, estão envolvidos três personagens distintos: o próprio aluno, o professor de música e o especialista no código. Cabe ao especialista transcrever e difundir as partituras, possibilitando que o aluno com deficiência visual estude música no ensino regular.

Durante a pesquisa, a doutoranda realizou entrevistas para montar um perfil dos casos. As gravações, que originalmente apenas constariam por escrito na tese, foram transformadas em mais um produto do doutorado: um áudiodocumentário. No material, que soma 10 minutos, são mescladas falas dos alunos e do professor com sons da máquina de escrever e da impressora braile.

Um acervo com cerca de 50 partituras transcritas para o braile e depositadas no Laboratório de Acessibilidade também foi outra contribuição do trabalho da aluna. A transcrição é realizada por meio do software Braille Music Editor (BME) e as partituras são impressas na impressora braile. O software usado por Fabiana pode pronunciar os números correspondentes aos pontos digitados, formando as notas.

Manoel Freire: do sertão potiguar ao doutorado (Foto: Antoninho Perri)
2 A escola da comunidade rural de Melancias, no município de Apodi, RN somente oferecia ensino até a quarta-série do ensino fundamental. Foi lá mesmo que Manoel Freire Rodrigues, hoje doutor pela Unicamp, tirou o diploma aos 13 anos. A partir daí houve um hiato na educação do jovem. Ele queria continuar estudando, mas precisava ajudar o pai na roça. Freire passou uma boa temporada fora da escola. Contudo, o desejo de estudar manteve-se vivo. A solução veio quando o jovem tinha 17 anos, por meio de um supletivo a distância do Instituto Universal Brasileiro. Era o começo de uma transformação que iria mudar a vida de Freire e influenciar o destino da família de doze filhos.

Cansado depois do trabalho do dia na lavoura, estudava em casa sozinho, à luz de lamparinas, porque não havia luz elétrica à época. Foi assim que o jovem terminou o primeiro grau. Mas ele percebeu que era possível terminar também o segundo grau por meio do ensino a distância. E terminou. Aos 21 anos, diploma na mão, veio o desejo de prosseguir com os estudos na universidade. Freire, porém, não achava que fosse capaz de concorrer em pé de igualdade com os alunos que tinham feito o ensino regular. Deixou a dúvida de lado e se inscreveu para o vestibular da Universidade Estadual do Rio Grande do Norte (UERN). Prestou a prova e então veio a surpresa: foi o primeiro colocado no curso de Letras.

Feliz com a notícia, a família se regozijou porque, segundo Freire, sempre teve consciência de que a única possibilidade de melhorar a situação financeira era por meio do estudo. O estudante ainda trabalhou por seis meses na lavoura com o pai. Andava seis quilômetros por dia de bicicleta de Apodi até a cidade de Severino Melo, RN, onde a Prefeitura custeava o transporte dos alunos até o campus da UERN, em Pau dos Ferros.

A situação mudou mais ainda quando Freire arrumou um emprego no alambique do pai de um amigo em Severino Melo, que também lhe permitiu que morasse em sua casa até se estabilizar. Ali trabalhou por dois anos, até que o resultado de tanto esforço começou a aflorar: o estudante conseguiu um emprego em uma escola particular da região, onde trabalhou nos últimos anos do curso. “Não parei mais. Terminei a faculdade em 1995 e fiz um curso de especialização em Linguística Aplicada. Em 1998, ingressei no mestrado na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), ao mesmo tempo em que passei no concurso para professor da UERN, onde atuo até hoje.” Freire destaca que precisava conciliar as duas coisas, o mestrado em Natal e a docência em Pau dos Ferros.

O mestrado na UFRN foi de certa forma a porta de entrada de Freire na Unicamp. O orientador de sua pesquisa era um professor paulista, Marcos Faleiros. À época da defesa, o aluno sugeriu o nome de Antonio Arnoni Prado, professor do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp como um dos componentes da banca, por conhecer seus trabalhos sobre o autor Lima Barreto, também objeto da pesquisa de Freire.

Faleiros encontrou-se com Arnoni, o qual aceitou fazer parte da argüição de Freire. Interessado na pesquisa do jovem potiguar, Arnoni lhe disse que, se quisesse fazer o doutorado na Unicamp, poderia contar com a sua orientação. Dois anos depois, Freire desembarcava em Campinas, após ser aprovado no processo de seleção do doutorado.

“Destaco dois pontos importantes: fazer o doutorado nesta instituição que é muito respeitada no país; e a afinidade com o orientador. Para mim, foi muito interessante passar esse tempo trabalhando e dialogando com o professor Arnoni”, finaliza Freire, que terminou em 2009 os estudos sobre Lima Barreto na Universidade. A trajetória de Freire, dos tempos do estudo à luz de lamparinas até o doutorado na Unicamp, influenciou os irmãos. Seis deles entraram na faculdade, e dentre estes há mais dois professores universitários.

Márcio Vallim: contando com “reforço animal” (Foto: Antoninho Perri) 3 “É uma perda. Vem aquele sentimento de luto. Não se sabe como será dali para frente. É um momento de paralisia, e agora? É aquele choque tanto para você, quanto para a família e os amigos.” Assim Márcio Vallim descreve o momento em que descobriu que perdera a visão completamente após um deslocamento de retina. Era o ano de 2000 e ele iniciava o doutorado no Instituto de Química (IQ) da Unicamp. Para readaptar-se, teve que se ausentar da Universidade por um período. Vallim revela que o apoio da família e dos amigos foi crucial naquele momento. Mas não deixa de sublinhar o quanto duas instituições e suas equipes foram importantes para sua recuperação: o Instituto Campineiro do Cego Trabalhador e o Centro de Estudos e Pesquisas em Reabilitação “Prof. Dr. Gabriel Porto” (Cepre), da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp.

O químico aprendeu a ler e escrever em braile, a se locomover de uma nova forma, e também teve apoio psicológico para si e sua família. Vallim destaca ainda que, desde a descoberta do problema, estava disposto a se recuperar. “Isso foi muito importante para que eu pudesse retornar às minhas atividades anteriores em menos de um ano. Meu mérito foi estar aberto, desde o início a novas formas de encarar aquela situação”, conta.
Da época em que esteve na Unicamp, o químico destaca o papel de seu orientador Marco-Aurélio De Paoli, professor do IQ, que procurava subsídios para que Vallim continuasse a pesquisa sobre o processo da mistura de uma categoria de plástico, o polietileno reciclado com o nylon. Foi por meio dele que Vallim conseguiu que um aluno de graduação bolsista da Unicamp pudesse ajudá-lo com as tarefas que não conseguia fazer sozinho. E também o auxiliou a encontrar o software de leitura de tela Jaws, por meio do qual pôde usar a Internet, o editor de textos e ler e-mails no computador. O estudante se valeu do auxilio do Laboratório de Acessibilidade da Biblioteca Central, que fazia a transcrição para o braile dos textos que não estavam em formato eletrônico.

Na superação das dificuldades encontradas pelo químico, um “reforço animal” também tem um papel de destaque. É Champ, um cão-guia. Ele veio de Brasília e foi treinado desde o nascimento pelo Instituto de Integração Social e de Promoção da Cidadania (Integra). Champ auxilia Vallim, que trabalha como escrevente técnico do Fórum de Mogi Guaçu, a se locomover pela cidade desde 2006, ano em que o cão foi entregue ao químico, depois de cinco anos de espera.

Vallim relembra que, no ano anterior a chegada de Champ, uma novela estava no ar com um personagem cego, que, na história, buscou um cão-guia justamente no Integra. Segundo o químico, deficientes visuais que utilizavam esse recurso para se locomover passaram a ter menos problemas de acesso a locais depois dessa divulgação na TV. “Esse papel da mídia é muito importante para conscientizar as pessoas”, diz. No ano passado, outra novela brasileira contou com a participação da primeira atriz cega de fato. Embora a personagem da atriz Danieli Haloten não usasse cão-guia na história, a jovem, formada em Artes Cênicas e em Jornalismo, foi a diversos programas de televisão levando o seu labrador Higgans, o que também contribuiu para a propagação do projeto cão-guia de cegos.

Vinicius Garcia: “É preciso respeitar as diferenças”  (Foto: Antonio Scarpinetti) 4 A inserção das pessoas com deficiência no mercado de trabalho é o tema pesquisado pelo doutorando Vinicius Gaspar Garcia, aluno do Instituto de Economia (IE) da Unicamp. De acordo com o pós-graduando, do total das vagas reservadas a pessoas com deficiência, apenas um terço está ocupado. O restante prossegue vago devido a um impasse: de um lado há as pessoas com deficiência que alegam não conseguir trabalhar porque as empresas e a sociedade em geral ainda não oferecem uma infraestrutura adequada e acessível; e, de outro, as empresas justificam a não-contratação apontando que há poucas pessoas com deficiência qualificadas.

Garcia, 33 anos, fala com conhecimento de causa – convive há cerca de 15 anos com a tetraplegia. Em abril de 1995, em uma festa de universitários, ele pulou na parte rasa da piscina e teve uma lesão na quinta vértebra do pescoço. O economista lembra que a limitação derivada do acidente é maior quanto mais alta a vértebra atingida. “Se a minha lesão fosse um pouco mais para cima, eu não conseguiria ter o movimento de braços que hoje eu tenho. E se fosse um pouco mais para baixo, eu conseguiria mexer os dedos da mão, o que não consigo.”

Depois de dois meses internado em um hospital, o jovem, então com 19 anos, iniciou o processo de readaptação na Associação de Assistência à Criança Deficiente (AACD) onde, junto com os pais e o irmão, obteve informações sobre como seria o seu dia a dia convivendo com a deficiência. Foram quase três anos para que Garcia retornasse à Unicamp. As tentativas eram frustradas por problemas emocionais e depressivos. O quadro começou a mudar em 1997, quando passou a conviver com outras pessoas com deficiência e a aceitar mais as suas limitações.

No ano seguinte, ele voltou à Universidade, no mesmo ano em que conheceu sua futura esposa, Regina Maria Holanda de Mendonça. Quando o estudante se casou, em 2004, já cursava o segundo ano do mestrado na Unicamp, integrando a equipe do professor do Instituto de Economia (IE), Waldir Quadros. A pesquisa que o então mestrando defendeu no ano seguinte versava sobre a questão socioeconômica e trabalhista da população negra nos 25 anos antecedentes. Devido a problemas de saúde, Garcia teve que trancar o doutorado por um semestre, tendo retornado este ano aos estudos.

Ainda orientado por Quadros, o estudante tem procurado discutir na tese sua própria experiência como militante do movimento social das pessoas com deficiência. Garcia é membro ativo do Centro de Vida Independente de Campinas (CVI-Campinas) e também foi presidente do Conselho Municipal dos Direitos das Pessoas com Deficiência (CMDPD). “No CVI e no Conselho, brigamos por uma sociedade mais acessível e que respeite as pessoas, independentemente da condição física, sensorial ou cognitiva.”

Quanto ao preconceito, o doutorando considera que ele tem diminuído. “Há 30 anos, eram poucos com deficiência que conseguiam trabalhar. Diziam que a vida havia acabado, que a pessoa ia ficar em casa, viver do trabalho de alguém e não ter atividades.” O doutorando avalia que o preconceito vem principalmente da desinformação e relata que as pessoas ainda têm dificuldade para lidar com situações cotidianas que envolvem as pessoas com deficiência. Uma personagem vivida pela atriz global Aline Moraes na novela Viver a Vida, chama a atenção de Garcia pela verossimilhança com a situação real de um tetraplégico. “A visão do deficiente ‘herói’ nós rejeitamos, assim como do ‘coitadinho’. Queremos ser tratados como pessoas e como cidadãos, com direitos e deveres, e com respeito às diferenças humanas.”

 

 
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