| Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 353 - 26 de março a 8 de abril de 2007
Leia nesta edição
Capa
Cartas
Trajetória da FCM
Qualidade do combustível
Violência
Entulho reciclado
Desinfecção de hortaliças
Reúso de água
xampus
Painel da semana
Teses
Unicamp na mídia
Livro da semana
Portal Unicamp
Cultura evangélica
Acidentes de trabalho
 

5

A cidadania acuada

 (Fotos: Henrique Esteves/Agif/Folha Imagem)A escalada da violência no país é analisada, nesta e nas duas próximas páginas, pelo antropólogo Luiz Eduardo Soares e pelo filósofo Roberto Romano. Ambos opinam sobre o papel do Estado, da elite, dos políticos e dos cidadãos nesse contexto, avaliam em que medida o fenômeno se institucionalizou, identificam as raízes do problema e falam sobre temas polêmicos – entre os quais a redução da maioridade penal – que emergiram sob a comoção provocada por casos recentes.

Jornal da Unicamp – As últimas três décadas assistiram não só à escalada da violência no país como também seu aprofundamento, capilarização, organização e institucionalização. Em que pesem soluções paliativas, a situação só tem se agravado. Qual a responsabilidade do Estado nesse estado de coisas? Trata-se de anomia, omissão, impotência, falta de vontade política ou tudo isso junto?

Luiz Eduardo Soares – A resposta exigiria uma tese de doutorado. Portanto, desde logo conto com a indulgência dos leitores ante a inevitável indigência da simplificação: a pergunta se refere à violência, o que nos remete a um universo quase ilimitado de relações, fenômenos e condições. Desigualdades sociais, de gênero, discriminações, racismo, intolerância, homofobia, as iniqüidades brasileiras são inúmeras e se manifestam nos mais distintos campos. A Constituição federal não é cumprida. A legislação infra-constitucional, tampouco. Em parte, isso bastaria para resumir nossos dilemas.

Comecemos por identificar as responsabilidades do Estado. A Lei de Execuções Penais (LEP) não é cumprida: o cárcere é o inferno. O Estatuto da Criança e do Adolescente tampouco se cumpre, com rigor (e já o Congresso se movimenta para alterá-lo, antes que se o aplique, até para que seja, efetivamente, avaliado): as entidades socioeducativas são simulacros do cárcere, sucursais do inferno. As polícias, via de regra (guardadas as variações estaduais) não valorizam seus profissionais, por um lado, nem os cidadãos, destinatários, afinal, da segurança que lhes compete prover – quando esses cidadãos são pobres, negros ou vivem em favelas e periferias.

A desigualdade no acesso à Justiça é uma ferida arreganhada com despudor ante nossos olhos – porém, nos aquietamos, anestesiados. Começa na abordagem policial (em que o filtro de classe e cor refrata a universalidade da lei e impõe seu crivo seletivo na contramão da eqüidade) e se conclui no cumprimento da sentença, passando pelas mediações judiciais em cujos meandros esta se constrói. Metade dos Estados brasileiros não conta sequer com Defensorias Públicas, as quais, quando existem, ainda não gozam das mesmas prerrogativas e condições de trabalho do Ministério Público. Pequenos ladrões de galinha se amontoam em galpões insalubres, enquanto criminosos confessos ostentam a liberdade polida à lupa delicadíssima e regiamente paga de exímios peritos em ourivesaria jurídico-formal.

A corrupção policial, de um modo geral, tem se mostrado extraordinariamente elevada, a ponto de que se radique e espraie, no país, o “crime organizado” –aquele que se caracteriza pela apropriação de instituições públicas e seus mecanismos, em benefício de interesses subalternos, privados e ilegais. A ineficiência é a contrapartida natural da corrupção, como o é a brutalidade, sobretudo letal, que alcançou patamares dantescos no Brasil. Nesse capítulo, o Rio de Janeiro constitui o caso mais grave: mais de mil pessoas são mortas todos os anos em ações policiais. O número de execuções corresponde a cerca de 65% desses casos. Também é no Rio onde mais morrem policiais. Cerca de 35, em média, por ano, em serviço, e o dobro, na folga.

Claro que a violência policial tem foco e endereço, não se distribui aleatoriamente ou “democraticamente”. Seus alvos são os jovens negros e pobres, do sexo masculino. Os mesmos que estão sobre-representados nas estatísticas da vitimização por homicídio doloso, em todo o país, ou nos censos penitenciários. Os mesmo que têm sido apanhados na malha da criminalização promovida por nossa política de drogas.

Paralelamente, estamos diante de uma criminalidade violenta crescentemente audaciosa e cruel. São cerca de 45 mil homicídios intencionais, no Brasil, todos os anos (27 por 100 mil habitantes). Os números relativos a outros tipos de crimes relevantes também são alarmantes. E há os crimes de colarinho branco, realimentados pela impunidade –e pelo viés já assinalado de nossa política criminal e de nosso sistema penal.

Como chegamos a esse quadro? Combinando a capacidade ilimitada de conciliação de nossas elites políticas com as estruturas que herdamos de nossa história autoritária – eis as marcas do que outrora denominamos desenvolvimento autoritário do capitalismo. Construímos, assim, esta democracia e esta Justiça, que representam avanços históricos notáveis, mas convivem com o caroço amargo de nosso patrimonialismo estamental hierárquico e discriminador.

Se os filhos da classe média freqüentassem prisões, entidades socioeducativas, fossem abordados com tiros de fuzil na nuca e pagassem o preço da hipocrisia e da irracionalidade de nossa política de drogas, já teríamos passado a limpo esses absurdos repulsivos e trágicos.

Roberto Romano – Não existe sociedade sem violência. Basta recordar a Bíblia, a Ilíada, Macbeth. Na Idade Média, as periferias urbanas tornaram-se perigosas devido à massa dos expulsos pelos violentos novos donos das terras. Deve-se lembrar o número terrível dos mortos aos milhões, na primeira e segunda guerras mundiais, os destruídos no Vietnã, os que sucumbiram às torturas nos golpes ditatoriais da África e Américas e tantos outros. Não esquecer os campos de concentração  como fruto do terror cujo nome é Razão de Estado.  A violência segue o homem do parto à morte. A religião, a cultura, o Estado procuram administrá-la. Mas não raro o mesmo Estado canaliza as forças infernais que latejam no sujeito humano e as usa em guerras, invasões etc. É preciso detectar os vários tipos de violência, para não absolver as mais graves com a exacerbação das menos amplas e profundas. Sim, qualquer assassinato é tremendo, porque mostra a voragem do vazio que suga todos os vivos.

Elias Canetti analisa, com frieza extrema, o alívio que experimentamos com a sobrevivência quando, em posição ereta, vemos um cadáver. Ele conecta os nossos sentimentos, naquela hora, com a gênese do poder. Mas uma coisa é a morte de milhares, causadas por bandidos que ainda não se apossaram do Estado. Outra, quando bandidos assumem o poder, com o direito de matar milhões. Um elemento que potencia o banditismo é a ideologia. Preocupa a retórica ensaiada por algumas quadrilhas paulistas recentes, que se apropriaram do jargão guerrilheiro. A síntese de ideologia e banditismo traz resultados piores do que os atos do chamado “crime comum”.

A violência pode ser atenuada, jamais extinta. Algumas formações sociais administram as lutas em seu interior. Mas nelas a violência usa a máscara dos bons modos. Depois que os indivíduos aderiram ao Estado, diz Hobbes, sendo-lhe vetado usar as garras ou facas, empregam a língua. No De cive se recomenda que todos procurem ser os últimos a sair das festas: a cada novo convidado que deixa a sala, línguas estraçalham sua reputação. A violência torna-se menos visível com a repressão estatal, mas não deixa de ser letífera. Sociedades que enfraqueceram a violência física podem retroceder, retornar à selvageria. . A educadíssima Alemanha, após se livrar parcialmente da truculência usada pelos nobres, instaurou formas bestiais na matança de pessoas por pessoas, de pessoas pelo governo.

Stephen Mesnnell, um estudioso da violência, afirma que “os comportamentos civilizados empregam tempo para se construir, mas dependem da manutenção de um alto grau de autocontrole, e podem ser destruídos rapidamente”. O mesmo pesquisador alerta: pensar que a lei e a ordem se deterioram em nossos dias e cresce o perigo cotidiano, pode ser grave erro. Na Inglaterra, por exemplo, durante séculos, as gerações expressaram os mesmos medos da violência, declínio moral, destruição dos valores tradicionais.

No caso brasileiro, os dados sobre o aumento ou a diminuição da violência devem ser vistos  em sincronia com outros, relativos ao crescimento da população urbana, aos fluxos migratórios, à complexificação da economia, às variações de emprego e de serviços essenciais, à concentração urbana, às mudanças culturais como na religião etc. Em especial, deve ser considerado o movimento comercial de país a país, o uso deste movimento para o contrabando de armas, de estupefacientes etc. Sem tais elementos, e outros, perde-se o equilíbrio no juízo ético. Daí, o fenômeno a que se chama genericamente de “violência” assume a amplitude aterradora de insuportável desmesura. Penso que este rol de questões subsumidas numa só palavra alerta contra a rapidez irresponsável da propaganda, dos slogans, das soluções mágicas, dos vieses ideológicos.

É preciso determinar a natureza dos crimes e as condições em que eles se efetivam. Por semelhante motivo, são relevantes pesquisas como as de Alba Zaluar, cujos dados sobre o comércio das drogas podem servir para a educação, a repressão, a prevenção policial ou judiciária. Zaluar indica com rigor lógico e empírico de quem se fala, quando se fala, onde se fala, ao se enunciar coisas sobre o emprego de jovens no comércio em pauta.

Com o aumento da população urbana, desprovida dos mínimos vitais e mesmo ecológicos, aumenta o exército de reserva, farta mão-de-obra juvenil para os traficantes. Estes, por sua vez, vendem mercadorias cuja origem está nos setores que “servem” o mercado mundial. Tanto o conhecimento do que se passa no país, quanto o controle das fronteiras, são estratégicos para a ação policial e judicial, se o alvo é coibir aquele mercado. Mas no governo brasileiro existem dogmas orçamentários, impostos politicamente. E aqueles dogmas rezam que a prioridade é o superávit primário, a satisfação dos especuladores financeiros etc. Recursos são extraídos da polícia. Eles serviriam à formação técnica de quadros, o aparelhamento científico etc. Com os cortes, enfraquecem os controles internos e externos. E vai por aí.

JU – Em sua opinião, onde estão as raízes do problema atual?

Luiz Eduardo Soares – Em parte, me antecipei, no final da resposta anterior. Aproveito, então, para mencionar outro fator: a inépcia dos liberais democráticos e das esquerdas para valorizar essas questões e enfrentá-las, com políticas públicas alternativas – elas existem, já foram amplamente expostas, em seminários, livros, entrevistas e planos governamentais, mas nunca mereceram apoio político substantivo para sua implementação consistente e continuada, enquanto política de Estado, não de governo, superior, portanto, a disputas partidárias e slogans ideológicos. Trata-se de tragédia nacional a exigir a mobilização e a união amplíssima, formando a coalizão necessária para a aplicação de um plano profundo de reformas.

Quanto aos conservadores, continuam surfando, demagogicamente, na indignação popular, contribuindo, entretanto, para a reprodução do problema. Ainda não compreenderam que sua visão estreita, unilateralmente repressiva, punitiva, não tem sido capaz de criar soluções. Pelo contrário, polícias brutais e um sistema penal míope, de cabeça inclinada, seletivamente impotente, gera benefícios a curto prazo, mas coloca em risco todo um processo civilizador, que também lhes deveria interessar, afinal de contas. Com o naufrágio na barbárie, todos perdemos. Insisto, todos. Essa história de que a barbárie interessa a alguns me parece inteiramente indefensável.

Aliás, essa esdrúxula tese paranóica faz parte do repertório de equívocos da esquerda mais estreita e sectária, segundo a qual o neoliberalismo tudo explica. A fórmula prêt-à-porter do momento, de novo, acaba afastando setores importantes do movimento social e do espectro político de uma participação mais positiva na construção de alternativas. Refiro-me àquela simplória equação: Estado-mínimo, desemprego em massa, potencial disruptivo inflacionado, escalada do encarceramento, contenção política via política penal. Se a sociedade fosse essa engrenagem funcional, armada pelo jogo banal de causa-efeito, e assim tão translúcida em sua racionalidade linear, tudo seria muito mais fácil.

Roberto Romano – Para o cristianismo a raiz reside no pecado original. Mas existem outras origens no mundo histórico. Para o Brasil, Alba Zaluar indica a gênese destes males na política repressiva dos positivistas jacobinos, adeptos da virtude, como uma das fontes do excessivo ajuntamento de indivíduos na prisão, fossem as acusações contra eles de crime ou delito, ou apenas porque não tinham emprego. A política repressiva assumiu preponderância, no mesmo passo em que as empresas não davam conta de absorver a gente jovem. Tentativas de mudar isto foram feitas também por positivistas, com a prática de educação técnica para as massas.

No governo Vargas, bastante inspirado no positivismo, com ajuda de várias correntes não-positivistas, foi instaurado o sistema “S”. Mas este sistema, hoje, não dá conta da população que dele necessita. A ditadura militar tem sua parcela de responsabilidade. Até 1965, o ensino de segundo grau brasileiro estava entre os melhores da América do Sul. Com a política deliberada de implodir as escolas públicas em favor das particulares, arruinou-se a máquina do ensino oficial. Aumentando os candidatos à mesma rede pública, e com meios arrasados, o desastre é o que vemos.

Em Mimesis, Erich Auerbach critica, na indicação das causas, a técnica propagandística “que consiste em iluminar excessivamente uma pequena parte de um grande e complexo contexto, deixando na escuridão todo o restante que puder explicar e ordenar aquela parte, e que talvez serviria de contrapeso daquilo que é salientado; de tal forma diz-se aparentemente a verdade, pois que o dito é indiscutível, mas tudo não deixa de ser falsificado, pois que, da verdade faz parte toda a verdade, assim como a correta ligação das suas partes. O público sempre volta a cair nestes truques, sobretudo em tempos de inquietação, e todos conhecemos bastantes exemplos disto, do nosso passado mais imediato. Contudo, o truque é, na maior parte dos casos, fácil de ser descoberto; mas falta ao povo ou ao público, em tempos de tensão, a vontade séria de fazê-lo; quando uma forma de vida ou um grupo humano cumpriu o seu tempo ou perdeu prestígio e tolerância, toda injustiça que a propaganda comete contra eles é recebida, apesar de se ter uma semi-consciência do seu caráter de injustiça, com alegria sádica”.

Auerbach indica, nessas frases, a perseguição nazista aos judeus, ciganos, homossexuais, apontados como perigo que ameaçaria os honestos e “superiores” arianos. A propaganda isola aspectos efetivos e não os conecta ao todo a que pertencem.

Continua na página 6

SALA DE IMPRENSA - © 1994-2007 Universidade Estadual de Campinas / Assessoria de Imprensa
E-mail: imprensa@unicamp.br - Cidade Universitária "Zeferino Vaz" Barão Geraldo - Campinas - SP